Recentemente, o Tribunal de Contas da União proferiu dois julgados a respeito da aplicação dos princípios da moralidade e impessoalidade nas licitações públicas, tendo em vista a constatação de "potencial conflito de interesses" em razão de vínculo de parentesco ou de cunho profissional/empresarial entre os participantes e agentes públicos envolvidos no certame.
A contratação pela Administração de empresas pertencentes a parentes de gestor público envolvido no processo caracteriza, diante do manifesto conflito de interesses, violação aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade.
Denúncia relativa a contratações conduzidas pela Prefeitura Municipal de Urucuia/MG apontara, dentre outras irregularidades, a contratação do pai do prefeito municipal na condição de empresário individual, decorrente de pregões presenciais para o fornecimento de gêneros alimentícios e material de higiene e limpeza. Realizado o contraditório, o gestor permaneceu silente no tocante à contratação do pai, configurando, dessa forma, a revelia. Sobre o assunto, consignou o relator que "a despeito de não haver, na Lei nº 8.666/1993, vedação expressa de contratação, pela Administração, de empresas pertencentes a parentes de gestores públicos envolvidos no processo, a jurisprudência desta Corte tem se firmado no sentido de considerar que há um evidente e indesejado conflito de interesses e que há violação dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade". Exemplificou transcrevendo trecho do voto condutor do Acórdão 1.511/2013-Plenário, no qual é enfatizada a afronta aos princípios constitucionais, mormente nos casos em que o servidor/gestor público atua na condição de autoridade homologadora do certame. Em conclusão, diante da gravidade do fato, formulou minuta de acórdão, acolhida pelo Plenário, julgando parcialmente procedente a Denúncia e sancionando o gestor com a multa capitulada no art. 58, inciso II, da Lei 8.443/92. Acórdão 1941/2013-Plenário, TC 025.582/2011-9, relator Ministro José Múcio Monteiro, 24.7.2013.
É ilegal a participação em licitação de empresa cujos sócios sejam associados ao autor do projeto básico em outras sociedades empresariais, à vista do disposto no art. 9º, inciso I e § 3º, da Lei 8.666/93. Tomada de Contas Especial, resultante da conversão de autos de auditoria de conformidade, apreciou dano ao erário decorrente de irregularidades na gestão dos recursos de convênio celebrado entre o Instituto Amazônia de Formação, Estudos e Pesquisas e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, tendo por objeto o apoio ao Projeto Identidade do Negro no Amapá. Ao converter os autos em contas especiais, o TCU, além de determinar a citação dos responsáveis, fixou prazo para que empresa se manifestasse sobre os indícios de participação fraudulenta em licitação, na modalidade convite, realizada no âmbito do convênio. A fraude consistiria no fato de que a empresa fora convidada a participar do certame em face de sua ligação com o autor do projeto básico utilizado na contratação, o qual seria sócio dos proprietários em outras duas firmas. Nesse quesito, o relator considerou que "os argumentos oferecidos não são aptos a afastar a irregularidade atinente à participação indireta do autor do projeto básico ... na licitação e na execução do objeto do Convite 4/2006", conduta vedada pelo art. art. 9º, inciso I e § 3º, da Lei de Licitações. Em seu sentir, o caso revelou o uso de recurso ardiloso, destinado a burlar a vedação legal, consistente "em se convidar empresa da qual o autor do projeto básico não era sócio, mas cujos sócios eram associados ao autor do projeto em duas outras empresas". Em sua avaliação,"a ligação comercial entre o autor do projeto básico e os sócios da empresa vencedora do certame pode ter-lhes dado as vantagens indevidas acima mencionadas, ferindo o princípio da isonomia e da legalidade que norteiam os procedimentos licitatórios". Ademais, tal conduta "tem potencial ainda maior de afrontar o princípio da isonomia no âmbito da licitação na modalidade convite, dado o universo restrito dos concorrentes e a discricionariedade concedida ao promotor do certame na escolha dos licitantes". Concluiu, assim, que a irregularidade caracterizou fraude ao procedimento licitatório, razão pela qual incluiu em sua minuta de acórdão proposta no sentido de que a empresa fosse declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Federal. O Tribunal, ao acolher a proposta do relator, julgou as contas de dois dos responsáveis irregulares, imputando-lhes o débito apurado e aplicando-lhes multas individuais, concedeu a um terceiro responsável novo e improrrogável prazo para recolhimento de débito de sua responsabilidade e declarou inidônea para licitar com a Administração Pública Federal a empresa que burlara o Convite 4/2006. Acórdão 1924/2013-Plenário, TC 029.266/2011-4, relator Ministro-Substituto Augusto Sherman Cavalcanti, 24.7.2013.
A partir do exame das premissas dos transcritos julgados, faz-se necessário tecer algumas observações, sob pena de aplicação "cega" e "acrítica" da jurisprudência do TCU.
Tanto em sede doutrinária, quanto nas lides da advocacia, venho militando que é indevido reputar-se, como de ordem absoluta, a presunção segundo a qual, o vínculo de integrante do quadro societário da licitante com a Administração Pública, tomado de per si, caracteriza preferência, constitui discriminação, parcialidade, afetando a igualdade de condições entre os participantes.
Considerar tal presunção como regra absoluta e inexorável, é entender que a simples participação de empresa, cujo quadro societário seja integrado por parente de agente público vinculado à entidade promotora da licitação, resultaria em favorecimento por parte dos demais servidores responsáveis pela condução do procedimento licitatório. Que, inexoravelmente, o Administrador sempre dará preferência a um parente ou sócio em outras empresas, violando os princípios da moralidade administrativa e da isonomia.
Logo, as hipóteses previstas no art. 9º da Lei nº 8.666/93, devem ser interpretadas em conformidade com a Constituição Federal, em especial, os princípios orientadores dos procedimentos de contratação pública: isonomia, moralidade, ampla competitividade, livre iniciativa e economicidade, de modo a se reconhecer que não há uma presunção absoluta de privilégio espúrio à empresa que tenha em seu quadro societário pessoa que seja parente de servidor vinculado ao órgão promotor da licitação.
Destarte, não se pode admitir uma situação na qual, a partir uma mera presunção descabida e contra legem, um licitante que apresente a melhor proposta para a Administração, seja preterido de um certame e, conseqüentemente, deixe de contratar com o Poder Público e, assim, desenvolver suas atividades. Portanto, está claro que ao impedir a participação de empresa que tenha em seu quadro societário parente de servidor público, haverá manifesta violação à liberdade de iniciativa, elevada ao status de fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art.1º, IV).
De acordo com tais premissas, é possível concluir que O IMPEDIMENTO DE PARTICIPAÇÃO NAS LICITAÇÕES POR PARTE DE PARENTE DE SERVIDOR PÚBLICO INTEGRANTE DO ÓRGÃO PROMOTOR DO CERTAME É DE ORDEM RELATIVA E NÃO ABSOLUTA, de modo que a infração aos princípios da moralidade e da isonomia (bem jurídico tutelado pela norma) só restará efetivamente configurada quando as circunstâncias do caso concreto evidenciarem o favoritismo espúrio ou a influência indevida do agente público em favor de seu parente.
Partindo de tal conclusão, mostra-se temerário o procedimento consistente no impedimento de participação de empresa tão somente pelo fato de ser constatado que seu quadro societário é integrado por um parente do agente público ou da autoridade promotora da licitação, retirando-se, de forma indevida, o dever da Administração em levantar as provas concretas do favorecimento espúrio e reprovável e suprimindo o direito de cidadão em defender-se dos argumentos via o devido processo legal.
Diante disso, é evidente que a Administração só poderá evitar a participação de empresa em licitação caso já existam, previamente, elementos de prova no sentido de ser o parente licitante indevidamente favorecido, de modo que, aí sim, esteja configurada a violação concreta aos princípios da moralidade e impessoalidade.
Caso contrário, a Administração não contará com fundamentos legalmente pertinentes para impedir a participação de empresa em prélio licitatório.
Partindo das mesmas premissas teóricas, o próprio TCU possui julgados no sentido de que a existência de licitantes com sócio em comum, por si só, não configura fraude à licitação. Há que existir outros elementos ou indícios de conluio tendentes a frustrar a isonomia e a competitividade.
Nesse sentido, por meio do Acórdão nº 2.341/2011-Plenário, a Corte de Contas da União considerou restritiva à competitividade cláusula editalícia que proibia a participação concomitante de licitantes com sócios em comum.
Para o Tribunal, tal cláusula apresenta leitura objetiva e apriorística da Lei de Licitações (ofensiva, portanto, ao princípio da legalidade e da competitividade), na medida em que considera de forma inarredável que a ocorrência de sócios em comum configura fraude à licitação.
Dessa forma, vale a transcrição de parte do Voto do Ministro Relator Augusto Narde, seguido por unanimidade pelos demais Ministros do TCU, no qual enfatiza que a coincidência de sócios apresenta-se como situação de risco à competitividade. Mas, isto, por si só, não pode ser fato configurador (objetivamente verificável) de circunstância de conluio e de fraude à licitação. Veja-se:
17. A toda prova, portanto, que no caso da recomendação da CGU, trazida aos autos pelos agravantes, bem como nas situações similares, em que houve a atuação desta Corte de Contas, o que se pretendeu foi alertar os responsáveis pelos certames licitatórios sobre uma situação de risco, configurada pela participação, no processo, de empresas com sócios em comum.
18. Tal risco, conforme bem expresso na recomendação do Acórdão nº 1.793/2011-TCU-Plenário, deve ser mitigado, mediante identificação das empresas que se enquadrem nessa situação e de outros fatores que, em conjunto, e em cada caso concreto, possam ser considerados como indícios de conluio e fraude à licitação.
19. As situações expostas, portanto, são bem diversas da que se verifica nos presentes autos, em que se fez uma vedação a priori, ao arrepio da legislação aplicável, impedindo, sem uma exposição de motivos esclarecedora ou outros indícios de irregularidades, que empresas participassem do certame, ferindo, sem sombra de dúvidas, os princípios da legalidade e da competitividade, a que estão sujeitas as entidades do sistema ‘S’.
Esse raciocínio guarda compasso com a presunção de boa-fé dos licitantes e com o princípio do devido processo legal. É que toda imputação de ofensa à lei deve ser precedida da devida demonstração material de sua ocorrência, garantindo, por evidente, o contraditório e a ampla defesa aos licitantes.
Com efeito, no julgado em questão, o TCU assentou que devem ser verificados outros elementos que legitimam concluir pela ocorrência de conluio entre as empresas. Deve ser avaliada qual é a participação do sócio (em comum) em cada uma das licitantes; se se trata de sócio gerente que detenha poderes decisórios.
Portanto, advoga-se que as hipóteses do art. 9º da Lei de Licitações estão a instituir um impedimento de participação na licitação de ordem relativa e não absoluta (a priori), de modo que a infração aos princípios da moralidade e da isonomia só restará efetivamente configurada quando as circunstâncias do caso concreto evidenciarem o favoritismo espúrio ao licitante ou a influência indevida de agente público que integre a entidade promotora da licitação.