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Efeito vinculante e suas conseqüências para o ordenamento jurídico

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Agenda 01/07/1999 às 00:00

CONCLUSÕES

Parece ser consenso para os agentes políticos, os operadores do direito, e até para o povo laico em geral, seu principal beneficiário, a necessidade imperiosa de uma Reforma ampla e inadiável do Poder Judiciário, de forma a evitar que justiça tardia como sói acontecer represente na prática o mesmo que justiça inexistente. A tese da súmula vinculante não pode ser dissociada do contexto da Reforma do Judiciário no qual se insere com luz própria. Todavia, é demasiado simplista pensar seja ela uma panacéia para todos os males do Judiciário. Se, por certo prisma, há um diagnóstico preciso dos problemas estruturais intrínsecos á atividade judicante, por outro nada indica a priori seja a súmula vinculante como delimitada nas propostas de emenda constitucional analisadas o remédio mais apropriado, passível de ser administrado sem trazer consigo graves efeitos colaterais para todo o corpo social.

A fonte imediata da súmula vinculante, como examinamos, remonta ao direito anglo-americano no que concerne á vinculação ao precedente emanado das Cortes Superiores, mas as premissas e fundamentos do stare decisis na família common law são completamente diversos daqueles que estariam na base ideológica da súmula vinculante. A aplicabilidade do precedente é de observância obrigatória nos Estados Unidos em poucos casos, sendo de caráter meramente persuasivo na maioria deles. E quando há de ser vinculante, o é por força de um exercício de hermenêutica da parte do magistrado, vinculação essa dimanada de um costume ou tradição de julgamentos eqüanimes em razão da boa aplicação de um princípio norteador em casos análogos. Mesmo nestes países onde vige a regra do stare decisis, nota-se uma tendência crescente á maleabilidade da filiação aos precedentes, e uma progressiva ampliação do uso da legislação escrita.

A nosso ver, no caso brasileiro, parece evidente a tentativa de se importar e adaptar, uma vez mais, um modelo jurídico de outros países na esperança de fazer valer este instituto híbrido como mecanismo para assegurar uma autoridade imediata e incontrastável ás decisões sumuladas do Supremo Tribunal Federal, ou de todos os Tribunais Superiores. Se é fato público e notório a multiplicação insensata de recursos versando sobre matéria idêntica, superlotando inutilmente as Cortes Superiores com o julgamento de questões previamente decididas, por outro lado há que se perceber o cunho verticalizante e autoritário do novo mecanismo jurídico que se está propondo, com sérias e decisivas implicações para todo o sistema jurídico nacional. Forçoso reconhecer também que, adotada a súmula vinculativa, ela recairia concentradamente sobre as matérias relacionadas com a competência da Justiça Federal, seja em razão da matéria ou em razão da pessoa, uma vez constatado ser a União e suas autarquias os principais protagonistas do abarrotamento de recursos e ações ajuizados perante o STF e o STJ.

Em favor da adoção do efeito vinculativo para as súmulas militam várias e boas razões argüíveis de ordem pragmática: unificação ou homogeneização da jurisprudência, celeridade processual, velocidade e eficiência dos recursos, economia, segurança jurídica, previsibilidade do resultado e racionalização na prestação jurisdicional.

De outra parte, entretanto, se a súmula vinculante pretende ser, no momento, a principal solução cogitada para a consecução de tais objetivos no sentido de se aperfeiçoar e agilizar o aparelho judiciário, não é certo que se vá lográ-los sem comprometer-se uma série de garantias e prerrogativas existentes no texto constitucional, ali consignadas como proteção aos jurisdicionados em um Estado Democrático de Direito.

A uma, porque tolheria a independência e a liberdade de julgar dos magistrados, mormente os das instâncias inferiores. Aprovado o efeito vinculante como consta de alguma das propostas legislativas em curso, esta se imporia ao resto do Poder Judiciário e órgãos do Poder Executivo com força de lei. Sendo previsto, inclusive, em um dos projetos, crime de responsabilidade para o "agente político" que reiteradamente descumpra o comando vinculativo emanado da súmula. Neste caso, o juiz sem liberdade de se pautar pelo seu livre-convencimento converter-se-ia em um mero repetidor burocrata de súmulas editadas pelos Tribunais Superiores. Esta situação constitui, no mínimo, um retrocesso, vez que estaríamos muito próximos de reeditar no âmbito da magistratura o chamado "crime de hermenêutica", tão combatido pelo insigne Ruy Barbosa, nos princípios da República.

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A duas, porque conflita com o princípio da separação dos poderes   (arts. 2° e 60, § 4°, inc. III), cláusula pétrea constitucional, na medida em que os Tribunais não podem editar regras gerais e abstratas, com validade universal, e poder prescritivo próprio das normas abstratas, uma vez que lhes cabe precipuamente o papel de decidir a lei aplicável á espécie. Ao interpretar a lei com caráter geral e vinculativo os Tribunais estariam se imiscuindo na área de competência constitucional do Poder Legislativo, convertendo-se em autênticos legisladores anômalos, posto que, na prática, a vontade do intérprete teria eficácia de lei; fixando um entendimento praticamente insusceptível de discussão, por exemplo, em matéria constitucional de jurisdição do Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, o § 1° do artigo 98 proposto pelo substitutivo á Emenda Constitucional n. 96/92, dispõe que "a súmula vinculante terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas...". Dessarte, o princípio dos checks and balances  (freios e contra-pesos) inerente á estrutura tripartite dos poderes harmônicos e independentes entre si  (art. 2º CF),adotada em nosso ordenamento jurídico, restaria seriamente comprometido.

A três, porque as decisões vinculantes poderão restringir grandemente o acesso á justiça  (art. 5°, inc. XXXV CF), sendo certo que a vinculação compulsória dos juízos inferiores ás súmulas emanadas das Cortes Superiores, dificulta senão impede a rediscussão de matérias por estas previamente decididas em tese, inviabilizando a possibilidade de manifestação judicial sobre casos futuros. Paralelamente, o efeito vinculante conspira contra o duplo grau de jurisdição, porque, do mesmo modo explicitado, impediria na prática a reapreciação da sentença no caso concreto. Assim, de que adiantaria ao jurisdicionado recorrer á superior instância em busca de revisão de julgado, se já conhece antecipadamente o resultado a que aquela estará compelida a se submeter? O princípio do juiz natural, e por conseqüencia, o do devido processo legal, também se vêem afrontados, supondo-se que o juiz de primeira instância, por diverso que seja seu entendimento na aplicação da lei ao caso sub judice, terá de se curvar ao poder vinculante da súmula, pouco adiantando sua apreciação ou reapreciação da quaestio juris, porque conhecida a súmula, conhecer-ce-á de antemão as decisões de todos os casos concretos que se lhe assemelhem.

Em diversos momentos de nossa história se adotou modelos de efeito vinculativo das decisões judiciais, desde a época do império com os chamados "assentos" das Casas de Suplicação portuguesas até mais recentemente com a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Chega-se facilmente à conclusão de nenhum daqueles haver logrado subsistir ao curso das transformações sociais, á exceção da Ação Declaratória de Constitucionalidade, porquanto é instituto de origem recente   (1993). O efeito vinculativo em sede constitucional adotado para esta última, apesar de timidamente empregado desde a época de sua implantação, nas poucas vezes que o é tem se revelado um poderoso instrumento de coarctação de decisões judiciais desfavoráveis ao Poder Público, como no exemplo da suspensão da eficácia de todas as antecipações de tutela contra a Fazenda Pública, em medida cautelar pronunciada no bojo da ação declaratória de constitucionalidade N° 4, prestando-se como amostra ou ensaio das repercussões resultantes em caso de adoção da vinculação plena no sistema jurídico brasileiro. De qualquer modo, se a ação declaratória foi contemplada com a atribuição de efeito vinculante via emenda constitucional, por que não estendê-lo por sua vez, no âmbito do controle concentrado, á ação direta de inconstitucionalidade? Se a intenção com o efeito vinculante consiste em atribuir-se maior efetividade aos julgados da Suprema Corte em temas constitucionais, como forma de se prestigiar sua missão institucional de guardião da Carta Política, por que, então, o duplo tratamento a vias tão próximas?

Por certo, ainda que o novo instrumento proposto esteja envolto sob o auspicioso manto protetor da celeridade processual e da manutenção da segurança jurídica, é fato, nenhuma garantia haverá de que serão somente jurídicos os fundamentos das decisões vinculantes, sumuladas ou não, inexistindo interferências políticas no exame da matéria, ao sabor das pressões de momento. Ao contrário, aquela far-se-á muito mais presente na medida em que o julgamento esteja concentrado em um único órgão. Sobretudo, se retivermos em memória o velho brocardo que reza: "no Brasil, tudo é porque sempre foi"; e, considerando o nosso histórico em questões hermenêuticas, as preocupações não são absolutamente destituídas de fundamento.

Diante do exposto, após analisar e sopesar todos os argumentos elencados, acreditamos que o sistema jurídico-político brasileiro assentado sobre fortes bases legalistas-positivistas não está o suficiente maturado para acolher em seu bojo tal dispositivo vinculativo, pelo menos da forma imperfeita e permissiva como consta dos projetos de emenda constitucional em trâmite atualmente, havendo de nossa parte um fundado receio quanto ao poder e o alcance a ele conferidos nestas propostas. Mormente, diga-se de passagem, por nenhuma deles incluir em seus textos lastros adicionais de proteção aos jurisdicionados, valendo-se seja de mecanismos atenuadores do rigor da regra, seja de mecanismos outros ensejadores de maior espaço criativo para o arejamento dos julgados, de forma a evitar sua tendência á cristalização, a exemplo da técnica do distinguishing do modelo de stare decisis americano.

Ademais, carecemos, primordialmente, de superiores valorização e incentivo aos Órgãos Jurisdicionais, aos serviços auxiliares e ao Ministério Público, representados em investimentos substanciais no aperfeiçoamento de seus integrantes, investimentos estes essenciais a uma Administração da Justiça comprometida com a melhoria progressiva da qualidade e da celeridade na prestação jurisdicional. De fato, pouco adianta, cremos nós, aventurar-se em novos institutos jurídicos, por melhores que sejam suas construções teóricas, se não investirmos objetiva e pragmaticamente no elemento humano, cerne da megaestrutura da Justiça, a um só tempo sua atividade-meio e atividade-fim. Mais que os componentes do aparelho judiciário, quem aufere as maiores vantagens com o prestígio da Justiça não é outra senão sua destinatária: a própria sociedade; uma vez que magistrados livres e independentes são sua única garantia contra os excessos e interferências reprováveis do Poder Estatal.


NOTAS

1) De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico (Vols. III e IV). 1 ed. univ. Rio de Janeiro: Forense, 1987,p. 297.

2) Sifuentes, Mônica Jacqueline. A extinção da súmula vinculante no Direito Português. Correio Brasiliense, 30/11/1998.

3) In Ação Declaratória de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 111.

4)Ibidem, p. 228.

5)Apud Barros, Marco Antonio. Anotações sobre o Efeito Vinculante. Revista dos Tribunais. Ano 86 /V. 735. jan. 1997, p. 101.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, Antonio Carlos A.. Efeito vinculante e suas conseqüências para o ordenamento jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/252. Acesso em: 5 nov. 2024.

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