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A exigência de certidões negativas

Agenda 01/01/2002 às 01:00

1. Introdução

A exigência de certidão negativa de débito tributário constitui hoje um dos maiores obstáculos ao desempenho de certas atividades, especialmente daquelas que envolvem contratações com o Poder Público.

Muitos são os casos nos quais o contribuinte se vê obrigado a pagar tributos, ainda que os considere indevidos, apenas porque sem tal pagamento simplesmente não poderá continuar exercendo sua atividade. Não raros também são os casos em que o contribuinte é prejudicado em sua atividade por simples questões burocráticas, quando na verdade nem é devedor de tributo nenhum, porque não consegue obter a certidão em tempo hábil. Ou é devedor de quantias insignificantes, e ao ser advertido do fato já não há tempo para o pagamento. Ou ainda, é devedor apenas pelo fato de que não tem condições financeiras para saldar seu débito para com o Tesouro Público, e poderia fazê-lo se lhe fosse admitida a contratação da obra ou do serviço com o Estado.

Relevante, portanto, é o estudo do tema, que se há de iniciar pelo exame das disposições do Código Tributário Nacional.


2. A exigência de quitação no CTN

Segundo o art. 205 do Código Tributário Nacional, a lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido.

E em seu parágrafo único, dispõe: A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição.


3. Forma de prova da quitação.

O art. 205 do CTN não diz que a lei pode exigir a prova de quitação de tributos como condição para a prática deste ou daquele ato, como se poderia concluir de uma leitura menos atenta desse dispositivo legal. Nele reside norma pertinente apenas à forma de provar a quitação. Norma a dizer que a lei poderá determinar que a prova de quitação se faça mediante certidão negativa, quando essa prova seja exigível.

Uma coisa é saber em que hipóteses pode ser exigida do contribuinte a prova de quitação de tributos. Outra, assaz diversa, é a questão da forma de comprovar essa quitação, quando legalmente exigível.


4. Exigência de quitação de tributos

O Código dispõe sobre a exigência da quitação de tributos em três hipóteses, a saber: a) no art. 191, como condição para o deferimento de concordata ou para a declaração de extinção das obrigações do falido; b) no art. 192, como condição da sentença de julgamento partilha ou adjudicação, e c) no art. 193, como condição para a celebração de contrato com entidade pública, ou participação em licitação.

A interpretação sistêmica dessas normas impõe que as situemos no âmbito do Código, cujo Título III, de seu Livro Segundo, cuida do Crédito Tributário, com o Capítulo VI dedicado especificamente às Garantias e Privilégios do Crédito Tributário.

Daí se conclui serem as normas dos artigos 191, 192 e 193, acima referidas, pertinentes a crédito tributário, matéria que, por força do disposto no art. 146, inciso III, alínea "b", da vigente Constituição, situa-se no campo privativo das leis complementares. Em outras palavras, isto quer dizer que somente através de lei complementar é possível a alteração desses dispositivos do Código, especialmente quando se tratar de ampliação, ou da instituição de outras hipóteses de exigência de quitação de tributos.

Assim, é de grande importância a interpretação daqueles dispositivos, de sorte a que se tenha clara a delimitação das hipóteses nas quais é válida a exigência da quitação tributos.

A exigência determinada pelo art. 191 diz respeito apenas aos tributos relativos à atividade mercantil do requerente da concordata, ou da declaração de extinção das obrigações do falido. Não abrange, portanto, possíveis débitos tributários de sócios, administradores, ou de pessoas jurídicas outras, ainda que de algum modo ligadas à pessoa de cuja concordata, ou de cuja falência se esteja a cogitar.

A exigência do art. 192 diz respeito exclusivamente aos tributos relativos aos bens do espólio, ou suas rendas. Não abrange débitos tributários dos herdeiros ou adjudicantes, ou qualquer outro.

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A exigência do art. 193 diz respeito apenas aos tributos relativos à atividade em cujo exercício o contribuinte está contratando, ou licitando. E somente aqueles tributos devidos à pessoa jurídica contratante, ou que está a promover a concorrência. Não abrange, pois, tributos devidos a outras pessoas jurídicas de Direito Público.

A referência ao contrato, e à concorrência, justifica-se pelo fato de alguns contratos serem possíveis sem concorrência. Se realizada a concorrência, na oportunidade desta é feita a exigência de quitação, que não precisa ser repetida na ocasião do contrato.

Excepcional que é, a norma que estabelece a exigência de quitação não pode ser interpretada ampliativamente, nem ampliada pela lei ordinária. Só é cabível, portanto, nas situações expressamente indicadas pelo CTN, a saber:

a) do que pretende concordata, preventiva ou suspensiva da falência;

b) dos interessados em partilha ou adjudicação de bens de espólio; e

c) dos que licitam, ou contratam com entidades públicas.

As duas primeiras situações não dizem respeito ao exercício normal de atividades econômicas, por isto mesmo a exigência da quitação não afronta a garantia do livre exercício de tais atividades, assegurada pelo art. 170, parágrafo único, da Constituição. A última pode, em certos casos, afetar essa garantia, e por isto é de constitucionalidade duvidosa. De todo modo, é razoável admitir-se que o órgão público se recuse a contratar com quem lhe deve.

Lei ordinária, seja federal, estadual ou municipal, que amplia o alcance das exigência de quitação, contidas nos artigos 191, 192 e 193 do CTN, ou institui outras hipóteses para formulação dessa exigência, padece de inconstitucionalidade, tanto formal, quanto substancial.

Inconstitucionalidade formal haverá porque, como dito acima, cuida-se de matéria que só por lei complementar pode ser regulada. Inconstitucionalidade substancial também haverá porque tal lei estará em aberto conflito com normas da Constituição, em pelo menos dois importantes aspectos. Primeiro, porque afronta o art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal. Segundo, porque institui forma oblíqua de cobrança de tributos, permitindo que esta aconteça sem o observância do devido processo legal.

A Constituição Federal garante taxativamente a liberdade de exercício da atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos (art. 170, parágrafo único). Garante, outrossim, que ninguém será privado da liberdade, ou de seus bens, sem o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV), e que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.(art. 5º, inciso LV).

Ressalte-se ainda que a exigência de quitação de tributos será inconstitucional, ainda que estabelecida em lei complementar federal, na medida em que implicar cerceamento da liberdade de exercício da atividade econômica, ou propiciar ao fisco a cobrança do tributo sem o devido processo legal, vale dizer, sem a apuração em regular processo administrativo, e sem o uso da via própria, que é a execução fiscal.

Assim, por exemplo, a lei que exige a prova de quitação de tributo como condição para o arquivamento de atos societários na repartição competente do Registro do Comércio, é de flagrante inconstitucionalidade. Permite que o exercício da atividade econômica somente seja autorizado aos que estão em dia no pagamento dos tributos, violando assim a norma que assegura a liberdade de exercício de atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos. Além disto, institui uma forma de constrangimento para compelir o contribuinte ao pagamento do tributo, sem direito de questionar a legalidade da exigência deste. A autoridade competente para fornecer a certidão de quitação, nestes casos, não é competente para decidir se a quantia cujo não pagamento eventualmente está sendo obstáculo ao fornecimento da certidão é realmente devida. Também a autoridade perante a qual é praticado o ato, a autoridade do Registro do Comércio, não tem competência para resolver se a recusa no fornecimento da certidão é ou não legal. O obstáculo é criado e muita vez o contribuinte termina pagando quantias indevidas, porque este é o caminho mais prático para alcançar o resultado pretendido.

Tem sido freqüente o deferimento de mandado de segurança, então, para garantir a prática do ato sem a questionada certidão de quitação.

É cabível, outrossim, contra a entidade pública em cujo âmbito se tenha verificado a exigência ilegal, ou inconstitucional, ação para haver perdas e danos, morais e materiais, inclusive lucros cessantes, nos termos do art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal. Os danos materiais e o lucro cessante devem ser demonstrados e quantificados devidamente. O dano moral cuja indenização será devida às pessoas naturais prejudicadas, pode decorrer simplesmente da afirmação inverídica da existência de dívida, em determinadas circunstâncias.


5. Certidão negativa e lançamento

Tem sido freqüente a recusa de certidão negativa pelas repartições da Administração tributária em face de não comprovação, pelo requerente, do pagamentos dos tributos a que está sujeito, mesmo sem existir lançamento. Essa prática é desprovida de fundamento jurídico, porque o contribuinte não pode ser considerado em débito enquanto não for contra o mesmo constituído o crédito tributário.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que em se tratando de tributo sujeito a lançamento, enquanto este não se verificar, o contribuinte tem direito a certidão negativa de débito fiscal – eis que não existe, ainda, crédito tributário exeqüível (Acórdão unânime da 1ª Turma do STJ – REsp 127.375 – GO – Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, julgado em 04.12.97, DJU 1 de 02.03,98, p. 21, e Repertório IOB Jurisprudência nº 8/98, 2ª q. abr/98, p. 185, texto nº 1/12164).

Ocorre que, nos termos do CTN, todos os tributos estão sujeitos a lançamento. Mesmo em relação aos tributos cujo pagamento deve ser feito antes do lançamento, como previsto em seu art. 150, não se pode afirmar existente um débito tributário, e assim um obstáculo ao fornecimento da certidão, se não existe crédito tributário regularmente constituído.

Se o contribuinte não fez a declaração que lhe cabia fazer, ou não antecipou o pagamento, nos casos que a lei o obriga a isto, a autoridade da Administração Tributária tem o dever de proceder o lançamento do tributo, valendo-se das informações das quais possa dispor, e só depois poderá recusar o fornecimento da certidão negativa.

É que se o contribuinte não declarou, ou não antecipou o pagamento, pode ser, em princípio, que não estivesse obrigado a declarar, ou a antecipar pagamento algum. Pode não ter ocorrido a situação de fato da qual decorreria o seu dever de declarar, ou de pagar antecipadamente. Não existe, portanto, certeza alguma quanto à existência de dívida tributária, e por isto não pode a Administração Tributária recusar o fornecimento da certidão.


6. Exigência de quitação e garantias constitucionais

Para Ferreira Jardim, "a exigibilidade de certidões negativas, a exemplo do quanto consta em diplomas de índole tributária e administrativa, exprime absurdez vitanda absolutamente incompaginável com uma série de princípios constitucionais, dentre eles, o postulado assegurador ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, gravado no art. 5º, XIII, bem como no primado proclamador da livre atividade econômica, insculpido no art. 170, parágrafo único, bem como o vector que prestigia o direito de propriedade e o direito concernente à igualdade." (Eduardo Marcial Ferreira Jardim, Comentários ao Código Tributário Nacional, coord. Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 2, p.516).

Efetivamente, a exigência de certidão negativa de débito tributário pode, em muitos casos, consubstanciar cerceamento ao direito de exercer trabalho, ofício ou profissão, ou ao direito de exercer atividade econômica, e assim conflitar com normas da Constituição, que asseveram serem garantidos esses direitos. Nestes casos configuram verdadeiras sanções políticas, vale dizer, meios indiretos de compelir o contribuinte ao pagamento de tributos, cuja inconstitucionalidade tem sido afirmada por torrencial jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

Temos sustentado que as sanções políticas são flagrantemente inconstitucionais porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal (Hugo de Brito Machado, Sanções Políticas no Direito Tributário, em Revista Dialética de Direito Tributário, Dialética, São Paulo, n.º 30, p. 46/47).


7. Exigência de quitação de tributos e interesse público

7.1. Interesse público e garantias constitucionais

Casos existem nos quais a exigência de quitação de tributos efetivamente se justifica com fundamento no interesse público. Daí as hipóteses previstas no CTN, que em princípio podem ser consideradas constitucionais. Não se venha, porém, argumentar com o interesse público para justificar a exigência de certidões negativas quando tal exigência conflitar com a Constituição, porque o respeito a esta constitui interesse público o mais relevante.

Assim, por exemplo, a exigência de quitação como condição para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XIII), ou para o exercício de atividade econômica (Constituição Federal de 1988, art. 170, parágrafo único), é absolutamente inadmissível.

7.2. Interesse público na arrecadação de tributos

Mesmo que não se vislumbre na exigência de quitação, em certos casos, conflito com a Constituição (A própria Constituição Federal estabelece que a pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.(art. 195, § 3º), forçoso é admitir-se que o interesse público na arrecadação de tributos nem sempre justifica aquela exigência. Ferreira Jardim o demonstra:

"Suponha-se a seguinte situação: num procedimento licitatório empresa "A" apresenta a proposta mais vantajosa, pois desfruta de condições para realizar a obra – objeto da licitação – por menor custo e em menor espaço de tempo que os demais proponentes, além de encontrar-se credenciada a fazê-lo com qualificação técnica inigualável, em face de sua experiência e tradição. Nada obstante, a aludida empresa seria excluída do procedimento por ausência da certidão negativa.

Imagine-se, também, que o óbice no tocante à obtenção do referido documento não decorre da circunstância de o contribuinte ser um devedor contumaz ou um sonegador, até porque a precariedade do controle de débitos por parte da Fazenda Pública, não raro, enseja o registro de débitos inexistentes.

Posto isto, chega-se à seguinte conclusão: a empresa que reúne condições de realizar uma dada obra pública por melhor preço, mais rapidamente e com melhor instrumentação tecnológica não poderá fazê-lo em virtude da falta da certidão negativa!

Como se vê, o interesse público fica prejudicado em virtude de uma formalidade burocrática destituída de qualquer sentido lógico. Aliás, esse anacronismo medieval traduz um meio pelo qual a Fazenda Pública procura suprir a sua falta de capacitação no sentido de bem gerenciar a tributação. Quer dizer, embora a ordem jurídica coloque instrumentos ágeis e eficazes em prol da Fazenda Pública para que esta busque a satisfação de seus créditos tributários, ela se mostra incapaz de bem exercer legitimamente as suas prerrogativas e, por isso, culmina por recorrer a uma fórmula mais confortável, qual seja, por meio da exigência da certidão negativa, ainda que essa via afronte direitos e garantias do contribuinte" (Eduardo Marcial Ferreira Jardim, Comentários ao Código Tributário Nacional, coord. Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 2, p. 514/515).

7.3. Melhor forma de proteger o interesse público

Em casos de contratação com o Poder Público, nos parece que melhor forma de proteger o interesse público, inclusive na arrecadação de tributos, seria admitir como alternativa ao oferecimento de certidão negativa de débito tributário, a concordância expressa do contratante com o desconto dos tributos que estivesse a dever no momento do contrato.

Assim, restaria amplamente protegido o interesse público. Tanto porque se evitaria que uma simples formalidade burocrática, muitas vezes inócua, afastasse um potencial contratante capaz de oferecer obra ou serviço de melhor qualidade e a preços menores, como porque restaria garantida a arrecadação.

Sobre o autor
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito. A exigência de certidões negativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2559. Acesso em: 23 dez. 2024.

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