6. SERVICO PÚBLICO
A definição comumente difundida no meio jurídico, sobre serviço público, é a de Celso Antônio Bandeira de Mello.
Vejamos:
“Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelas administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. – 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, página 679).
Maria Sylvia Zanella Di Pietro expõe o conceito de serviço público que julga mais correto, após discorrer sobre o serviço público em sentido amplo e em sentido restrito:
“Daí a nossa definição de serviço público como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 24ª ed. – São Paulo: Atlas, 2011, pág. 424).
Depreende-se que ambos os doutrinadores concordam que o serviço público exige uma atividade materialmente fruível pelos usuários ou administrados.
Os serviços notariais e de registro exercem atividade tipicamente jurídica. Materialmente não oferecem uma atividade que possa ser fruída pelos administrados. Dessa forma, para os nobres doutrinadores citados não poderiam ser enquadrados no conceito de serviço público.
Com o devido respeito, discordo do conceito exposto pelos citados doutrinadores, e filio-me à posição adotada por Hely Lopes Meirelles e Edmir Netto de Araújo.
Vejamos a posição do primeiro administrativista:
“Serviço público é todo aquele prestado pela Administração Pública ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. – 37ª ed. São Paulo : Malheiros, 2011, pág. 364 e 365)
Edmir Netto de Araújo assim conceitua os serviços públicos:
“...serviço público é toda atividade exercida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, para a realização direta ou indireta de suas finalidades e das necessidades ou comodidades da coletividade, ou mesmo conveniências do Estado, tudo conforme definido pelo ordenamento jurídico, sob regime peculiar, total ou parcialmente público, por ele imposto” (ARAUJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. – São Paulo: Saraiva, 2005, página 106).
A atividade notarial e de registro é verdadeiro serviço público. Embora exercido por particulares, a atividade jurídica visa garantir segurança jurídica, paz social, fundamentos da existência do próprio Estado. Os registros públicos e os tabelionatos constituem verdadeiras necessidades da sociedade. Historicamente, tais serviços nasceram da sociedade, e não foram elaborados em bancas acadêmicas. A exigência da forma escrita para a comprovação dos negócios jurídicos impôs a existência do notariado.
Em contrario sensu, o Ministro Carlos Ayres Britto diverge:
“Numa frase, então, serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Inscrevem-se, isto sim, entre as atividades tidas como função pública lato sensu, a exemplo das funções de legislação, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo domínio estatal, passam a se confundir com serviço público.” (ADI 3.643, voto do Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 8-11-2006, Plenário, DJ de 16-2-2007).
E continua o Ministro Carlos Ayres Britto, dissertando sobre o regime jurídico dos serviços notariais e de registro:
"Regime jurídico dos serviços notariais e de registro: a) trata-se de atividades jurídicas próprias do Estado, e não simplesmente de atividades materiais, cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação. Traspassada, não por conduto dos mecanismos da concessão ou da permissão, normados pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos; b) a delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais; c) a sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público; d) para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, não por adjudicação em processo licitatório, regrado pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público; e) são atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações interpartes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito; f) as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal." (ADI 3.151, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 8-6-2005, Plenário, DJ de 28-4-2006.)
Divergindo, o Superior Tribunal de Justiça considerou como serviço público a atividade notarial e de registro:
“ADMINISTRATIVO – SERVENTIA NOTARIAL E REGISTRAL – REGIME DE DIREITO PÚBLICO – CUSTAS E EMOLUMENTOS – NATUREZA JURÍDICA DE TRIBUTO – TAXA REMUNERATÓRIA DE SERVIÇO PÚBLICO – NÃO INCIDÊNCIA DA IMPENHORABILIDADE LEGAL CONTIDA NO ART. 649, IV DO CPC.1. O cerne do recurso especial consiste em saber, em primeiro lugar, qual a natureza jurídica das custas e emolumentos de serviços notariais e registrais, e, após a obtenção da resposta, se tais valores estão protegidos pela impenhorabilidade legal.2. As serventias exercem atividade por delegação do poder público, motivo pelo qual, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se, na verdade, a um regime de direito público. As custas e emolumentos devidos aos serventuários os são em razão da contraprestação do serviço que o Estado, por intermédio deles, presta aos particulares que necessitam dos serviços públicos essenciais prestados pelo foro judicial ou extrajudicial.3. Os valores obtidos com a cobrança das taxas e emolumentos são destinados à manutenção do serviço público cartorário, e não simplesmente para remunerar o serventuário. Se tais valores tivessem a finalidade exclusiva de remunerar o serventuário, que exerce função pública, o montante auferido não poderia exceder o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art. 37, XI da CF.4. Sendo assim, tendo as custas e emolumentos de serviços notariais natureza jurídica tributária, na qualidade de taxas destinadas à promover a manutenção do serviço público prestado, e não simplesmente à remuneração do serventuário, não há que se falar na incidência da impenhorabilidade legal prevista no art. 649, IV do CPC.5. Não há ilegalidade, portanto, na decisão do juiz inicial que, nos autos de uma ação cautelar determinou a indisponibilidade de parte dos recursos da recorrente, obtidos na serventia em que era titular, com o garantir o ressarcimento dos danos causados ao erário, em ação de improbidade administrativa.Recurso especial improvido.(Processo: REsp 1181417/SC RECURSO ESPECIAL 2010/0032835-6, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS (1130), Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA TURMA, Data do Julgamento: 19/08/2010, Data da Publicação/Fonte: DJe 03/09/2010).”
O Ministro Joaquim Barbosa reconhece a natureza de serviço público dos serviços notariais e de registro:
"Incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. Constitucionalidade. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.1 da Lista Anexa à LC 116/2003, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo ISSQN. (...) As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva. A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não tributação das atividades delegadas." (ADI 3.089, Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 13-2-2008, Plenário, DJE de 1º-8-2008).
Assim, como visto, não há consenso sobre o enquadramento das atividades notariais e de registro como serviço público. Nesta obra, entretanto, posiciono-me no sentido de que tais atividades constituem verdadeiro serviço público.
6. ENQUADRAMENTO FUNCIONAL
O estudo da profissão do Notário e do Registrador demanda analise jurisprudencial e doutrinária. A construção, no Brasil, do enquadramento funcional de tais profissões ocorreu paulatinamente.
Inicialmente, o entendimento majoritário era voltado no sentido de que eles estavam inseridos dentro do quadro de funcionários públicos.
A Constituição Federal de 1988 tratou de forma específica dos serviços notariais e de registro. Retirou do corpo administrativo do Estado o exercício de tais funções. Escolheu o constituinte, como dito, pela delegação. O particular, o notário ou o registrador, ao exercer a atividade, o faz sob o regime jurídico administrativo do ato jurídico unilateral do Poder Público: a delegação. Não há que se falar em funcionário público por delegação. E isso é reforçado pela Lei dos Notários e Registradores.
A Lei nº 8.935/94, no art. 3º expõe que o “Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”.
Outra passagem, já citada, corrobora a exclusão do quadro de funcionários públicos: “Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei”.
Sobre a história do tratamento legal conferido aos Notários e aos Registradores, Narciso Orlandi explana:
“Em nosso sistema, os serviços notariais e de registro sempre foram considerados públicos. Até 1994, com a Lei 8.935, de 18 de novembro, eram prestados por pessoal vinculado ao Poder Judiciário. Embora não fossem funcionários públicos, porque não eram propriamente estatutários, também não eram celetistas. Aplicava-se-lhes o estatuto dos funcionários públicos, mas apenas supletivamente. O sistema de admissão, a estabilidade, o regime disciplinar e a aposentadoria tinham normas próprias, constantes de provimentos e resoluções do próprio Poder Judiciário. Os titulares dos serviços estavam sujeitos ao mesmo regime. Vinculados diretamente ao Poder Judiciário, contratavam seus funcionários pelas normas já referidas. Os serviços eram chamados extrajudiciais, como forma de separá-los dos serviços judiciais, isto é, daqueles ligados à atividade jurisdicional. Cartórios judiciais e cartórios extrajudiciais compunham, assim, a infra-estrutura do Poder Judiciário, cada qual com seu campo de atuação. Os estabelecimentos em que os serviços extrajudiciais eram prestados chamavam-se cartórios extrajudiciais e cartorários eram os funcionários” (ORLANDI NETO, Narciso. Serviços notariais e de registro. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.). Corregedorias do poder judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, página 333).
Entendiam que tais profissionais integravam o quadro de serventuários da Justiça, e, por consequência, o quadro de funcionários do Poder Judiciário.
É o que leciona Leonardo Brandelli:
“A legislação, fonte forma primeira do ordenamento jurídico pátrio, tem comumente incluído o notário na categoria dos serventuários da Justiça, considerando-o, pois, funcionário público, o que de forma inquestionável foi fator decisivo a firmar a jurisprudência dominante, a qual seguia os preceitos legais. Assim, o Código de Organização Judiciaria do Rio Grande do Sul, instituído pela Lei n. 7.356, de 1º de fevereiro de 1980, em seu art. 90, reza: “Os serviços auxiliares da justiça são constituídos pelos ofícios que integram o Foro judicial e o extrajudicial e, bem assim, os das Secretarias dos Tribunais de Justiça”. No art. 103 do mesmo diploma legislativo tem-se o que segue: “São servidores do Foro Extrajudicial: ... II – sob regime privatizado de custas: 1 – Tabeliães” (BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do direito notarial. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2007, página 48).
Foi a Lei nº 8.935/94 que tratou de tentar enquadrar os notários e os registradores fora da Administração Pública direta ou indireta, colocando-os em um campo próprio. E a delegação, o regime jurídico da transferência da execução dos serviços públicos em comento é a chave, como dito, para a solução do impasse.
Em verdade, o Tabelião e o Registrador pertencem à categoria dos particulares em colaboração com o Poder Público.
O art. 236, da Constituição Federal de 1988 expõe que tais serviços serão prestados por particulares, por delegação do Poder Público.
Na classificação doutrinária de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“Nesta categoria entram as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado, sem vínculo empregatício, com ou sem remuneração. Podem fazê-lo sob títulos diversos, que compreendem: 1. Delegação do Poder Público, como se dá com os empregados das empresas concessionarias e permissionárias de serviços públicos, os que exercem serviços notariais e de registro (art. 236 da Constituição), os leiloeiros, tradutores e intérpretes públicos; eles exercem função pública, em seu próprio nome, sem vínculo empregatício, porém sob fiscalização do Poder Público. A remuneração que recebem não é paga pelos cofres públicos mas pelos terceiros usuários do serviço” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 24ª ed. – São Paulo: Atlas, 2011, pág. 533 e 534).
Segundo o conceito de servidor público exposto pelo mesmo doutrinador, os Tabeliães e Registradores não podem ser considerados servidores públicos, pois não são remunerados pelos cofres públicos e não possuem vínculo empregatício com o poder delegante. Para ele, “são servidores públicos, em sentido amplo, as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 24ª ed. – São Paulo: Atlas, 2011, pág. 528).
Pertencem, no entanto, ao quadro de agentes públicos. É o que leciona Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Esta expressão – agentes públicos – é a mais ampla que se pode conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente.
Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente público. Por isto, a noção abarca tanto o Chefe do Poder Executivo (em quaisquer das esferas) como os senadores, deputados e vereadores, os ocupantes de cargos ou empregos públicos da Administração direta dos três Poderes, os servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas públicas e sociedades de economia mista nas distintas órbitas de governo, os concessionários e permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os requisitados, os contratados sob locação civil de serviços e os gestores de negócios públicos.
Dentre os mencionados, alguns integram o aparelho estatal, seja em sua estrutura direta, seja em sua organização indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações governamentais). Outros não integram a constelação de pessoas estatais, isto é, são alheios ao aparelho estatal, permanecem exteriores a ele (concessionários, permissionários, delegados de função ou ofício público, alguns requisitados, gestores de negócios públicos e contratados por locação civil de serviços)” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. – 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, página 244 e 245).
E o nobre doutrinador classifica os Tabeliães e os Registradores como integrantes da classe dos particulares em colaboração com a Administração. Diverge de Maria Sylvia Zanella Di Pietro apenas quanto ao aspecto de que tais profissionais agem em colaboração com a Administração, e não com o Poder Público, como defendido por esta doutrinadora.
Vejamos as colocações de Celso Antônio Bandeira de Mello, que disserta com certa profundidade sobre o tema, que merecem ser colacionadas na íntegra, pois constituem verdadeiro norte administrativista da matéria aqui abordada:
“Esta terceira categoria de agentes é composta por sujeitos que, sem perderem sua qualidade de particulares – portanto, de pessoas alheias à intimidade do aparelho estatal (com exceção única dos recrutados para serviço militar) -, exercem função pública, ainda que às vezes apenas em caráter episódico.
Na tipologia em apreço reconhecem-se:
(...)
e) delegados de função ou ofício público, que se distinguem de concessionários e permissionários em que a atividade que desempenham não é material, como a daqueles, mas é jurídica. É, pois, o caso dos titulares de serventias da Justiça não oficializadas, como notários e registradores, ex vi do art. 236 da Constituição, e, bem assim, outros sujeitos que praticam, com o reconhecimento do Poder Público, certos atos dotados de força jurídica oficial, como ocorre com os diretores de Faculdades particulares.
Anote-se que cada “serviço” notarial ou registral, constitui-se um plexo unitário, e individualizado, de atribuições e competências públicas, constituídas em organização técnica e administrativa, e especificadas quer pela natureza da função desempenhada (serviços de notas e de registro), quer pela área territorial onde são exercidos os atos que lhes correspondam.
Inobstante estejam em pauta atividades públicas, por decisão constitucional explícita elas são exercidas em caráter privado por quem as titularize, como expressamente o diz a Constituição no artigo referido.
Tal titularizaçãoprocede, consoante igualmente explícita dicção constitucional, de um ato de “delegação”. A delegação – justamente por sê-lo – não se confunde com uma simples habilitação, ou seja, com um ato meramente recognitivo de atributos pessoais para o desempenho de funções de tal gênero. Dita habilitação (aferida no concurso público que a precede, cf. § 3º do art. 236 da CF e que, demais disto, aponta o melhor dos candidatos) é apenas um pressuposto da investidura nas funções em causa” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Curso de Direito Administrativo. – 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, página 250, 251 e 252).
Hely Lopes Meirelles enquadra tais profissionais dentro da categoria de agentes públicos delegados.
Vejamos:
“Agentes delegados: são particulares – pessoas físicas ou jurídicas, que não se enquadram na acepção própria dos agentes públicos – que recebem a importância da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios ou cartórios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos; as demais pessoas que recebam delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. – 37ª ed. São Paulo : Malheiros, 2011, pág. 81 e 82).
Entretanto, melhor se adequa às características de tais profissionais a nomenclatura de profissões públicas independentes. Isso não afasta a classificação tradicional acima exposta, apenas a específica.
É que afirma Luís Paulo Aliende Ribeiro:
“Caracteriza-se, por opção do constituinte originário, o exercício privado de funções públicas, as quais, no caso das notas e dos registros, são desempenhadas de forma singular por integrantes do que pode chamar, com amparo nas doutrinas espanhola e portuguesa, de profissões oficiais ou profissões públicas independentes e que se inserem na ampla categoria de agentes públicos, nos termos acolhidos de forma pacífica pela doutrina brasileira de direito administrativo, que sempre os reconheceu como particulares em colocação com o Poder Público...” (RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. – São Paulo : Saraiva, 2009, p. 80).
E Ramón Parada disserta:
“A caballo entre lasprofesionesliberales y los funcionários propriamente dichos se encuentramotras categorias de personal, a las que cuadraperfectamenteelcalificativo de profesionesoficiales, como los notários y los Registradores de laPropriedad. Suregulacion básica está contenida em laleydel Notariado y em laLey Hipotecaria y Reglamentos que ladesarrollan. Todos ellosson selecionados y nombrados por el Estado, a través, normalmente, del sistema de oposición, pero desempeñamsufuncion de forma similar a losprofesionalesliberales, pues no percibensuretribucion a cargo de lospresupuestosdel Estado, sino diretamente de los particulares por médio de um arancel que se apruebareglamentariamente”. (PARADA, Ramón. Derecho administrativo II – organización y empleo público. 17ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2004, página 437)
7. CONCLUSÃO
É possível afirmar que a característica mais marcante no regime jurídico administrativo aplicável aos notários e aos registradores é a independência.
A Constituição Federal de 1988, no art. 236, deixou explícito que a tais profissionais é garantida a independência.
E ela pode ser dividida no aspecto de gerenciamento administrativo e financeiro da unidade notarial e registral, e no aspecto jurídico.
O Tabelião e o Registrador tem o direito de livremente gerenciar a unidade que lhes foi delegada. Obviamente que essa liberdade é restrita às disposições legais, e deve ser exercida dentro do que é adequado para o exercício privado de funções públicas. Portanto, o norte sempre será o bem público, o interesse público.
A independência jurídica de tais profissionais é um dos pilares para o cumprimento das disposições legais aplicáveis aos serviços notariais e de registro. Isto porque, como profissionais públicos independentes que são, os Notários e os Registradores não podem sofrer ingerências quaisquer.
É natural do ser humano que a frustração de determinada expectativa nos incite a agir de forma fora dos padrões da correção. E isso se aplica tanto para os indivíduos de boa-fé quanto àqueles de má-fé. O que os diferencia é a maneira como enfrentará a problemática. Os primeiros entenderão, se a negativa da execução de suas expectativas foi adequada, ou seja, respaldada na lei, e buscarão alguma forma, legal, para sanar o problema. Já os segundos buscarão, naturalmente, atingir a liberdade profissional, de convicção, ou mesmo do exercício da profissão, do Tabelião e do Registrador. Com a garantia da independência, contida implicitamente na Constituição Federal, e explicitamente no art. 28 da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, essas práticas famigeradas podem ser ignoradas.
Ainda, podemos afirmar que os titulares de delegação pública para o exercício da função notarial e de registro enquadram-se na categoria de agentes públicos, especialmente na dos particulares em colaboração com o Poder Público. Assim, por consequência, não podem sofrer sanções disciplinares que não estejam legalmente tipificadas. E não estão sujeitos à aposentadoria compulsória e ao limite remuneratório aplicável aos servidores públicos. A contraprestação dos serviços realizados é feita por meio do recolhimento dos emolumentos, os quais constituem tributo da espécie taxa.
Por fim, a classificação mais adequada para definir tais profissionais é a de profissões públicas independentes. Isso considerando que a atividade constitui em verdadeiro exercício privado de funções públicas, sempre norteada pelas suas características mais marcantes: gestão privada, delegação, e independência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do direito notarial. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 24ª ed. – São Paulo: Atlas, 2011.
DIP, Ricardo. Aposentadoria compulsória de registradores e notários. Revista de Direito Imobiliário. Edição nº 47, ano 22, jul/dez de 1999. São Paulo : Revista dos Tribunais.
DIP, Ricardo Henry Marques. Direito administrativo registral. – São Paulo : Saraiva, 2010.
DIP, Ricardo Henry Marques. O paradigma da independência jurídica dos registradores e dos notários. Revista de Direito Imobiliário n. 42, set/dez de 1997. – São Paulo : Revista dos Tribunais.
GIBERT, Rafael. Notarios em la historia delderecho. Revista de Derecho Notarial, Madrid, ano 31, n. 121-122, jul/dic. 1983.
MARTINS, Cláudio. Direito notarial: teoria e prática. Fortaleza: Imprensa Universitária Federal do Ceará, 1974.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. – 37ª ed. São Paulo : Malheiros, 2011.
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ORLANDI NETO, Narciso. Serviços notariais e de registro. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.). Corregedorias do poder judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
PARADA, Ramón. Derecho administrativo II – organización y empleo público. 17ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2004.
RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. – São Paulo : Saraiva, 2009.