12. a “proposta de decisão” pode ser considerada uma evolução?
Nas Normas Regimentais de 1949 ficou claro que os auditores eram funcionários e não poderiam votar por não terem a proteção conferida aos magistrados.
Veja-se que essa decisão tem raiz na crise de 1947 (p. 91 e 92 da Monografia Vencedora do Prêmio Serzedello Corrêa de 1998): (sem destaques no original)
“Em sessão realizada no dia 26 de dezembro de 1947, sob a presidência do ministro Bernardino José de Souza, presentes os ministros Francisco José de Oliveira Vianna e Alvim Filho, os auditores Júlio Bueno Brandão Filho e Rogério de Freitas, ambos no exercício pleno do cargo de ministro, e ausente o ministro Ruben Rosa, foi designado o dia 30 de dezembro seguinte para se proceder às eleições de presidente e vice-presidente do Tribunal para o exercício de 1948.
Na ocasião, ponderou o ministro Alvim Filho que não poderia se realizar tal eleição por estarem presentes na capital apenas quatro dos sete ministros efetivos do Tribunal, encontrando-se dois em exercício de mandato eletivo — Silvestre Péricles de Góes Monteiro e José Américo de Almeida — e o outro, Ruben Rosa, em gozo de férias.
Como o ministro-presidente não acolheu as ponderações, decidiu-se o ministro Alvim Filho a não comparecer à sessão destinada à eleição.
Realizada, então, a sessão, com a presença de apenas três ministros efetivos e dois substitutos, foi eleito com quatro votos o ministro Alfredo Guimarães de Oliveira Lima para o cargo de presidente do Tribunal, e em segunda votação o vice-presidente, Bueno Brandão, auditor no exercício do cargo de ministro.
Inconformado com o modo como se processara a eleição, o ministro Alvim Filho convenceu o ministro Ruben Rosa e ambos impetraram mandado de segurança junto à 3ª Vara da Fazenda Pública, pedindo que lhes fosse assegurado o direito líquido e certo de elegerem, com a só participação de seus pares — daí excluídos os auditores, que classificaram como funcionários — o presidente e o vice-presidente do Tribunal, rogando, para tal, que fosse declarada nula a eleição realizada.
Do litígio que se seguiu, ocupando quase todo o exercício de 1948, os requerentes tiveram sua pretensão repelida em todas as instâncias: parecer do Procurador-geral do Tribunal, de 8 de maio; parecer do Procurador da República, de 14 de maio; sentença de primeira instância, proferida pelo juiz da mencionada 3ª Vara, de 8 de julho; parecer do subprocurador-geral da República, incluso nos autos do recurso interposto junto ao Tribunal Federal de Recursos, em 25 de agosto; e, finalmente, decisão do TFR no recurso interposto, de 27 de setembro de 1948.
(...)
A lei viria a manter a sistemática de convocação dos auditores como prerrogativa do presidente do Tribunal, sempre que faltasse quorum mínimo para as sessões, conforme ficaria disposto no art. 13. A discussão, todavia, levou o legislador a incluir dispositivo estabelecendo que somente os ministros efetivos, ainda que em gozo de férias ou licença, poderiam tomar parte nas eleições (art. 10, § 6º), critérios preservados até os dias atuais.
Encerrada a pendência, terminava também o mandato de Oliveira Lima, não a salvo das mágoas e sinais que o episódio e o tumultuado ano lhe trouxeram. Logo no princípio do ano seguinte, 1949, licenciou-se para tratamento de saúde. Para substitui-lo nas funções de ministro foi designado o auditor Ernesto Claudino de Oliveira e Cruz. Assumiu pela segunda vez a Presidência do Tribunal de Contas o ministro Ruben Rosa, que permaneceria à frente da Corte até o final do ano de 1949.
Conforme já visto anteriormente no item nº 06, apenas em 1977 (com a adoção de um novo Regimento Interno - Resolução Administrativa nº 14, de 12 de dezembro de 1977) ficou estabelecido um aparente avanço no papel dos auditores, os quais, além de relatar os processos, passavam a apresentar “proposta de decisão” (art. 73, inciso IV), que poderia ser acatada como solução para a questão em apreciação.
Era um “avanço” no sentido de que, no regime anterior, o papel dos auditores estava limitado a relato dos autos, sem participação da discussão e apresentação de proposta de decisão.
Entretanto, a partir da promulgação da Constituição Federal, em 05/10/1988, o que poderia ser considerado avançado passou a ser retrógrado, já que os Auditores foram inseridos no seio da magistratura, não sendo possível, à luz do bom direito, usurpar-lhes a prerrogativa de votar nos processos em que foram relatores.
Esse preceito é rigorosamente observado nas cortes judiciárias brasileiras. O magistrado relator sempre vota, sem que haja previsão de quaisquer exceções.
Na verdade, o instituto da “proposta de decisão” é uma espécie de voto consultivo, instituto que não existe no ordenamento jurídico brasileiro e já não existia à época em que foi adotado no TCU. Vale lembrar, entretanto, que o art. 7º do Decreto nº 966-A, de 07/11/1890, estabelecia que o regulamento do TCU determinaria quais funcionários do corpo administrativo teriam voto consultivo nas deliberações do Tribunal.
Assim, é possível inferir que a “proposta de decisão” era compatível quando os Auditores eram servidores públicos, mas perde a compatibilidade quando se tornam magistrados.
Nas Cortes de Contas europeias, fontes de inspiração para a criação do Tribunal de Contas federal brasileiro, as garantias da magistratura são sempre atribuídas a seus membros, sem exceções. No que tange à Corte dei Conti, por exemplo, assim consta de sua Lei Orgânica:
“5. (art. 9, legge 14 agosto 1862, n. 800; art. 1, legge 3 aprile 1933, n. 255.) - I primi referendari e i referendari hanno voto deliberativo oltre che nel caso in cui siano chiamati dal presidente ad integrare il collegio giusta il terzo comma del precedente articolo, anche negli affari dei quali sono relatori.
Possono essere chiamati dal presidente a supplire i consiglieri assenti od impediti, compreso quello avente l'incarico di segretario generale, ed anche in questo caso hanno voto deliberativo.”[31]
Na doutrina pátria, o papel do relator nos tribunais judiciários é o mais relevante do colegiado. A lição de Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil - p. 639 e 640) é bastante elucidativa acerca desse tema:
353. Exposição do relator – O relator terá, naturalmente, feito nos autos, consoante o disposto no art. 549, parágrafo único, a "exposição dos pontos controvertidos sobre que versar o recurso" – ou a causa, entende-se. Semelhante exposição deve ser reproduzida oralmente na sessão de julgamento, a fim de que se inteirem do que se vai discutir e decidir todos os componentes do órgão colegiado, inclusive aqueles que porventura não hajam lido a cópia do relatório escrito (art. 553), ou não tenham retido na memória, com a desejável nitidez, os vários aspectos da matéria. Aliás, o relator não fica adstrito, na exposição oral, à pura repetição do que consta do relatório escrito: pode acrescentar pormenores esclarecedores e deve, se for o caso, proceder a retificações ou suprir omissões relevantes.
A clareza e a precisão da exposição do relator são condições essenciais para que se possa julgar bem. Avultam aqui a delicadeza e a importância da função cometida ao relator. Uma exposição incompleta ou pouco fiel pode levar o colegiado a perpetrar graves injustiças. É necessário que ela contenha todos os dados relevantes, dispostos em ordem que lhes facilite a apreensão e a memorização, sem contudo perder-se em minúcias fatigantes que desviem a atenção do essencial.
A exposição é puramente objetiva. Descreve o relator os fatos que deram origem ao pleito, como os tenham narrado as partes, e mais os que, verificados no curso do processo, se revistam de interesse para o julgamento. Não deve antecipar sua opinião, nem adotar tom de crítica ou aprovação a qualquer ato ou pronunciamento das partes ou, sendo o caso, de outro órgão judicial que antes haja funcionado no processo. Cabe-lhe, todavia, dar o realce necessário aos fatos que entenda mais importantes para a correta apreciação da espécie.
Qualquer dos juízes participantes do julgamento pode solicitar ao relator, desde logo, esclarecimentos sobre algum ponto da exposição que lhe haja parecido obscuro ou contraditório, ou mesmo, simplesmente, a confirmação de algum dado que não tenha podido reter ao ouvir a exposição.
Também para Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil - p. 212 e 213) o papel do relator é proeminente no colegiado:
3. Função do relator – O relator decide todas as questões que não dependem de acórdão. Além disso, dá-lhe a lei os poderes de incoação até o julgamento, inclusive quando alguma diligência houver de ser feita. Os seus atos ou são administrativos, ou judiciais, conforme o conteúdo deles.
(...)
O relator faz nos autos a exposição dos pontos controvertidos sobre o que versa o recurso ou a causa (art. 549). Na sessão de julgamento, tem ele de volver à exposição, que pode ser mera reprodução, ou extrato, mas convém que o relator oralmente transmita o que essencialmente expusera. Pode ocorrer que algum ou alguns dos membros do corpo julgador entendam que há divergência entre o relatório, constante das cópias, e o que oralmente expõe o relator. Aliás, o relator pode entender que precisa acrescentar algo ao relatório escrito, inclusive diante do que escrevera o revisor, ou até mesmo suprir lacuna ou retificar algo do que inserira.
É de grande relevância que o relator seja claro e preciso, porque a má exposição pode levar a erros no julgamento. Ainda não se trata do seu voto, porém os fundamentos que apresentaram as partes têm de ser mencionados com exatidão e igual tratamento.
Qualquer juiz que toma parte no julgamento pode solicitar que o relator (e o revisor, se o há) preste esclarecimentos de algum ponto, ou de alguma circunstância, inclusive alegando que lhe parecem contraditórios dois ou mais enunciados, ou que tem algum ou alguns deles como obscuros, ou sugerindo que confirme a interpretação que ao texto deu o solicitante.
Portanto, à luz dos ensinamentos desses eminentes doutrinadores, é inconcebível que o relator, pela relevância desse papel, não tenha direto a voto deliberativo nos processos a seu encargo. E como não há previsão de revisor nos Tribunais de Contas, o papel do relator se torna ainda mais relevante, ao lado do princípio da verdade material e da peculiaridade da instrução processual, que é mais ampla que no Poder Judiciário.
O caso paranaense do “novo relator” (quando a proposta de decisão de auditor não é acatada pelo Colegiado) e o caso sergipano de atribuir critério subjetivo a conselheiro em relação à proposta de decisão de auditor, conforme já abordado no item nº 10 supra, são demonstrações de desvalorizações dos auditores, porquanto tais disposições diminuem a relevância de seu papel nas decisões que submetem aos órgãos colegiados.
13. da inadequabilidade do modelo de auditoria geral em substituição aos tribunais de contas no brasil
Naqueles que iniciam o contato com a matéria, é de causar surpresa a criação de um Tribunal de Contas de índole europeia justamente em uma república federativa que, àquela época, baseou sua constituição no modelo estado-unidense, já que naquele país é adotado o modelo de auditoria-geral, exercido pelo Government Accountability Office – GAO[32].
Ao ler a íntegra da Exposição de Motivos do Decreto nº 966-A de Ruy Barbosa, fica claro por que o Águia de Haia preocupou-se em transplantar para a nascente república o modelo europeu-continental de controle das contas públicas:
“Na Itália, dizia o general Menabréa, “a responsabilidade ministerial não está definida. Nada a sanciona. Releva, por conseqüência, buscar alhures e noutros principias as garantias, em que o país deve apoiar a regularidade da administração da fortuna do Estado”.
Não será ainda pior a situação de nós outros? Onde a responsabilidade ministerial contra os abusos orçamentários, no regimen passado durante quase três quartos de século de monarquia parlamentar?
A Republica presidencial, a este respeito, não nos dará condições mais favoráveis: não tem, no seu organismo, elementos superiores para a consecução desse resultado, que de nenhuma fôrma de governo se poderá jamais obter, no país que não souber dotar-se com esta instituição robusta e preservadora. No regimen americano, com efeito, que esperamos ver perfilhado pelo Congresso Constituinte, as câmaras não têm meios mais seguros de opor mão repressiva ou preventiva aos abusos dos ministros. Nem a responsabilidade política do presidente, nem a responsabilidade judiciaria dos seus secretaries de estado nos livrarão de excessos e abusos na delicada matéria das finanças federais, si não enriquecermos a nossa Constituição nova com esta condição suprema da verdade pratica nas cousas do orçamento. Nada teremos feito, em tão melindroso assumpto, o de mais alto interesse, entre todos, para o nosso futuro, enquanto não erguemos a sentinela dessa magistratura especial, envolta nas maiores garantias de honorabilidade, ao pé de cada abuso, de cada gérmen ou possibilidade eventual dele.
“Se há coisa, que contenha os administradores no declive de atos arbitrários,” - dizia, no senado italiano, o ministro das finanças, em março de 1862, - ‘se há coisa, que nos iniba de ceder a postulantes importunos, à gente cujas pretensões não cessam de acarretar novas despesas, e transbordar os recursos facultados pelo orçamento, é o espectro do Tribunal de Contas. Todo o dia, a toda a hora, muitas vezes na mesma hora, um ministro, um secretario geral, todos os que têm relações com a administração afluem, a solicitar novas despesas. Não é fácil resistir. Muitas vezes os pretendentes mesmos não crêem na utilidade delas, e apenas as propõem impelidos por outros, que os seguem; mas, dada a força da autoridade dos intercessores, a conseqüência é que, resistindo-se-lhes uma ou duas vezes, há de acabar-se por ceder’.”
A despeito desses ensinamentos, há no Congresso Nacional Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pela adoção do modelo de auditoria-geral em substituição ao TCU[33]. No Senado Federal foi apresentada a PEC nº 90/2007, de autoria da Senadora Serys Slhessarenko, em que faz pleno uso das suas prerrogativas, podendo constatar-se a natureza ira et studium de seu conteúdo, conforme já abordado no item nº11, supra.
“Segundo nossa percepção, não subsiste razão para que o Poder Legislativo não exerça plenamente a função fiscalizatória, que, assim como a legiferante, também lhe é típica. A manutenção dos Tribunais de Contas não se justifica. As Casas Legislativas têm total condição de exercer diretamente as atividades de controle externo, desde que lhes seja provido apoio técnico especializado.
Aliás, é essa a sistemática dos Tribunais de Contas, nos quais ministros e conselheiros contam com um corpo técnico selecionado por meio de concurso público, preparado para fornecer-lhes os insumos para o desempenho de suas atividades.
A verdade é que hoje temos, em vários casos, os cargos de Ministro e de Conselheiro dos Tribunais de Contas como prêmio para parlamentares que não mais possuem força eleitoral para se manter em cargos eletivos. Toda uma estrutura administrativa acaba sendo erigida para viabilizar esse verdadeiro benefício. Tal circunstância não mais é tolerada pela sociedade brasileira.
Esta Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pretende atacar corajosa e frontalmente o problema, com a extinção dos Tribunais de Contas.
No médio e no longo prazo, não resta dúvida que trará redução de gastos com a máquina pública e aumentará a efetividade das ações de controle. Convém lembrar que os quadros técnicos imprescindíveis para o exercício do controle externo estão sendo mantidos, mas incorporados às Casas Legislativas, em quadros próprios. Tivemos o cuidado e valorizá-los, tornando todos os seus cargos alcançáveis por qualquer brasileiro, mas somente por meio de concurso público.
Por derradeiro, entendemos que esta iniciativa é meritória e alinhada com os princípios maiores do interesse público e da probidade, da eficiência e da eficácia administrativas, valores que a sociedade, cada dia mais, intransigentemente exige do Poder Público.”
Com a devida vênia à opinião da autora da proposta de extinção dos tribunais de contas, a manutenção do modelo de tribunais de contas, com o aperfeiçoamento da escolha do corpo decisório, é medida mais consentânea com o modo de ser e fazer do brasileiro. Não foi à toa que Ruy Barbosa escolheu esse modelo.
O “ser cordial”, na brilhante definição de Sérgio Buarque de Hollanda, será inexoravelmente afeito a “solicitar novas despesas”, conforme descreveu o general italiano na passagem reproduzida acima de transcrição da exposição de motivos do decreto que criou o TCU. E sem a sombra de possível intervenção de uma magistratura independente e equidistante dos Poderes Legislativo e Executivo.
O Tribunal de Contas há de atender aos anseios da sociedade. Basta que lhe sejam dados os meios adequados, dentre eles um corpo deliberativo eminentemente técnico.