8. A Defensoria Pública no ordenamento jurídico e seu entendimento jurisprudencial.
Como ressaltado neste trabalho, a Defensoria Pública é Instituição de relevante importância, cuja missão vai ao encontro dos mandamentos constitucionais e republicanos. Ela atua diretamente com aqueles que estão desamparados e marginalizados, que não têm, muitas vezes, o que comer, o que vestir ou, ainda, condições de pagar a tarifa de ônibus ou trem.
Atento a todas essas mazelas e situação de penúria, o legislador constituinte deu um passo importante ao elencar a Defensoria Pública como uma instituição essencial à função jurisdição do Estado. Nesse sentido, confira-se o artigo 134 da Carta da República:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
De igual forma, laborou com êxito o mesmo legislador constituinte ao deliberar e aprovar a emenda constitucional n.º 45/2004, denominada de “Reforma do Poder Judiciário”, a qual veio a prestigiar, valorizar e reconhecer a Instituição da Defensoria Pública, dando vistas a almejar uma Instituição forte, pujante, eficaz, apta a desempenhar plenamente suas atribuições e prestando um serviço jurídico de qualidade e excelência ao necessitado. A seguir, vejam-seos parágrafos do artigo 134 da Constituição Federal alterados pela emenda retromencionada:
§ 1º Lei Complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.
A legislação a que se refere o artigo 134 é a Lei Complementar 80/94 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública – que tem por escopo organizar a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos territórios, além de prescrever normas gerais para a organização das Defensorias Públicas nos Estados. Durante seus quase vinte anos de existência, este diploma normativo passou por significativas mudanças, a fim de robustecer a estrutura, garantia e prerrogativas dos Defensores Públicos. Nesse sentido, vide a edição da Lei Complementar 132/09.
Por estes dispositivos constitucionais, pode-se constatar que a Defensoria Pública desponta como Instituição de relevante valor, na medida em que é essencial à função jurisdicional, o que implica afirmar que sua criação e devida implementação não estão ao mero alvitre governamental, podendo criar ou extinguir pelo singelo argumento da conveniência e oportunidade. Ao revés, a criação desta Instituição nas diversas entidades federativas é imposição constitucional, é dever, é obrigação, sendo que o governante que assim não procedeestará, inegavelmente, violando a Constituição Federal.
Nessa esteira, Lembra-se que, mesmo diante dos ditames constitucionais, no que diz respeito à criação das Defensorias Públicas pelos Estados, certo é que o Estado de Santa Catarina até o ano de 2012 não havia criado esta Instituição em seus domínios. Para que tal fato ocorresse, foi imprescindível a representação encaminhada ao Procurado Geral da República, Roberto Gurgel, na qual foram refutadas as justificativas insólitas dadas pelo Governo Catarinense.
Por fim, o Supremo Tribunal federal, entendeu, por unanimidade, que o Estado Catarinense vinha reiteradamente desrespeitando a Constituição Federal por vinte e três anos, eis que dava preferência a um modelo caro e inefetivo em detrimento do que prega a Constituição.
O informativo n.º 658 do STF esclarece devidamente esta situação, motivo pelo qual se colaciona trecho pertinente:
Defensoria pública estadual e exercício por advogados cadastrados pela OAB-SC - 1
O Plenário, por maioria, julgou procedente pedido formulado em duas ações diretas, ajuizadas pela Associação Nacional dos Defensores Públicos da União - ANDPU e pela Associação Nacional dos Defensores Públicos - Anadep, para declarar, com eficácia diferida a partir de doze meses, a contar desta data, a inconstitucionalidade do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina e da Lei Complementar 155/97 dessa mesma unidade federada. Os dispositivos questionados autorizam e regulam a prestação de serviços de assistência judiciária pela seccional local da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, em substituição à defensoria pública. De início, em votação majoritária, rejeitou-se a preliminar de ilegitimidade ativa da primeira requerente. Aduziu-se que a propositura ulterior de ação direta pela Anadep supriria a alegada deficiência. Destacou-se que a Corte possuiria jurisprudência no sentido de que a ANDPU atenderia ao requisito da pertinência temática na defesa da instituição defensoria pública. Ademais, realçou-se que a Defensoria Pública da União preencheria a ausência de defensoria pública estadual nas localidades em que ainda não implementada. Vencido o Min. Marco Aurélio, que assentava a extinção do processo alusivo à ANDPU, porquanto se discutiria a criação desse órgão em âmbito estadual.
Defensoria pública estadual e exercício por advogados cadastrados pela OAB-SC – 3
O Min. Celso de Mello registrou que o Estado de Santa Catarina incorreria em dupla inconstitucionalidade: por ação — ao estabelecer essa regra na sua Constituição e ao editar legislação destinada a complementá-la —; e, por inércia — uma vez que decorridos mais de 22 anos sem que criada a defensoria pública naquela localidade. Por outro lado, no que concerne ao art. 27 da Lei 9.868/99, o Min. Ricardo Lewandowski explicitou que o STF não obrigaria que a entidade federativa legislasse, e sim modularia temporalmente, pro futuro, a presente decisão. Vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio, que pronunciava a inconstitucionalidade com eficácia extunc.
Alfim, conclui-se que o entendimento esposado pelo Colendo STF quando do julgamento das ADIs 3892/SC e 4270/SC transpassa a concepção de que a Constituição deve ser tratada com seriedade e seus mandamentos devem ser, necessariamente, concretizados.
No que tange às características da Defensoria Pública no plano constitucional, elencam-se: a) função essencial à jurisdição; b) Instituição incumbida de orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados; c) ingresso na carreira mediante aprovação em concurso público de provas e títulos; d) garantia da inamovibilidade; e) Autonomia funcional e administrativa e iniciativa da proposta orçamentária (Defensorias Públicas dos Estados); f) vedação da advocacia fora das atribuições institucionais.
Passa-se, neste momento, a apresentar importantes constatações acerca da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, qual seja, Lei Complementar 80/94.
Logo em seu introito, constatam-se, por meio do artigo 1º [17],notáveis pontos que distinguem a atual redação da anterior, isto é, a Defensoria Pública passou a ser contemplada como expressão e instrumento do regime democrático, promotora dos Direitos Humanos e defensora dos direitos individuais e coletivos. Sendo assim, curial ressaltar que as atribuições da Defensoria Pública estão em franca expansão, na medida em que a própria carreira evolui.
No que corresponde aos princípios institucionais, o artigo 3º [18] aduz quais são os três princípios fundamentais da Defensoria Pública, quais sejam, unidade, indivisibilidade e independência funcional. A unidade, nas palavras de Marília Gonçalves Pimenta, é [19]:
“[...]um todo orgânico, sob uma mesma direção, mesmos fundamentos e mesmas finalidades. Permite aos membros da Defensoria Pública substituírem-se uns aos outros. Cada um deles é parte de um todo, sob a mesma direção, atuando pelos mesmos fundamentos e com as mesmas finalidades”.
Quanto à indivisibilidade, a Defensoria Pública atua como se fosse um todo orgânico, não estando sujeita à divisão, cisão ou fracionamentos. No que se refere à independência funcional, pode-se aduzir que está garantida ao Defensor Público a atuação conforme sua convicção jurídica e entendimento que detém do texto constitucional. Dessa forma, pode agir livremente perante todos os órgãos da administração, não havendo que se falar em hierarquia diante dos demais agentes do Estado, sejam quais forem.
Dentre as funções institucionais previstas no artigo 4º da Lei Complementar 80/98, enfatiza-se a prioridade em promover a solução extrajudicial dos litígios, fato que, per se, já demonstra que a Defensoria Pública não é apenas Instituição que se restringe à assistência judiciária, mas vai além, disseminando conhecimento de direitos e deveres aos necessitados pela via extrajudicial.
Avanço significativo para a Defensoria Pública foi a introdução do inciso XXI, o qual pretendeu refutar o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça [20], que preconiza não haver condenação em honorários advocatícios quando o devedor é o próprio ente que custeia a Defensoria. No entanto, tal entendimento do Tribunal Cidadão não deve prevalecer, porque o próprio inciso XXI enuncia ser uma das funções institucionais a possibilidade de:
XXI - executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Questão interessante digna de nota é a que se refere à intimação pessoal e a contagem do prazo em dobro de prazos processuais. Ambas condizem com uma prerrogativa inerente ao cargo e as atribuições do Defensor Público. Situação contraposta é a do advogado particular que oficia em processo de justiça gratuita, sendo intimado pelas vias ordinárias e com prazos simples.
Entende-se por prerrogativa os mecanismos jurídicos que possibilitam a integral defesa dos direitos dos assistidos, estão ligadas à sua função ou cargo. Já as garantias se traduzem em salvaguarda do próprio Defensor Público, livre de interferências ou pressões de quem quer que seja. Por fim, privilégio é algo que diz respeito à individualidade da pessoa e fere frontalmente o principio da isonomia previsto na Lei Maior, não podendo ser republicanamente justificado.
A prerrogativa da intimação pessoal faz-se imprescindível, haja vista que o quadro nacional de Defensores Públicos é escasso e, por conseguinte, insuficiente para atender toda a demanda que cresce a cada dia. De outro modo haveria a perda do prazo e, consequentemente, prejuízo ao assistido, o qual não teria sua pretensão tutelada. Necessário apontar, pois, que antes de se traduzir em um privilégio ou benefício, tal prerrogativa possibilita o acesso à justiça, sendo certo que sua inobservância acarreta nulidade dos atos processuais posteriores.
Desta feita, insta salientar que nesse sentido já se manifestou o Ínclito STJ, por meio de sua Quarta Turma, através da seguinte ementa de julgamento [21]:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PROCEDIMENTO SUMÁRIO. DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL. PEDIDO DE VISTA E INTIMAÇÃO PESSOAL.PRERROGATIVAS DO DEFENSOR PÚBLICO. ART. 89 DA LC n. 80/1994. NEGATIVA DO JUÍZO. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. DECRETAÇÃO DA REVELIA NA AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO. IMPOSSIBLIDADE.
1. Firme no propósito de concentrar os atos processuais, oprocedimento sumário prevê a necessidade de presença do réu naaudiência de conciliação para que, primeiro, seja tentada aautocomposição da demanda e, em caso de negativa, se prossiga com aapresentação de contestação, sob pena de decretação da revelia.
2. Na hipótese, o pedido de vista dos autos pela Defensoria Pública,antes da audiência inicial, nada mais foi do que tentar garantir -em sua plenitude - a assistência à recorrente, conferindo-lhe,dentro da paridade de armas, a maior possibilidade de contrabalançara desigualdade que afeta às partes, permitindo que ambos oslitigantes tenham no processo as mesmas oportunidades de tentarinfluir na decisão da causa. A Defensoria Pública é instituiçãoestatal criada com o escopo de prestar assistência jurídica integrale gratuita aos que comprovem a insuficiência de recursos, de funçãoímpar em nosso sistema e consagrada no art. 134 da Carta daRepública.
3. Nessa linha, ciente das consequências jurídicas da audiênciainicial do rito sumário, bem como da supressão de seu direito dedefesa pelo Juízo - a Defensoria Pública foi impedida de apreciar ascircunstâncias da demanda -, não se poderia exigir conduta diversada recorrente, estando justificada sua ausência, haja vista que, sem realmente poder efetivar a defesa técnica, violado estaria o contraditório, a ampla defesa e inevitavelmente seria tida como revel.
De mais a mais, é de fácil apreensão que a Instituição vem ganhando relevância em todos os meios, seja doutrinário, jurisprudencial ou nos meios de comunicação. Deste modo, vem o STF, reiteradamente, reconhecendo o valor desta digna Instituição, a exemplo do julgamento da ADI 4.163, quando o eminente Ministro Cezar Peluso, assim se manifestou:
“É dever constitucional de o Estado oferecer assistência jurídicagratuita aos que não disponham de meios para contratação de advogado, tendo sido a Defensoria Pública eleita, pela Carta Magna, como o único órgão estatal predestinado ao exercício ordinário dessa competência.
Daí, qualquer política pública que desvie pessoas ou verbas para outra entidade, com o mesmo objetivo, em prejuízo da Defensoria, insulta a Constituição da República. Não pode o Estado de São Paulo, sob o pálio de convênios firmados para responder a situações temporárias, furtar-se ao dever jurídico-constitucional de institucionalização plena e de respeito absoluto à autonomia da Defensoria Pública”.
De igual modo, exaltando a nobre Instituição, ora objeto deste trabalho, a Ministra Rosa Weber se posicionou:
“Sem a pretensão de ser exaustiva, é possível fazer uma breve mençãoaos seguintes precedentes desta Corte:
- ADI nº 4.246/PA, da relatoria do Ministro Ayres Britto, DJe de 30.8.11, onde se diz que "A Defensoria Pública é instituição concretizadora do mais democrático acesso às instâncias decisórias do País, tanto na esfera administrativa quanto judicial”, sendo “estruturada em cargos de carreira, providos por concurso público de provas e títulos”, estruturação essa que “opera como garantia da independência técnica dos seus agentes e condição da própria eficiência do seu mister de assistência a pessoas naturais 'necessitadas'";
- ADI nº 3.028, também da relatoria do eminente Ministro AyresBritto, DJe de 01.7.10: ali se diz que o Ministério Público, como a Defensoria, é instituição que exerce função essencial à jurisdição, está autorizado a receber o produto de taxa instituída sobre atividades notariais e de registro, pois "bem aparelhar o Ministério Público é servir ao designo constitucional de aperfeiçoar a própria jurisdição como atividade básica do Estado e função específica do Poder Judiciário";
- ADI nº 291, da relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 10.9.10, onde se diz que "A garantia da inamovibilidade é conferida pela Constituição apenas aos magistrados, aos membros do Ministério Público e aos membros da Defensoria Pública, não podendo ser estendida aos Procuradores do Estado";
- Recurso Extraordinário nº 599.620, Segunda Turma, Ministro Eros Grau, DJe de 20.11.09: "’[a] norma de autonomia inscrita no art. 134, § 2º, da Constituição Federal, pela EC 45/04 é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos humanos";
- ADI nº 3.700, Ministro Ayres Britto, DJe de 06.3.09: “Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário";
- ADI nº 3.569, Ministro Sepúlveda Pertence, DJe de 11.5.07: "A EC 45/04 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus orçamentos (…): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado";
- ADI nº 3.643, Ministro Ayres Britto, DJe de 16.02.07: "É constitucional a destinação do produto da arrecadação da taxa de polícia sobre as atividades notariais e de registro, ora para tonificar a musculatura econômica desse ou daquele órgão do Poder Judiciário, ora para aportar recursos financeiros para a jurisdição em si mesma" - incluindo-se nesse contexto a destinação dos recursos arrecadados à Defensoria Pública estadual;
- ADI nº 3.043, Ministro Eros Grau, DJe de 27.10.06: "O § 1º do artigo 134 da Constituição do Brasil repudia o desempenho, pelos membros daDefensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada”; isso porque “Os §§ 1º e 2º do artigo 134 da Constituição do Brasil veiculam regras atinentes à estruturação das defensorias públicas, que o legislador ordinário não pode ignorar";
- ADI nº 2.903, Ministro Celso de Mello, DJe de 19.9.08: "a Defensoria não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas - carentes e desassistidas -, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado";
- ADI nº 3.022, Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 04.3.05: "Norma estadual que atribui à Defensoria Pública do estado a defesa judicial de servidores públicos estaduais processados civil ou criminalmente em razão do regular exercício do cargo extrapola o modelo da Constituição Federal (art. 134), o qualrestringe as atribuições da Defensoria Pública à assistência jurídica a que se refere o artigo 5º , LXXIV".