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A ação negatória de paternidade

Agenda 01/01/2002 às 01:00

I.INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica revoluciona as atividades humanas. Talvez uma das atividades mais beneficiadas por essa evolução tenha sido a Medicina. Os resultados de pesquisas nesse campo foram assombrosos e tiveram como aliada a informática. O binômio computador/medicina forma, a nosso ver, a dobradinha de vanguarda mais avançada, não menosprezando, obviamente, outros campos também beneficiados pelo desenvolvimento da tecnologia contemporânea.

E esse avanço no campo da Medicina trouxe reflexos positivos para o Direito, mormente no Direito de Família. O Código Civil vigente está vetusto e não atende ao anseio da sociedade, no que tange a determinadas matérias que são razão de batalhas judiciais, principalmente em se tratando de direito concernente à família, e sentenças eram ( e são, ainda) exaradas com base mais em jurisprudências que propriamente na lei (contudo, não nos olvidemos de que o atual Código Civil deva ser substituído pelo novo que, por sua vez, segundo alguns doutrinadores, já nasce ultrapassado, visto que não contempla algumas matérias que hoje já trazem conflitos no mundo jurídico).

O exame pericial, conhecido como Sistema DNA, por exemplo, desde que apareceu, tem resolvido lides em processos de apuração de paternidade, para os quais, até pouco tempo, as decisões judiciais eram contestadas e, se ratificadas em Segunda Instância, mesmo assim, traziam inconformação do condenado.

E operadores do direito sabem, perfeitamente, que muitas decisões tomadas em Primeira Instância, ratificadas em Segunda Instância, não raras vezes, vinham revestidas pela roupagem da injustiça, ocasionando danos irreparáveis no espírito do condenado. Isso porque a procedência da ação se assentava, no mais das vezes, em conjunto probatório débil, inconsistente, mais de presunção, sob a pecha de que a ação só fora julgada como forma de satisfação à sociedade, como desencargo de consciência.

Hoje, os tempos são outros!


II – O CÓDIGO CIVIL VIGENTE E O DIREITO DE FAMÍLIA

Inicialmente, leiamos a dicção do artigo 178, e seus parágrafos 3º e 4º, e do artigo 344 do Código Civil:

Art. 178 - Prescreve:

§ 3º - Em 2 (dois) meses, contados do nascimento, se era presente o marido, a ação para este contestar a legitimidade do filho de sua mulher (art. 338 e 344).

§ 4º - Em 3 (três) meses:

I - a mesma ação do parágrafo anterior, se o marido se achava ausente, ou lhe ocultaram o nascimento; contado o prazo do dia de sua volta à casa conjugal, no primeiro caso, e da data do conhecimento do fato, no segundo;

II - a ação do pai, tutor, ou curador para anular o casamento do filho, pupilo, ou curatelado, contraído sem o consentimento daqueles, nem o seu suprimento pelo juiz; contado o prazo em que tiveram ciência do casamento (arts. 180, III, 183, XI, 209 e 213).

Art. 344 - Cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher (art. 178, § 3°).

Em conformidade com o diploma legal suso referido, nos seus artigos 178 e parágrafos, e 344, compete ao marido, em dois meses, contados do nascimento do filho, se presente, ou em três meses, se ausente ou desconhecedor do nascimento dele, a partir de sua volta à casa conjugal, no primeiro caso, e da data do conhecimento do fato, no segundo, promover ação para contestar a legitimidade do filho de sua mulher. E o 344 estabelece, de modo taxativo, que cabe ao marido, privativamente, o direito da ação.

Ora, a intenção do legislador estava clara...em 1917! Se virarmos o foco dessa matéria para o ano de 1917 ( e mesmo tempos depois), num pitaco de curiosidade, defrontar-nos-íamos com uma sociedade tradicional que, a todo custo, procurava manter a valorização da célula mater com o lema: a família em primeiro lugar. Dentro da concepção patriarcal de mundo, muito embora houvesse o adultério na época, a ele se faziam vistas grossas. Ou melhor, a mulher o fazia. Tudo em nome da preservação da família. Ainda que humilhada, ela "desconhecia" qualquer aventura extraconjugal do marido. Era, podíamos dizer, comportamento convenientemente natural.

Com o passar do tempo, escancarou-se mais o comportamento humano nesse sentido. O adultério passou a ser "denunciado", mormente quando a adúltera era a mulher. A simbologia do marido exemplar e da mulher "amélia", ambos fiéis e agudamente compromissados com a preservação da sociedade conjugal, começava a ruir. E sabemos que era extremamente dissimulada tal relação, porque o adultério, principalmente por parte do homem, sempre existiu em todas as épocas. Daí o nosso Código realçar a figura do marido, como pólo ativo necessário em ação para contestar a legitimidade do filho de sua mulher, além do direito constitucional de época, em que o homem era cabeça do casal. Em outras palavras e grosso modo, dava-se ao homem, ao marido, numa sociedade patriarcal, o direito de "desconfiar" legalmente de sua mulher.

Contudo, a própria sociedade, em evolução constante, passou, depois, a aceitar a separação judicial e o divórcio, como forma de permitir que casais em litígio e sem mais possibilidade alguma de convivência, pudessem refazer suas vidas, abrindo, assim, uma fenda no sedimentado alicerce moral e social oriundo dessa época. Talvez, em tese, essa abertura também tenha sido a responsável pela maleabilidade da sociedade em aceitar, mais naturalmente, casos de adultério. Tanto é verdade que ele será tratado, doravante, com menos rigor do que o era.

Paralelamente a esses fatos sociais, a instituição do casamento, outrora endeusada pela sociedade, começou a perder sua força social, em média relativamente proporcional à perda de fiéis da igreja católica para outras religiões. Era inimaginável para qualquer família da época a relação entre duas pessoas de sexo diferente, sem que tal relação fosse legalizada por meio do casamento. Raramente se ouvia dizer em "amigamento". Homem e mulher juntos, apenas pelas leis consagradas no Código Civil e na religião católica. E a tradição era tão arraigada que havia pessoas não-católicas que se casavam na igreja!

Hoje, grosso modo, está mais comum a denominada "convivência" de casais ou união estável (que substitui o termo "concubino/a", julgado depreciativo) do que a tradicional união por meio do matrimônio, quer civil, quer religioso. Aliás, pela pertinência do assunto, cabe aqui divagação: lembramo-nos de haver lido, salvo engano, na Folha de São Paulo, logo que fora promulgada a lei conhecida como dos Concubinos, magistral artigo do ilustre e sapientíssimo advogado Saulo Ramos, que, em tom jocoso até, após análise, demonstrou, em razão de diversos aspectos da indigitada lei, que a mulher, diante da possibilidade de união com um homem, deveria preferir ser "concubina" a ser "esposa", posto que na lei constava mais favorecimentos àquela que a esta.

Porém, na verdade, esse comportamento mais conformista da sociedade e mais aberto ensejou direitos aos filhos ilegítimos, ou seja, toda e qualquer criança gerada fora do casamento. Mas, o legislador omitiu-se, a nosso ver, numa questão crucial: diante da admissibilidade legal de o filho ilegítimo ter seus direitos garantidos constitucionalmente, em contrapartida, o "concubino" tendo dúvidas da paternidade, como apelaria à Justiça? E se tivesse registrado a criança e, posteriormente, viesse a ter conhecimento de que não era o pai?

Outro complicador adveio: a RT 371:96, quando estabeleceu ser irrevogável o reconhecimento, isto é, declarada a vontade de reconhecer o filho, o ato passaria a ser irretratável ou irrevogável, por implicar uma confissão de paternidade ou maternidade (apesar de que poderia vir a ser anulado se inquinado de vício de vontade, como erro, coação ou se não observasse formalidades legais).

Hoje, no entanto, essas questões, aos poucos, conforme vão sendo julgadas, estão criando jurisprudências de tal forma que a fria letra da lei começa a perder eficácia em virtude de vivermos novos tempos. Ao denominado "concubino", ia sedimentando-se o direito de contestar a legitimidade do filho. Ilustramos com um acórdão, dentre tantos já existentes:

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Tribunal de Justiça de São Paulo

Matéria: NEGATÓRIA

Recurso: AC 165116 1

Origem: SP

Órgão: CCIV 4

Relator: LOBO JUNIOR

Data: 30/04/92

Lei: CC 178

E M E N T A

NEGATÓRIA - PATERNIDADE - PROPOSITURA POR CONCUBINO - INAPLICABILIDADE DO PRAZO PARA CONTESTAÇÃO DA LEGITIMIDADE DO FILHO PREVISTO NO ART 178, PAR 3 DO CC - DISPOSIÇÃO EXCLUSIVA DO MARIDO - HIPÓTESE NA QUAL DEVE TER APLICAÇÃO A REGRA DO ART 178, V A E B DO CC - CARÊNCIA AFASTADA RP.

Assim, nossos tribunais passaram a entender que, na impossibilidade legal de o "concubino" exercer seu direito por não ser marido, requisito do artigo 178, parágrafo 3º, na hipótese, aplicar-se-ia a regra do mesmo artigo, no item V, alíneas "a" e "b":

V - a ação de anular ou rescindir os contratos, para a qual se não tenha estabelecido menor prazo; contado este:

a) no caso de coação, do dia em que ela cessar;

b) no de erro, dolo, simulação ou fraude, do dia em que se realizar o ato ou o contrato;

E tais entendimentos prosperaram:

Tribunal de Justiça de São Paulo

E M E N T A

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - Decadência - Inaplicabilidade do prazo do artigo 178, § 3º e sim do § 9º, inciso V, letra "b", do Código Civil -

Recurso provido para afastar a extinção do processo. (Apelação Cível n. 262.509 -1 - Santa Bárbara D´Oeste - 4ª Câmara Civil - Relator: Toledo

Silva - 05.10.95 - V. U.)

Tribunal de Justiça de São Paulo

E M E N T A

NEGATÓRIA - Paternidade - Retratação de ato de reconhecimento - Admissibilidade - Pedido consubstanciado em vício de consentimento (error in substantia) - Extinção do processo afastada - Recurso provido para ordenar o prosseguimento regular da ação. (Relator: Silveira Paulilo - Apelação Cível 148.096 -1 - Campinas - 17.09.91)

Tribunal de Justiça de São Paulo

E M E N T A

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - Intentada pelo genitor reconhecente -Coação - Defeito de consentimento que autoriza a demanda constitutivo-negativa - Código Civil, artigo 147 - Demanda que se inscreve no ordenamento jurídico-positivo - Impossibilidade jurídica repelida - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 281.313 -1 -

Paraguaçu Paulista - 3ª Câmara de Direito Privado - Relator: Ney Almada

- 12.03.96 - V. U.)

E passou, então, a ser reconhecida também a evolução da ciência e técnica médicas e da tese da perda de eficácia dos parágrafos 3º e 4º do artigo 178 do Código Civil:

Tribunal de Justiça de São Paulo

E M E N T A

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - Imprescritibilidade - Sentença de indeferimento da inicial, fundada no § 3º do artigo 178 do Código Civil, desconstituída para que a demanda tenha regular seqüência – Apelação provida. A orientação que se impõe, ante o atual estado da ciência e da técnica médicas, permitindo conclusão de, praticamente, certeza absoluta sobre a paternidade de biológica, é a da perda de eficácia dos §§ 3º e 4º do artigo 178 do Código Civil, não mais se configurando o óbice da prescrição (ou decadência) ao pedido de tutela jurisdicional direcionado à verdade da filiação. (Apelação Cível n. 64.598-4 - Barueri - 5ª Câmara de Direito Privado - Relator: Marcus Andrade - 14.05.98 - V. U.)

Superior Tribunal de Justiça

ACÓRDÃO RIP:00008966 DECISÃO:04-06-1991

PROC: RESP NUM:0004987 ANO:90 UF: RJ TURMA:04

RECURSO ESPECIAL

PUBLICAÇÃO

DJ DATA:28/10/1991 PG:15259

RSTJ VOL.: 00026 PG:00378

EMENTA

DIREITO CIVIL. AÇÃO NEGATORIA DE PATERNIDADE. PRESUNÇÃO LEGAL (CC, ART. 240). PROVA. POSSIBILIDADE. DIREITO DE FAMILIA. EVOLUÇÃO. HERMENEUTICA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

I - NA FASE ATUAL DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMILIA, E INJUSTIFICAVEL O FETICHISMO DE NORMAS ULTRAPASSADAS EM DETRIMENTO DA VERDADE REAL, SOBRETUDO QUANDO EM PREJUIZO DE LEGITIMOS INTERESSES DE MENOR.

II - DEVE-SE ENSEJAR A PRODUÇÃO DE PROVAS SEMPRE QUE ELA SE APRESENTAR IMPRESCINDIVEL A BOA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA.

III - O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PELA RELEVANCIA DA SUA MISSÃO CONSTITUCIONAL, NÃO PODE DETER-SE EM SUTILEZAS DE ORDEM FORMAL QUE IMPEÇAM A APRECIAÇÃO DAS GRANDES TESES JURIDICAS QUE ESTÃO A RECLAMAR PRONUNCIAMENTO E ORIENTAÇÃO PRETORIANA.

RELATOR

MINISTRO SALVIO DE FIGUEIREDO

OBSERVAÇÃO

POR MAIORIA, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO, VENCIDO O SR.

MINISTRO BARROS MONTEIRO.

VEJA: RTJ 78/534, RT 618/169, RTJ 92/330, RE 80505-PR (STF).

REFERÊNCIA

LEG: FED LEI:003071 ANO:1916 CC-16 CODIGO CIVIL ART:00340

INC:00001 INC:00002 ART:00337 ART:00338 ART:00343 ART:00346 ART:00341

ART:00342 ART:00178.

LEG: FED DEL:00457 ANO:1942 LICC-42 LEI DE INTRODUÇÃO AO CODIGO

CIVIL ART:00004 ART:00005.

LEG: FED CFD: ANO:1967 CF-67 CONSTITUIÇÃO FEDERAL ART:00119

INC:00003 LET: A LET: D.

LEG: FED LEI:005869 ANO:1973 CPC-73 CODIGO DE PROCESSO CIVIL

ART:00320 INC:00002 ART:00351.

LEG: FED CFD ANO:1988 CF-88 CONSTITUIÇÃO FEDERAL ART:00226

PAR:00001 ART:00227 ART:00105 INC:00003 LET: A LET: C.

LEG: FED LEI:006697 ANO:1979 ART:00005.

LEG: FED LEI:008069 ANO:1990 ART:00005 ART:00015 ART:00070 ART:00141.

Tribunal de Justiça de São Paulo

Matéria: NEGATÓRIA

Recurso: AC 180102 1

Origem: SF SUL

Orgão: CCIV 8

Relator: VILLA DA COSTA

Data: 23/12/92

EMENTA

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ASSENTO DE NASCIMENTO - ANULAÇÃO – ADM NEGATIVA PELO AUTOR DE SUA CONDIÇÃO DE PAI, RECONHECIDA PELA MAE DOS

MENORES, EM DEPOIMENTO PESSOAL - OCORRÊNCIA DE FALSIDADE IDEOLÓGICA CARÊNCIA AFASTADA - REMESSA DOS AUTOS A COMARCA DE ORIGEM DETERMINADARP.


III.UMA TESE

Em razão de uma ação de natureza ora in comento, em nossas pesquisas sobre a matéria, encontramos vários entendimentos na mesma esteira que corroboraram a tese nela defendida. Um deles era da lavra do Meritíssimo Juiz, Dr. Jorge Luís Costa Beber, experiente em Vara de Família, prestando serviços em Santa Catarina, de cujo trabalho, retirado do site Neófito, sugamos muita sabedoria.

Induvidosamente, desde 1917, quando da promulgação do nosso Código Civil, o Direito de Família tem evoluído e tanto o legislador ordinário como o constituinte sentiram a necessidade de modificar aquela primitiva codificação, adaptando o regramento substantivo às mutações sociais.

Ora, se o principal papel social do ordenamento jurídico é servir de freio, como única forma de se alcançar a coexistência pacífica, não se pode conceber que um ordenamento de tamanha envergadura não esteja afinado com a realidade social em curso, cuja gênese advém justamente do comportamento dos indivíduos coletivamente agrupados em sociedade.

Como escreve o cultíssimo Juiz catarinense, supracitado:

"A ordem jurídica necessita estar em constante transformação, amoldando-se aos anseios sociais. Não se pode imaginar uma legislação criada para se prolongar no tempo de forma hermética, excluída de qualquer alteração na sua incolumidade, ou, ainda, de interpretações mais avançadas, liberais e construtivas, decorrentes da própria e natural evolução da humanidade. Não foi outra, aliás, a manifestação do Presidente do Tribunal de Cassação da França, por ocasião das comemorações do centenário do Código Civil daquele país, ao salientar que "o juiz não deve dedicar-se obstinadamente a investigar qual foi, há cem anos, o pensamento dos autores do Código..., deve tratar de ver o que seria esse pensamento se o artigo fosse hoje redigido por eles." (RJTJSP 151/15). Nesse contexto, através de um escorço histórico, é possível elencar, dentre outras, as seguintes modificações na matéria familiar prevista no Código inicialmente editado: a Emenda Constitucional de 1977, que ensejou a publicação da Lei 6.515/77, instituindo o divórcio no Brasil, rechaçando o primitivo conceito do vínculo matrimonial indissolúvel, insculpido nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967; a emancipação feminina e sua paridade jurídica no âmbito conjugal; a igualdade entre os filhos, qualquer que seja a respectiva origem; o reconhecimento da sociedade conjugal de fato como entidade familiar; a Lei 7.841/89, que afastou as exceções previstas pelo art. 358 do Código Civil, facultando aos filhos incestuosos e adulterinos o ingresso da respectiva ação perquiritória; o Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90, acarretando profundas e viscerais modificações na matéria pertinente à infância e juventude e, finalmente, a Lei 8.560/92, que passou a disciplinar formas diversas de reconhecimento da paternidade. Não obstante a inocultável morosidade para o amadurecimento e posterior alteração legislativa de muitos dos institutos acima referidos, é certo que o Brasil vem procurando adequar as normas do Direito de Família aos avanços sociais, sendo lícito concluir que em pouco tempo deverá o Congresso Nacional enfrentar temas ainda obscuros na seara jurídica, como a alteração de sexo e modificação do respectivo registro civil, ou, ainda, a união entre pessoas do mesmo sexo.

Continua o Ilustre Magistrado:

"Mas, se é certo que não se pode negar a tendência natural e necessária de ajustamento da lei à realidade dos fatos e às necessidades sociais, não é menos correto afirmar que a norma também deve estar afinada com os avanços científicos envolvendo a matéria familiar, não só no tocante à bioética, tema ainda incipiente, mas sobretudo na questão genética, envolvendo as ações de investigação de paternidade e maternidade".

E segue:

"Nesse diapasão, duas questões merecem ser enfrentadas, ou seja, a ação negatória de paternidade proposta pelo pai registral e, por outro lado, a possibilidade de idêntica demanda ser aforada pelo pai reconhecido judicialmente, independentemente do prazo para respectiva pretensão rescisória. Com efeito, o exame sangüíneo pelo Sistema DNA, sem qualquer sombra de dúvidas, facilitou sobremaneira a solução das ações perquiritórias, sendo meio eficaz para clarificar os meandros que cercaram o conúbio sexual responsável pela respectiva concepção.

Ayush Morad Amar (in Investigação de Paternidade e Maternidade do ABO ao DNA. Cone Editora, pg. 169), discorrendo sobre a eficácia do exame ora em comento, assevera que "...em face da viabilidade da determinação do DNA, os métodos de identificação empregados até hoje não têm mais razão de prosseguir", arrematando, logo em seguida: "Para muitos, a investigação de paternidade pelos métodos ainda em vigor é até ofensiva diante do que representa a identificação pelo DNA."

Fernando Simas Filho (in A Prova na Investigação de Paternidade, 4ª, ed. Juruá, 1995, pg. 113), no mesmo sentido, comentando o grau de confiabilidade da citada espécie de prova científica (DNA), observa que tal exame "é definitivo, porque não deixa qualquer margem de dúvida. Ele é a resposta positiva aos sonhos de LANDSTEINER, e às manifestações nesse sentido por autores como AFRÂNIO PEIXOTO, ARNALDO AMADO FERREIRA, BARBIER, RACE, BREWER, OSWALDO PATARO MOREIRA e outros." E prossegue: "Esse exame pode ser efetuado determinando as seqüências de aminoácidos, em um par de alelos (locus simples), ou em diversos pontos e regiões dos cromossomos (locus múltiplo). No primeiro caso, é necessária a análise de diversos locus simples, para atingir a mesma potencialidade de dois loci múltiplos. Em qualquer dos casos, o resultado é a exclusão ou a confirmação da paternidade, com 100% de certeza. A única diferença, é que no primeiro caso - locus simples - o resultado é fornecido em probabilidade de paternidade, com freqüência acima de 99%; no segundo caso, o resultado afirma ou nega a paternidade!"

Derradeiramente, proclama o citado geneticista: "Freqüência acima de 99% (noventa e nove por cento), em se tratando de exame feito no DNA, é considerada universalmente como certeza científica!"

O Tribunal de Justiça deste Estado, em várias decisões, já consignou a importância da prova obtida pelo Sistema DNA, impendendo transcrever, como ilustração, as seguintes passagens:

"A perícia do DNA (sistema de determinação de seqüência de aminoácidos codificados do DNA) e da tipagem HLA (antígenos leucocitários de histocompatibilidade), é reconhecida de confiabilidade absoluta na determinação da paternidade mesmo após a morte do suposto pai...". (Ap. Cív. nº 48.433, de Sombrio, rel. Des. Nilton Macedo Machado, DJE nº 9.244, de 30.05.95, pg. 09);

E mais:

"A identificação digital genética do DNA constitui valiosíssimo recurso na distribuição da justiça, rápida e justa, possibilitando considerável economia de tempo e dinheiro." (Ap. Cív. nº 36.643, de Anchieta, rel. Des. Napoleão Amarante, DJE nº 8347, de 27.09.91, pg. 12);

E o Erudito Magistrado catarinense dá prosseguimento à sua exposição, sedimentando nossa tese, defendida, como dissemos, em ação recente:

"Destarte, diante da certeza que dimana do exame científico pelo Sistema DNA, reconhecida tanto na doutrina como na jurisprudência, não vejo como manter, em sede de ações declaratórias negativas, tanto da paternidade como da maternidade, o pensamento jurídico vigente há mais de oitenta anos atrás (sic), época em que foi promulgado o vetusto Código Civil Brasileiro. Reputo, pois, despidos de eficácia os artigos 338, 339 e 340 da lei substantiva vigente entre nós, máxime para impedir a declaração negativa almejada pelo pai registral, nos termos da primeira formulação acima expendida, que, na verdade, seja pelo desenvolvimento social, seja pela evolução jurídica, seja pelos avanços da ciência em matéria de hereditariedade genética, não há como continuar sustentando uma aparente verdade, decorrente de simples presunções legais, diga-se, relativas, como aquelas insculpidas nos artigos 338, 339 e 340 do Código Civil, em desfavor de uma prevalente verdade biológica. Com efeito, a redação do art. 338 suso referido inicia com a expressão "Presumem-se", ou seja, "imagina-se", "acha-se", "supõe-se", o que evidencia não existir certeza absoluta acerca da concepção tutelada pela referida norma, admitindo prova em sentido contrário, mormente em matéria de tamanha relevância, envolvendo direitos fundamentais de proteção à família e à filiação.

Com a autoridade de seu conhecimento jurídico, o Dr. Jorge Luís Costa Beber, enfatiza:

"Não bastasse isso, existe, atualmente, expresso comando legal que admite a investigação irrestrita do estado de filiação. Ele está previsto no art. 27 da Lei 8.069/90, sendo ainda de gizar que o art. 8º da Lei 8.560/92 estabelece que os registros anteriores à data de sua vigência poderão ser retificados por decisão judicial. Parece-me, então, diante das colocações até aqui expendidas, que a conjugação das normas constitucionais com as leis ordinárias que regulam o Direito de Família vigente afasta qualquer normativo pretérito com feição restritiva acerca da possibilidade de investigação plena da verdadeira paternidade. Logo, estimo que não só os artigos 338, 339 e 340 do Código Civil estariam revogados, mas também os artigos 344, 364 e 178, §§ 3º e 4º, inc. I, do mesmo Código, impendendo enfatizar que, não sendo admitida qualquer espécie de restrição ao estado de filiação, não há suporte jurídico para manutenção de prazos excessivamente reduzidos para obviar a respectiva negatória, que deve ser tida como imprescritível. Seria justo, diante dos avanços da ciência, após comprovada cientificamente a falsidade do pretérito registro de nascimento, ser mantida as declarações nele contidas? Interessa ao Estado manter uma formalidade registral falsa em detrimento de uma verdade biológica? Penso que não.

E, nessa esteira, a doutrinação do Ilustre Magistrado aduz, com sabedoria:

"A lei deve prestigiar a verdadeira paternidade, independentemente dos motivos que levaram os pais registrais a fazer declarações falsas, razão por que antigos conceitos sobre a irrevogabilidade do ato de reconhecimento, a partir da vigência das leis 8.069/90 e 8.560/92, devem ser revistos."

E mais:

"Destarte, se o pai registral, por força da aparente estabilidade do relacionamento que mantinha com a mãe biológica, cônjuge ou companheira, supõe que o filho gerado por esta última é seu, e, nesta contingência, o registra em seu nome, poderá, segundo penso, pugnar pela respectiva anulação do assento, dês que cientificamente comprovado não ser ele o verdadeiro pai do rebento. O que houve, desenganadamente, foi uma declaração de vontade não correspondente ao verdadeiro ato volitivo do pai registral, pois agiu de modo contrário ao que certamente agiria se conhecesse, na época do registro, a verdade sobre a concepção. Ressalte-se, ainda, que o reconhecimento de filho nada mais é do que um ato jurídico stricto sensu, sendo certo que, partindo a respectiva declaração de uma verdade viciada, estaria ela sujeita a competente desconstituição por vício de consentimento, incidindo, no particular, a norma insculpida no art. 88 do Código Civil, independentemente do prazo decadencial, conforme já referido. Gize-se, ainda, que a matéria ora em exame encontra respaldo no Direito Comparado, pois tanto o Direito Positivo francês (art. 399, 1ª parte) como o italiano (art. 263, 1ª alínea), reconhecem a legitimação do pai registral para impugnar o respectivo reconhecimento, efetuado com base em vício de consentimento.

Assim, na hipótese por primeiro aventada, ou seja, a ação negatória aforada pelo próprio pai registral, não existe, atualmente, óbice que impeça sua propositura e conseqüente acatamento jurisdicional, dês que comprovado que o caráter declaratório do reconhecimento efetuado não condiz com a verdade biológica da respectiva concepção, o que necessariamente deverá ocorrer mediante prova científica (DNA). (grifos nossos)

Ora, indagamos, pois: haveria verdadeira Justiça, considerando todo o exposto até o momento, compelir alguém, como, por exemplo, um "concubino", por causa de um registro assentado fraudulentamente, ou por coação, ou, ainda, em momento levado pela emoção, de cunho irracional, a reconhecer filho, a pagar alimentos, se extinta a união estável, e, pela implicação sucessória, a dividir seus bens com quem, por algum motivo, não seja realmente seu filho? Seria moralmente aceitável?

Se o fim supremo do direito, segundo Ihering ( in A Evolução do Direito, trad. de Abel d´Azevedo; A Luta pelo Direito, trad. Tavares Bastos) é a paz social, será impossível a obtenção de tal desiderato com base numa verdade jurídica falsa, contrária a uma prevalente verdade biológica

O regramento jurídico da família, segundo Sérgio Gischkow Pereira (Tendências Modernas do Direito de Família, RT 628/19), citando Miguel Reale, "não pode insistir, em perniciosa teimosia, no obsessivo ignorar das profundas modificações consuetudinárias, culturais e científicas; petrificado, mumificado e cristalizado em um mundo irreal, sofrerá do mal da ineficácia."

Belmiro Pedro Welkter (Coisa Julgada na Investigação de Paternidade, Jornal da Síntese, setembro/98, nº 19, pg. 10), Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul, por meio de trabalho publicado pela Editora Síntese, sustenta que a sentença proferida na ação de investigação de paternidade, enquanto não esgotadas todas as possibilidades probatórias para o alcance da verdade real, dentre elas o exame por DNA, ostentará feição unicamente formal, e não material, resultando daí a possibilidade de revisão sempre que provas melhores forem obtidas.

Fernando Simas Filho, na obra já citada, dá a dimensão exata da questão: "se é desumano não ter o filho direito à paternidade, injusta também é a declaração de uma filiação inexistente."

E, completando seu ensinamento, diz o Ilustre e culto Magistrado referido:

"Necessário, pois, que a legislação processual atinente à espécie seja urgentemente revista, evitando, assim, a manutenção de decisões judiciais que aberram contra o bom senso e contra a natureza da existência humana, chancelando verdadeiras imoralidades. O juiz, como se sabe, não deve subserviência à lei, mormente àquelas que se lhe afiguram injustas, incidindo, no particular, o pensamento de Viktor Cathrein, expoente da concepção tomista do Direito Natural, para quem o conteúdo moral da norma de Direito é essencial, não podendo ela (a lei) prevalecer contra o valor ético apenas e tão-somente por razões de vigência técnico-normativas ou injunções fáticas. Daí as ponderações que realizou sobre a ação do juiz: "Se a justiça da lei é apenas duvidosa, o juiz pode, em regra, decidir segundo a lei; se, ao contrário, a injustiça da lei é manifesta, não pode cooperar em sua execução. A ordem jurídica natural constitui o limite intransponível da ordem positiva."

Eis a tese!


IV.CONCLUSÃO

Pelo exposto, concluímos ter o cidadão ou a cidadã direito de contestar na Justiça a legitimidade de um filho, em questão de paternidade ou maternidade. Quer embasado na hipótese de erro, dolo, simulação ou fraude, quer pela desconfiança de que o filho possa ser ilegítimo, com base, claro, em fato objetivo e considerável juridicamente.

A irrevogabilidade e irretratabilidade do reconhecimento de um filho, dependendo, obviamente, do caso específico, não deve encontrar mais respaldo jurídico. Há, infelizmente, muitos casos em que o homem registra o filho e, posteriormente, vem a ter conhecimento de que não é o pai. Nada mais justo do que, diante da evolução do direito concernente à família, e pela relevância da matéria ( ordem familiar), abrir-se oportunidade para que o cidadão ou cidadã, seja ele marido, esposa, concubino ou concubina, quando se tratar de legitimidade ou não de filho, procurar a Justiça e verificar se sua pretensão é procedente ou improcedente.

E, em nosso entendimento, estão sem eficácia o artigo 178 e parágrafos citados, além dos seguintes artigos, todos do Código Civil:

Art. 338 - Presumem-se concebidos na constância do casamento:

I - os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 339);

II - os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.

Art. 339 - A legitimidade do filho nascido antes de decorridos os 180 (cento e oitenta) dias de que trata o nº I do artigo antecedente não pode, entretanto, ser contestada:

I - se o marido, antes de casar, tinha ciência da gravidez da mulher;

II - se assistiu, pessoalmente, ou por procurador, a lavrar-se o termo de nascimento do filho, sem contestar a paternidade.

Art. 340 - A legitimidade do filho concebido na constância do casamento, ou presumido tal (arts. 337 e 338), só se pode contestar, provando-se:

I - que o marido se achava fisicamente impossibilitado de coabitar com a mulher nos primeiros 121 (cento e vinte e um) dias, ou mais, dos 300 (trezentos) que houverem precedido ao nascimento do filho;

II - que a esse tempo estavam os cônjuges legalmente separados.

Art. 364 - A investigação da maternidade só se não permite, quando tenha por fim atribuir prole ilegítima à mulher casada, ou incestuosa à solteira (art. 358).

por todos os motivos expostos neste simples e despretensioso escorço que, logicamente, não pretende ter aura de verdade absoluta, mas apenas tese defendida em ação negatória de paternidade.

Sobre o autor
Wilson Paganelli

advogado e professor em Castilho (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGANELLI, Wilson. A ação negatória de paternidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2499. Acesso em: 5 nov. 2024.

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