Sumário
Introdução. I – Previdência vs. Assistência 1.1 Benefícios assistenciais: evolução legislativa. 1.2 A natureza previdenciária da pensão por morte. 1.3 Pensão e amparo: impossibilidade de precedência face às diferentes naturezas jurídicas dos benefícios. O real sentido do art. 15, inciso I, da Lei 8.213/91. 1.4 PL nº 3800/2008. A previsão constante do projeto de consolidação das leis assistenciais. II – Notas finais. III – Referências bibliográficas.
Introdução
Faleceu o arrimo da família. O dependente procura o órgão de previdência para que lhe seja concedida a pensão por morte. Espanto geral: o requerimento foi indeferido! O supérstite fica indignado. O mais sereno não se conforma, mas, calmamente, balbucia algo que se pode traduzir como “isso não é justo!”. O mais intrépido parte ao ataque: dedo em riste, berra uma dezena de palavras, bate na mesa e diz que vai procurar seus direitos. Os advogados fazem a festa... Para quem está do lado de lá do guichê, só resta respirar fundo e se recompor, porque amanhã a história vai se repetir.
A ilustração se presta para demonstrar o que por vezes ocorre na análise dos requerimentos de pensão por morte: falece o titular de um benefício e o dependente logo procura o INSS para requerer o benefício por óbito. Caso o falecido recebesse alguma prestação de natureza previdenciária (auxílio-doença ou aposentadoria, por exemplo), a análise da pensão é extremamente singela: basta verificar se o interessado é deveras dependente do falecido; a qualidade de segurado, nesses casos, já está configurada, pois quem está em gozo de benefício automaticamente é segurado do Regime Geral de Previdência. No jargão utilizado pelo INSS, nesse caso a pensão é precedida, pois adveio do benefício dantes recebido pelo finado. A conclusão de tais requerimentos é tão simples que a pré-habilitação pode ser feita pela internet, no site do Ministério da Previdência Social.
Contudo, a situação se mostra distinta quando o falecido não recebia benefício previdenciário, e sim assistencial. Não raro chegam às agências requerimentos de pensões precedidas de amparos sociais ou rendas mensais vitalícias, os quais são gerenciados pelo INSS, mas não possuem o condão de atribuir ao falecido a qualidade de segurado indispensável à concessão de benefício decorrente do falecimento, pois a natureza jurídica que lhes foi constitucionalmente atribuída revela inexistência de custeio apto a ensejar o deferimento da pensão.
I. Previdência vs. Assistência
1.1 Benefícios assistenciais: evolução legislativa
A Constituição de 1967, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 1/1969, não tão analítica quanto a atual Carta, deixou de abordar com minúcias o tema seguridade social. Em razão do momento histórico pelo qual o país passava, a emenda elaborada pela Junta Militar se preocupou mais em organizar o Estado do que em traçar políticas direcionadas ao cidadão[1]. O assunto ao qual a vigente Constituição fez questão de reservar título e capítulos próprios – subdividindo-o em áreas de saúde, previdência e assistência –, não restou definido nitidamente na Constituição de 1967, cujos únicos dispositivos relacionados ao tema podem ser resumidos em poucas linhas:
Art. 165. A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos têrmos da lei, visem à melhoria de sua condição social:
XV – assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva;
XVI – previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprêgo, seguro contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado;
XIX – aposentadoria para a mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral; e
XX – a aposentadoria para o professor após 30 anos e, para a professora, após 25 anos de efetivo exercício em funções de magistério, com salário integral. [Incluído pela Emenda Constitucional 18/1981]
Parágrafo único. Nenhuma prestação de serviço de assistência ou de benefício compreendidos na previdência social será criada, majorada ou estendida, sem a correspondente fonte de custeio total.
Não havendo detalhamento constitucional sobre o assunto, coube ao legislador ordinário fazê-lo. Em nível de direitos assistenciais, a gênese ocorreu com a Lei 6.179/74, que criou um benefício mensal ao qual a lei atribuiu duas nomenclaturas: amparo previdenciário[2], ou renda mensal vitalícia. Esse benefício era pago no valor de 50% do maior salário-mínimo vigente e comportava duas espécies: a) eram amparados aqueles que tivessem mais de 70 anos de idade, ou b) fossem inválidos.
Para fazer jus a esse amparo, a lei condicionava vários requisitos cumulativos: não se podia exercer atividade remunerada, nem perceber qualquer tipo de rendimento superior à metade do maior salário-mínimo em vigor no país, não ser dependente de pessoa que tivesse fonte de renda nem possuir qualquer outro meio de prover o próprio sustento. Tais requisitos justificavam o caráter assistencial da lei, cuja finalidade era garantir renda que pelo menos socorresse aos mais necessitados e os auxiliasse na sobrevivência com um mínimo de dignidade.
Uma vez concedido o benefício, não se podia acumular a renda mensal vitalícia com qualquer benefício ou serviço, exceto a) a assistência médica, que à época contemplava somente os segurados da Previdência Social, e b) o pecúlio, que era a devolução das contribuições previdenciárias pagas, mas não utilizadas para a concessão de benefício previdenciário.
Com a Constituição de 1988, o constituinte reservou vários dispositivos para disciplinar as ações de governo no âmbito da assistência social, notadamente no art. 203, inciso V:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. [gn]
O benefício pago sob a égide da Lei 6.179/74 poderia ser facilmente revogado, pois não havia garantia constitucional de sua permanência no ordenamento jurídico. Com a atual Carta, entretanto, alçou-se o direito de receber benefício assistencialista ao nível supralegal, de modo que não mais se pode extirpá-lo do mundo jurídico por simples lei. Mais que isso: elevou-se o valor do benefício ao salário-mínimo.
Como o art. 203, o inciso V, da Constituição, não é norma constitucional de eficácia plena, houve necessidade de regulamentação por lei ordinária; até a edição dessa lei, os requisitos fixados pela Lei 6.179/74 continuaram a ser aplicados, o que perdurou até a Lei 8.213/91, cujo art. 139 revogou tacitamente[3] aquele diploma legal:
Art. 139. A Renda Mensal Vitalícia continuará integrando o elenco de benefícios da Previdência Social, até que seja regulamentado o inciso V do art. 203 da Constituição Federal.
§1º A Renda Mensal Vitalícia será devida ao maior de 70 anos de idade ou inválido que não exercer atividade remunerada, não auferir qualquer rendimento superior ao valor da sua renda mensal, não for mantido por pessoa de quem depende obrigatoriamente e não tiver outro meio de prover o próprio sustento, desde que:
I – tenha sido filiado à Previdência Social, em qualquer época, no mínimo por 12 meses, consecutivos ou não;
II – tenha exercido atividade remunerada atualmente abrangida pelo Regime Geral de Previdência Social, embora sem filiação a este ou à antiga Previdência Social Urbana ou Rural, no mínimo por cinco anos, consecutivos ou não; ou
III – se tenha filiado à antiga Previdência Social Urbana após completar 60 anos de idade, sem direito aos benefícios regulamentares.
§2º O valor da Renda Mensal Vitalícia, inclusive para as concedidas antes da entrada em vigor desta lei, será de um salário mínimo.
§3º A Renda Mensal Vitalícia será devida a contar da apresentação do requerimento.
§4º A Renda Mensal Vitalícia não pode ser acumulada com qualquer espécie de benefício do Regime Geral de Previdência Social, ou da antiga Previdência Social Urbana ou Rural, ou de outro regime[4].
O que o art. 139 da Lei 8.213/91 fez foi, em caráter precário, adequar a renda mensal vitalícia criada pela Lei 6.179/74 à Constituição de 1988. A regulamentação completa somente ocorreu com a Lei 8.742/93, que instituiu a Lei Orgânica da Assistência Social (conhecida pela sigla Loas), atualmente em vigor.
A Loas manteve o rol de benefícios da Lei 6.179/74, embora com o espírito da Constituição de 1988 e novas denominações: os benefícios assistenciais instituídos pela legislação de 1993 foram organizados sob o gênero benefício de prestação continuada (BPC) e subdivididos em duas espécies: a) o amparo social ao idoso e b) o amparo social ao deficiente. Ambos os amparos são custeados pela União, que se vale da infraestrutura do INSS para operacionalizar a autuação dos processos, análise dos requerimentos e disponibilização do pagamento junto à rede bancária.
Nos moldes das legislações anteriores, para a concessão do BPC os interessados não podem possuir outros meios para prover a própria mantença nem de tê-la promovida pela família. O critério adotado pela Loas, nesse caso, foi fixar um limite para a renda familiar per capita, a qual deve ser inferior a ¼ do salário-mínimo[5].
Como requisito específico de cada benefício, anota-se que o amparo ao idoso originariamente era pago aos maiores de 70 anos (art. 20 da Loas, na redação originária); o requisito etário foi diminuído para 67 anos a partir de 1º de janeiro de 1998, por força da alteração promovida pela Lei 9.720/98 e, com o Estatuto do Idoso, reduziu-se a idade para 65 anos (art. 34 da Lei 10.741/03).
Já o conceito de deficiência, para fins de percepção de benefício assistencial, é estendido às anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênita ou adquirida, física ou mental, que incapacita a pessoa para o trabalho e para exercer atos da vida. Neste sentido, complemento doutrinário:
Para caracterizar a deficiência, além de se valer da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde – CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial de Saúde nº 54.21, aprovada pela 54ª Assembléia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001, também pode o intérprete recorrer ao artigo 3º, I, do Decreto 3298/99, que regulamenta a Lei 7.853/89, o qual define a deficiência como “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”, atrelado às hipóteses taxativas previstas no artigo 4º do mesmo decreto.
Uma vez caracterizada a deficiência é lícito dizer que o indivíduo é, também, incapaz para a vida independente. Não se vislumbra uma pessoa que padece de incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano que não seja incapaz para a vida independente, desde que a atividade em comento tenha natureza essencial à sobrevivência, observado o artigo 3º, I, do Decreto 3298/99[6].
Enfim, o enfoque constitucional dado aos benefícios assistenciais implica não exigência de recolhimento aos cofres públicos por parte do beneficiário, porquanto insertos no sistema de seguridade social, de modo que o financiamento é feito pelo poder público e pela sociedade (art. 194 da Constituição), cujo objetivo é minorar o sofrimento dos menos favorecidos, enfrentar a pobreza e universalizar os direitos sociais. Neste sentido é a lição de José Afonso da Silva:
As ações da assistência social têm, pois, como fundamento a realização do princípio da igualdade; não da igualdade puramente formal, mas da igualdade material – porque tende a promover a igualização dos socialmente desiguais. São ações afirmativas do Estado destinadas a superar as carências sociais a que estão submetidos enormes bolsões de pobreza, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Nesse particular, as normas de assistência social inserem-se no contexto dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da CF[7].
Dos requisitos previstos em lei para concessão dos amparos, o único que realmente é considerado de forma objetiva é a idade. Os demais (deficiência e renda per capita) são, em boa parte das vezes, mitigados por interpretação teleológica, que permite reconhecer os verdadeiros fins sociais da legislação. O magistrado, nessa esteira, afasta critérios eminentemente positivistas e busca relativizar o comando legal de forma a promover pacificação social com justiça[8].
E exatamente essa natureza assistencial que justifica o caráter personalíssimo do benefício, o qual é extinto pela morte ou pela superação das deficiências que ensejaram a sua concessão.
1.2 A natureza previdenciária da pensão por morte
Conforme dispõe o art. 74 da Lei 8.213/91, a pensão por morte é devida “ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não”. Desse dispositivo se extraem dois requisitos subjetivos necessários à concessão do benefício: a) ser o interessado dependente do falecido, b) ser o falecido segurado da Previdência Social.
Para ostentar a condição de segurado, a pessoa se obriga a efetuar recolhimentos à Previdência[9], que é sustentada através de um sistema contributivo (art. 201, caput, da Constituição Federal), daí se justificar a índole previdenciária do benefício.
1.3 Pensão e amparo: impossibilidade de precedência face às diferentes naturezas jurídicas dos benefícios. O real sentido do art. 15, inciso I, da Lei 8.213/91
Em virtude do grande número de interessados que ajuízam ações objetivando a concessão de pensão por morte precedida de benefício assistencial, a partir de 1995 os Regulamentos da Lei Orgânica da Assistência Social passaram a conter disposições expressas para elidir quaisquer dúvidas sobre o tema.
O art. 36 do Regulamento de 1995, aprovado pelo Decreto 1.744/95, previa que “o beneficio de prestação continuada é intransferível, não gerando direito a pensão ou pagamento de resíduo a herdeiro ou sucessor[10]”, redação que fora mantida com as alterações promovidas pelo Decreto 4.360/02 e, posteriormente, pelo Decreto 4.712/03.
O art. 23 do atual Regulamento, aprovado pelo Decreto 6.214/07, não andou diferente ao rezar que “o Benefício de Prestação Continuada é intransferível, não gerando direito à pensão por morte aos herdeiros ou sucessores”.
Os regulamentos nada mais fizeram senão clarificar o que se depreende do art. 21, § 1º da Lei 8.742/93, verbis:
Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada dois anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.
§ 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário.
O texto da lei, em si mesmo, revela com clareza a proibição de se conceder pensão precedida, porquanto o amparo é benefício que se extingue com a morte do beneficiário, não suscetível de transmissão a eventuais dependentes. Com efeito, reveste-se de natureza assistencial, logo, está limitado à pessoa do beneficiário – unicamente.
Contudo, mesmo com o comando legal e com as disposições constantes dos sucessivos regulamentos, muitos pleiteiam judicialmente a precedência de benefício assistencial. Quem assim o faz se pauta em forjada interpretação do art. 15, inciso I, da Lei 8.213/91, in litteris: “Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: I – sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício”. Com esse mesmo fundamento, não raramente se verificam decisões judiciais que determinam ao INSS a concessão de pensões precedidas de benefícios assistenciais, principalmente magistrados estaduais investidos em jurisdição federal.
Agindo assim, os defensores dessa tese pugnam pela ilegalidade do art. 23 do Regulamento da Loas, pois o Decreto 6.214/07, por ser ato infralegal, não poderia ir de frente ao que dispõe o art. 15, inciso I, da Lei 8.213/91; também alegam a possibilidade de se fazer interpretação extensiva do dispositivo da Lei de Benefícios, pois onde a lei não distinguiu, não caberia ao intérprete fazê-lo.
Ora, a pensão por morte é orientada a amparar os dependentes do segurado falecido. A morte – fato que lhe serve de ensejo – é imprevisível, razão pela qual se justifica não haver necessidade de carência (Lei 8.213/91, art. 26, inciso I). Por outro lado, é imprescindível que o falecido seja segurado do Regime Geral de Previdência à época do óbito, até mesmo como forma de se compensar a não-equivalência entre o custeio (já que fora eliminada a carência) e a prestação. Se assim não fosse, o benefício previdenciário seria desvirtuado em assistencial, permitindo a confusão de sistemas absolutamente distintos, embora insertos no âmbito da seguridade social.
A própria Constituição, no título “Da Ordem Social”, trata previdência e assistência em seções diversas, estabelecendo o caráter contributivo da primeira (art. 201, caput) e a natureza assistencial da última, assegurando a sua prestação aos necessitados, independentemente de contribuição.
Falar em seguridade social implica conceito que envolve um conjunto integrado de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (art. 194 da Constituição). Cada um desses ramos de ação governamental possui regras próprias a serem observadas: a saúde, por exemplo, é regida pela Lei 8.080/90; a previdência social, pelas Leis 8.212/91 e 8.213/91 e, por fim, a assistência social, cuja norma orgânica é a Lei 8.742/93.
Assim, salvo disposição expressa em sentido contrário, as regras previstas para qualquer desses sistemas não se aplicam aos outros, pois – frise-se – embora integrem o sistema de seguridade social e se complementem, são distintos entre si. Desta sorte, as antigas rendas mensais vitalícias e os amparos sociais, que são de cunho assistencial, não geram direito à pensão por morte, já que esta é benefício previdenciário.
É bem verdade que o art. 15, inciso I, da Lei 8.213/91, reza que mantém a qualidade de segurado quem está em gozo de benefício, todavia, não se pode fazer leitura isolada do comando legal: a legislação deve ser interpretada de forma sistêmica, e não isoladamente.
Caso se interpretasse o dispositivo de modo isolado, poder-se-ia chegar à conclusão – errônea – de que o falecido que recebia benefício assistencial era segurado da Previdência pelo simples fato de receber algum benefício. Todavia, quando a lei previdenciária afirma que é segurado aquele que está em gozo de benefício, a mens legislatoris é clara em demonstrar que apenas mantém a qualidade de segurado aquele que está em gozo de benefício previdenciário.
Pretender aplicar uma lei previdenciária na seara assistencial seria, a título de exemplo, admitir interposição de agravo de instrumento na primeira instância de processos criminal ou trabalhista, transpondo-se normas de processo civil a outros ramos do Direito que não o admitem. Deve-se afastar, portanto, toda e qualquer pretensão em se reconhecer a qualidade de segurado àqueles que recebem benefícios assistenciais.
Interpretação em sentido diverso permitiria, por exemplo, que pessoas titulares de outros benefícios assistenciais (embora não geridos pelo INSS), como o bolsa-família, fossem vinculadas ao Regime Geral de Previdência pelo simples fato de receber tal benefício, todavia, assim não é.
Bom lembrar, ainda, que a concessão dos benefícios assistenciais “é feita pelo INSS devido a preceitos práticos – se o INSS já possui estrutura própria espalhada por todo o país, em condição de atender à clientela assistida, não haveria necessidade da manutenção em paralelo de outra estrutura[11]”, ou seja, o benefício assistencial está no âmbito do INSS apenas “emprestado” , embora não tenha qualquer relação com o Regime Geral de Previdência.
Neste sentido, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
PREVIDENCIÁRIO. RENDA MENSAL VITALÍCIA. PENSÃO POR MORTE. NÃO CABIMENTO.
O amparo previdenciário da Lei 6.179/74, substituído pela renda mensal vitalícia da Lei 8.213/91 e, em seguida, pelo benefício de prestação continuada da Lei 8.742/93, não enseja pensão por morte.
Recurso conhecido e provido[12].
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. RENDA MENSAL VITALÍCIA. BENEFÍCIO. PENSÃO POR MORTE. LEI 8.742⁄93.
O benefício de Renda Mensal Vitalícia, instituto de natureza assistencial, cessa com a morte do beneficiário, não havendo transferência do pagamento de pensão a seus dependentes. Recurso especial conhecido[13].
PREVIDENCIÁRIO – RECURSO ESPECIAL – RENDA MENSAL VITALÍCIA – BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE – IMPOSSIBILIDADE – LEI 8.742⁄93 – FALTA DE AMPARO LEGAL
O benefício previdenciário de Renda Mensal Vitalícia caracteriza-se como instituto de natureza assistencial, cessando com a morte do beneficiário.
Consoante o disposto no § 1o, do art. 21, da Lei 8.742⁄93, inexiste amparo legal para a concessão de pensão por morte a dependentes de segurado beneficiário de renda mensal vitalícia.
Recurso conhecido e desprovido[14].
Não é pelo fato de a Loas ter uma finalidade social que deve ser interpretada de modo a subverter o sistema constitucional previdenciário, concedendo-se benefício a dependente de quem nunca foi contribuinte do Regime Geral de Previdência (ou já o foi há muito tempo e perdeu a condição de segurado), sob pena de se desvirtuar um benefício previdenciário em assistencial.
1.4 PL nº 3800/2008. A previsão constante do projeto de consolidação das leis assistenciais
Apresentado em 6 de agosto de 2008 e fruto dos estudos do Grupo de Trabalho de Consolidação das Leis instalado na Câmara dos Deputados em 9 de outubro de 2007, o Projeto de Lei nº 3800/2008 tem por objetivo consolidar a legislação relativa à Assistência Social para fins de revisar e organizar as diversas leis que versam sobre direitos assistenciais, condensando-as em uma só lei, de forma a evitar a confusão de textos contraditórios e a eliminar os preceitos ultrapassados.
No que se refere à vigência do BPC, o PL 3.800/2008 manteve inalteradas as atuais regras, conforme consta do art. 31, § 1º, da redação originariamente apresentada, que nada mais é senão a repetição do art. 21, § 1º da atual Loas, verbis:
Art. 31. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada dois anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.
§ 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput ou em caso de morte do beneficiário.
Ressalta-se, dessa forma, que a possibilidade de se alterar o atual regramento sequer foi cogitada pela Câmara dos Deputados, pois os princípios constitucionais que permeiam o tema não permitem que se caminhe de assistência à previdência sem que haja o necessário custeio inerente ao sistema contributivo previdenciário.
II. Notas finais
A partir de análise legal, doutrinária e jurisprudencial, o desfecho óbvio revela que em razão de as rendas mensais e os amparos sociais possuírem natureza assistencial, não induzem a condição de segurado do falecido, requisito sem o qual resta impossível se deferir pensão aos dependentes.
Dadas as distintas naturezas jurídicas que lhes foram constitucionalmente atribuídas, fica claro que os benefícios assistenciais possuem caráter personalíssimo e cessam com a morte do beneficiário; não são suscetíveis, pois, de transmissão a herdeiros, de modo que não geram direito à pensão por morte, já que esta é benefício previdenciário.
Valendo-se dos dizeres do Ministro Hamilton Carvalhido, por ocasião do voto proferido no REsp 524.006/MG:
Entender o contrário acarretaria, inarredavelmente, a violação dos princípios constitucionais do caráter contributivo e do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social (Constituição Federal, artigo 201, caput), pois se estaria concedendo benefício previdenciário, que é de natureza contributiva, sem a correspondente fonte de custeio prevista em lei[15].
Não obstante o texto literal da lei e do decreto regulamentador, dos princípios constitucionais previdenciários e da bênção do entendimento jurisprudencial no mesmo sentido, ainda pende uma indagação: a numerosa quantidade de ações que objetivam pensão por morte precedida de benefício assistencial reflete o constitucional direito de agir, ou consubstancia verdadeira aventura jurídica – na maioria das vezes sob o pálio da assistência judiciária?
III. Referências Bibliográficas
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
MORAES, Ricardo Quartim de. O benefício assistencial à luz da estrutura da seguridade social. Revista da AGU, Brasília, n. 23, jan./mar. 2010, p. 277-294.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
Notas
[1] Excetuadas as disposições transitórias, foram 159 artigos dedicados à organização do Estado e somente 21 ao cidadão.
[2] O nome previdenciário se justificava não pela natureza do benefício em si, pois o caráter era eminentemente assistencial, mas pelo fato de que para obter o benefício era necessário ter sido filiado ao antigo INPS, embora não mais pudesse sê-lo ao tempo do requerimento. Em resumo: no passado era segurado da Previdência, mas quando requereu o benefício não mais o era (Lei 6.179/74, art. 1º).
[3] Embora tacitamente revogada e tendo em vista que não houve regra de transição específica para regulamentar a manutenção dos benefícios assistenciais em face das alterações legislativas, o INSS continuou a receber requerimentos de renda mensal vitalícia instituída até 7 de junho de 1995 (art. 18 do primeiro Regulamento da Loas, aprovado pelo Decreto 1.330/94).
[4] A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93), ao estabelecer o novo regramento jurídico para a concessão de benefícios assistenciais, acabou por revogar tacitamente o art. 139 da Lei 8.213/91. A revogação expressa desse dispositivo apenas ocorreu com a Lei 9.528/97.
[5] A Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU) editou a Súmula nº 11, com o seguinte teor: “A renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei 8.742/93, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”. Entretanto, o STF entendeu que o parâmetro fixado pela Loas é critério objetivo para aferição da renda familiar (ADI 1.232/DF), o que motivou o cancelamento da Súmula nº 11/TNU em 24/4/2006. Não obstante o cancelamento da súmula, nem os juizados especiais federais nem o STJ abandonaram esse posicionamento, firmes na proteção social do hipossuficiente. Aliás, o próprio STF já admite revê-lo: “O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de ¼ do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição. [...] A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/1993” (STF, MC na Rcl nº 4374/PE, Gilmar Mendes, divulgado no Informativo de Jurisprudência nº 454).
[6] MORAES, R. Q de. O benefício assistencial à luz da estrutura da seguridade social, p. 287-288.
[7] SILVA, J. A. Comentário contextual à Constituição, p. 783.
[8] As formas de interpretação da norma jurídica feita pelo Poder Judiciário são distintas das formas utilizadas pela Administração Pública. O juiz pode relativizar o comando legal na busca pelos fins sociais (art. 5º da LIDND) e, com isso, valer-se de interpretação teleológica. O INSS, por sua vez, aplica critérios quase que sempre gramaticais, sob pena de violação do princípio da legalidade estrita a que são submetidos os atos administrativos.
[9] Quer como contribuinte individual, facultativo, doméstico, segurado especial ou, ainda, como empregado, salvo a exceção prevista no art. 102, § 2º, parte final, da Lei 8.213/91 (situação em que, embora já não mantendo a condição de segurado, o falecido já havia preenchido os requisitos para se aposentar, embora não o tenha feito em vida).
[10] Grifos nossos. O primeiro Regulamento da Loas, aprovado pelo Decreto 1.330/94, não continha disposição expressa no mesmo sentido, embora o art. 16, inciso I, deixasse subentendido.
[11] IBRAHIM, F. Z. Curso de direito previdenciário, p. 16.
[12] STJ, REsp 264.774/SP, Gilson Dipp, DJU 5/11/2001.
[13] STJ, REsp 177.083/SP, Vicente Leal, DJU 28/9/2000.
[14] STJ, REsp 175.087/SP, Jorge Scartezzini, DJU 18/12/2000.
[15] STJ, REsp 524.006/MG, Hamilton Carvalhido, DJU 10/5/2004.