É cediço que a discussão de controvérsias no âmbito do Poder Judiciário traz desconforto para todas as partes envolvidas no respectivo processo. O estado de insegurança decorrente de litígio judicial é inevitável, seja em função da impossibilidade de previsão quanto ao seu resultado final, seja em decorrência do extenso lapso temporal demandado para a conclusão do processo.
Assim, não é por outra razão que as partes envolvidas em processos litigiosos, procuram, cada vez mais, harmonizar seus entendimentos mediante concessões mútuas, independentemente da interferência do Poder Estatal, transigindo acerca do objeto da controvérsia.
Esta situação é bastante comum nos casos de Processos judiciais já em curso. Nesses casos, com a superveniência da transação, o acordo será homologado pelo magistrado e esta sentença, além de fazer coisa julgada em relação à questão discutida e objeto da avença, terá força de título executivo judicial, a teor do artigo 475-N, incisos III e V, do Código de Processo Civil, verbis:
“Art. 475-N. São títulos executivos judiciais:
(...)
III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo;
(...)
V – o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente”.
A celebração de transação no bojo de um processo judicial já em curso traz um alto grau de segurança para as partes no que diz respeito ao cumprimento do seu conteúdo. Isso porque, além de ser um ato formal, com a intervenção do Poder Judiciário (onde as partes conferem maior importância ao ato realizado), tal acordo configurar-se-á título executivo judicial.
Daí surge a seguinte questão: caso as partes tenham chegado a um consenso sobre determinada discussão antes mesmo da instauração de qualquer procedimento judicial, e seja de suas vontades conferirem o status de título executivo judicial aos termos do aludido acordo, seria possível pleitear a sua homologação judicial?
O questionamento acima formulado é de relevante importância haja vista que no caso de execução fundada em título judicial a matéria passível de abordagem em sede de impugnação à execução cinge-se às hipóteses taxativamente previstas no art. 475-L do CPC e o pleito executivo transcorre (ou, pelo menos, deve transcorrer) de maneira mais célere.
Por outro lado, sem a devida homologação judicial, o acordo em questão corresponderá a título executivo extrajudicial e o rol de matérias que podem ser suscitadas nos embargos à execução lastreada em título dessa espécie (extrajudicial) é deveras extenso (praticamente não há limitação, na medida em que será lícito alegar qualquer matéria que possa ser deduzida em processo de conhecimento - a teor do art. 745, V, do CPC), o que implica, inevitavelmente, em uma ação mais complexa e que exigirá maior lapso temporal para o seu julgamento.
Além do mais, a sentença homologatória traz os efeitos da coisa julgada para o objeto do acordo extrajudicial, gerando uma maior segurança jurídica para as partes ali envolvidas.
Cientes da utilidade da medida em questão, vejamos então a factibilidade de submetermos à homologação judicial termo de transação cuja matéria não seja objeto de processo judicial, de acordo com as normas do nosso ordenamento jurídico.
O Código Civil em vigor estabelece, em seu art. 840, que “é lícito aos interessados prevenirem, ou terminarem litígios mediante concessões mútuas”.
Por sua vez, o “caput” do artigo 57 da Lei nº. 9.099, de 26.09.1995 (Lei dos Juizados Especiais), preceitua o seguinte:
“Art. 57. O acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial”.
Não obstante a norma acima transliterada estar contida em legislação específica (Lei dos Juizados Especiais) é evidente o fato de que o seu comando é de Direito processual geral. Tal assertiva é facilmente constatada quando observamos a referencia à “Juízo competente”. Ora, é sabido que “Juízo competente” é um conceito amplo, dentro do qual estão incluídas todas as esferas do Poder Judiciário. Assim, essa questão afasta a hipótese de que a aplicação da indigitada norma estaria restrita ao âmbito dos juizados especiais.
De fato a intenção do Legislador Pátrio foi prever a possibilidade de homologação judicial de transação/ acordo de qualquer natureza ou valor, perante o Juízo competente, seja Especial ou Comum.
Neste diapasão, fica claro que o pedido de homologação aqui tratado não está adstrito para acordos limitados ao valor de 40 (quarenta) salários mínimos, no âmbito dos Juizados Especiais, uma vez esse que preceito poderá ser aplicado também para outras transações (de qualquer natureza ou valor), no âmbito da Justiça Comum (no Juízo competente).
Ratificando a norma constante do artigo 57 da Lei nº. 9.099, de 26.09.1995, a reforma do CPC, realizada pela Lei 11.232, de 22.12.2005 atribuiu categoricamente a qualidade de título executivo judicial ao “acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente”.
Assim, defende Humberto Teodoro Júnior (In, Curso de Direito Processual Civil, vol. II, 2012, Ed. Forense, p. 81), que “de maneira alguma se admite, portanto, que o juiz se recuse a homologar transação sob o pretexto de inexistir processo em curso entre as partes. O pedido de homologação, in casu, deve ser processado como expediente de jurisdição voluntária”.
Seguindo a mesma linha, a jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais se firmou favoravelmente à possibilidade de homologação de acordo independentemente da existência de processo em curso entre as partes, conforme podemos observar dos julgados abaixo, dentre outros (v.g. RT 687/112 672/187, RTJ 93/86, RTJ118/269, Lex – JTA 140/347).
APELAÇÃO CÍVEL – HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO – INEXISTÊNCIA PRÉVIA DE LIDE EM JUÍZO – POSSIBILIDADE – OBTENÇÃO DE TITULO EXECUTIVO JUDICIAL – ART. 57 DA LEI 9.099/95 E ART. 475-N, V DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – INTERESSE DE AGIR EVIDENCIADO – RECURSO PROVIDO – Independentemente de se tratar a transação de título executivo extrajudicial, pretendendo as partes sua homologação, a fim de que lhe seja conferida força de título executivo judicial, não há falar em ausência de interesse de agir. (TJMS – AC 2009.019958-6/0000-00 – Campo Grande – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Joenildo de Sousa Chaves – J. 11.01.2011) v89
TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL – HOMOLOGAÇÃO – POSSIBILIDADE JURÍDICA – APLICAÇÃO DO ARTIGO 57 DA LEI 9099/95 – Com o advento da Lei nº 9099, de 26 de setembro de 1995, consoante previsão de seu artigo 57, o acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial. O seu parágrafo único acrescenta que valerá como título extrajudicial o acordo celebrado pelas partes, por instrumento escrito, referendado pelo órgão competente do Ministério Público. (2TACSP – Ap. s/ Rev. 707.472-00/3 – 9ª C. – Rel. Juiz Gil Coelho – DOESP 08.02.2002)
TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL – Homologação. Possibilidade jurídica. Aplicação do art. 57 da Lei nº 9.099, de 1995. É possível a homologação de acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, no Juízo Comum Cível, valendo a sentença como título executivo judicial. Inteligência do art. 57 da Lei nº 9.099, de 1995. (2TACSP – AP s/Rev 632.076-00/8 – 6ª C. – Rel. Juiz Gilberto Souza Moreira – J. 12.09.2000)
Porém, contrariando texto expresso de lei e na contramão do ordenamento jurídico, o STJ, em votação majoritária (não unânime) afastou-se do entendimento acolhido pela doutrina e pelos Tribunais estaduais, pois ao se posicionar sobre o assunto filiou-se ao entendimento diametralmente oposto ao acima delineado, conforme se depreende do julgado abaixo transliterado.
PROCESSO CIVIL. TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. LEI 9.099/95. ART. 57. IMPOSSIBILIDADE.
1. É imprescindível preservar o escopo da Lei 9.099/95, criada para facilitação de acesso ao Poder Judiciário pelos titulares de direitos relacionados a lides de menor complexidade, com procedimento simplificado e julgamento célere, desafogando-se, com isso, os Tribunais em causas de procedimento ordinário ou sumário.
2. O art. 57 da Lei 9.099/95 tem, em princípio, eficácia transcendente à Lei dos Juizados Especiais. Essa norma, contudo, teria o papel de regular provisoriamente a matéria, até que ela encontrasse regulação específica nos diplomas adequados, a saber, o Código de Processo Civil e o Código Civil.
3. O CPC, nas sucessivas reformas ocorridas desde meados dos anos 90, vem tendo alterada a redação de seu art. 584, III, de modo a contemplar, com maior ou menor extensão, a possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais.
4. Na última alteração a que se sujeitou o código, contudo, incluiu-se o art. 475-N, que em lugar de atribuir eficácia de título executivo judicial à sentença que homologue acordo que verse sobre matéria não posta em juízo, passou a falar em transações que incluam matéria não posta em juízo.
5. Uma transação que inclua matéria não posta em juízo está claramente a exigir que a transação, para ser homologável, tem de se referir a uma lide previamente existente, ainda que tenha conteúdo mais amplo que o dessa lide posta. Assim, a transação para ser homologada teria de ser levada a efeito em uma ação já ajuizada.
6. É necessário romper com a ideia de que todas as lides devem passar pela chancela do Poder Judiciário, ainda que solucionadas extrajudicialmente. Deve-se valorizar a eficácia dos documentos produzidos pelas partes, fortalecendo-se a negociação, sem que seja necessário, sempre e para tudo, uma chancela judicial.
7. A evolução geral do direito, num panorama mundial, caminha nesse sentido. Tanto que há, hoje, na Europa, hipóteses em que ações judiciais somente podem ser ajuizadas depois de já terem as partes submetido sua pretensão a uma Câmara Extrajudicial de Mediação, como corre, por exemplo, na Itália, a partir da promulgação do Decreto Legislativo nº 28/2010.
8. Ao homologar acordos extrajudiciais, o Poder Judiciário promove meramente um juízo de delibação sobre a causa. Equiparar tal juízo, do ponto de vista substancial, a uma sentença judicial seria algo utópico e pouco conveniente. Atribuir eficácia de coisa julgada a tal atividade implicaria conferir um definitivo e real a um juízo meramente sumário, quando não, muitas vezes, ficto. Admitir que o judiciário seja utilizado para esse fim é diminuir-lhe a importância, é equipará-lo a um mero cartório, função para a qual ele não foi concebido.
9. Recurso especial não provido. (REsp 1184151 , Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, 3ª T, data do julgamento15/12/2011).
Com a devida vênia, parece-nos que o entendimento acima padece de graves equívocos, uma vez que ignora solenemente o disposto no art. 57 da Lei nº. 9.099/1995 e no inciso V, do art. 475-N do CPC.
Afora isso, o argumento lançado no voto, no sentido de que “admitir que o judiciário seja utilizado para esse fim é diminuir-lhe a importância, é equipará-lo a um mero cartório, função para a qual ele não foi concebido”, é demasiadamente sofismático, pois no formato em que o Poder Judiciário foi concebido em nosso Estado de Direito, cabe-lhe também o processamento de demandas que não resultam em solução de litígio, tal como acontece nos procedimentos de jurisdição voluntária.
Nessa seara, não há que se falar em diminuição da importância do Poder Judiciário. Muito pelo contrário. No caso em comento, a intervenção do judiciário é valorizada na medida em que confere um status diferenciado para aqueles acordos que foram submetidos à sua homologação.
Não há como negar que o art. 57 da Lei nº. 9.099/1995, ao tratar de matéria que transcende, de muito, o âmbito do juizado especial, criou nova hipótese de jurisdição voluntária, além daquelas já previstas no Código de Rito.
Ora, a prevalecer o entendimento adotado no julgado do STJ, as partes não deixarão de buscar e de obter a homologação judicial de acordo extrajudicial desvinculado de processo judicial, sendo que, para burlar o equivocado entendimento manifestado pelo STJ, forjarão lides inexistentes para que, uma vez formado o processo “litigioso”, seja apresentado o acordo (previamente encetado) para homologação.
Dessa forma, haverá movimentação desnecessária da máquina judiciária que deverá analisar todos os pressupostos processuais da “forjada demanda”, providenciar a citação do réu, dentre outras providências.
Observe-se que nessa situação, o magistrado não poderá se escusar da homologação do acordo extrajudicial, porém, antes disso, envidará esforços desnecessários. Doutra banda, ao se admitir a homologação direta da transação (independentemente da existência de processo litigioso), o juiz não desperdiçará esforços desnecessários com demandas fictícias e passará diretamente à análise dos requisitos formais da avença, sendo que a atividade judicante, nesses casos, se identificará com os procedimentos de jurisdição voluntária.
Em verdade o argumento de cunho prático acima lançado é meramente ilustrativo e serve apenas para demonstrar a falta de racionalidade da decisão do E. STJ, isso porque à luz da clara disposição legal esse tipo de argumento é absolutamente dispensável.
É fato que o entendimento que prevaleceu no STJ teve o nítido objetivo de evitar o crescimento no volume de demandas no Poder Judiciário. Esse posicionamento fica bastante claro durante a leitura dos dois votos vencedores que ensejaram o acordão acima transcrito. Porém, não poderia o STJ julgar contra legem, para atingir finalidade oposta àquela traçada pelo legislador.
Desta forma, faz-se imperiosa a revisão do entendimento adotado pelo E. STJ com relação à matéria em comento para que seja respeitado o espírito da lei, de forma a se admitir a homologação de acordos extrajudiciais independentemente da prévia existência de processo judicial.