Expomos alguns dados com o objetivo de iniciarmos a reflexão que a partir daqui se propõe:
Os atentados terroristas que atingiram os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 mataram 2.977 pessoas, chocando os estadunidenses e dando início à “Guerra contra o Terror”.[1]
No ano de 2010, 42.800 pessoas morreram no trânsito brasileiro. Grande parte destas mortes poderiam ter sido evitadas com medidas preventivas e melhoria do transporte público.[2]
10 milhões de pessoas morrem de fome no mundo por ano.[3]
Muito se tem discutido no mundo jurídico o conceito de Direito Penal do Inimigo, contudo, nota-se que há muito debate apaixonado, porém sem analisar a questão de forma aprofundada e, ainda, sem realmente conhecer aquilo sobre o qual se está a debater.
Entende-se o calor da discussão, seja pela ideologia dominante na academia do Direito Penal, seja pelos diversos conflitos que o mundo moderno vem passando.
Desta arte, vê-se certo desconhecimento de muitos debatedores que atacam ou defendem o dito Direito Penal do inimigo, além da falta de cientificidade no debate, esquecendo-se que a ciência deve observar e descrever, fugindo de subjetivismos.
Logo, fomos buscar principalmente no diálogo entre o principal expoente da teoria do Direito Penal do Inimigo, Günther Jackobs, e o professor Manuel Cancio Meliá a fonte para este estudo.
Ao discorrer sobre Direito, deve-se sempre ter como premissa que o Estado nasce pelo homem e para o homem, não é um algo intangível e distante, como se fosse um Deus. Mormente em um Estado Democrático de Direito, o ser humano é sua base e seu objetivo.
As teorias contratualistas trazem o argumento necessário para se legitimar a perda de parte da liberdade humana em prol da coletividade. Há que se ter a consciência que o homem não quer, a priori , perder, perde para poder ganhar segurança, e só perde aquela parte estritamente necessária.
Em consequência, o ordenamento jurídico não pode desconsiderar qualquer pessoa como parte de si, pois, seja quem for esta pessoa, é parte do contrato chamado Estado, não podendo ser tratada como coisa, mas sim como elemento de uma relação jurídica contratual.
Mais ainda no âmbito de aplicação do Direito Penal, a forma mais dura de intervenção estatal sobre a pessoa.
Lembremos que, por maior que seja o ataque de uma pessoa contra um bem jurídico, mantem-se como ser humano pactuante. Deve-se ter em mente que mesmo os mais refratários, em regra, estão a cumprir as regras estatais, são poucos os momentos de ataque ao direito e, sobre estes fatos, que deve incidir o Direito e o Direito Penal nos casos mais graves.
Ao tratar do Direito Penal do inimigo, o que Günther Jakobs faz é defender um Direito Penal que trata o ser humano como pessoa, em contraposição a um Direito Penal que trata o homem como fonte de perigo. Cria um Direito Penal do inimigo e um Direito Penal do cidadão.[4]
Teria o Direito Penal do cidadão o papel de afirmar a vigência da norma, a pena neste Direito seria uma resposta ao ato da pessoa, quando a pessoa desobedece à norma está desacatando a ordem social, em consequência, a pena teria a função de afirmar que a norma vige, em respeito à sociedade.
Já no Direito Penal do inimigo, a pena teria a função de eliminação de um perigo.
O Direito Penal então teria dois polos, um Direito Penal que espera a ocorrência de um delito para agir, o Direito Penal do cidadão, tendo a pena como afirmação da organização social; e o Direito Penal do inimigo, o qual atinge a pessoa na preparação para o ataque à sociedade, combatendo a pessoa como inimigo, por sua periculosidade.
Questiona-se neste ponto se, ao se tratar o autor como pessoa, no caso de personalidade voltada para a destruição da ordem, o Estado não estaria se fragilizando.
Neste ponto, afirma-se que, ao tratar um inimigo (aquela pessoa desviante da ordem vigente, atacando-a de forma grave) como cidadão (pessoa) o Estado está se deteriorando.
Em verdade, ele defende uma divisão clara do Direito Penal nestas duas vertentes, não devendo se misturar o Direito Penal do inimigo com o Direito Penal do cidadão, assim como não se deve misturar guerra e processo penal.
Jakobs declara que os Estados já tem em seu ordenamentos os dois Direitos, porém, continuam a chamá-lo de Direito Penal do cidadão. Além de defender o uso de um Direito Penal que trate a pessoa como inimigo, atingindo não somente atos concretos, mas a pré-disposição para a prática de crimes, afirma que os ordenamentos jurídicos já vêm trazendo dispositivos que são de Direito Penal do inimigo, sem contudo declará-lo expressamente, como no caso das novas legislações sobre criminalidade econômica, terrorismo, criminalidade organizada, entre outras.[5]
Da mesma forma, no Direito Processual Penal estaria presente a dualidade, um Direito Processual para o inimigo e outro para o cidadão. Cita como exemplos deste direito já presente nas legislações a incomunicabilidade de presos, a retirada compulsória de sangue para exame, a prisão preventiva etc.
Jakobs critica a promiscuidade que existe entre o Direito Penal do cidadão e o Direito Penal do inimigo, afirmando que há dispositivos nos ordenamentos penais que tratam o criminoso comum como inimigo. Insiste que o inimigo não deve ser tratado como pessoa, sob pena de fragilizar a segurança dos cidadãos, porém o oposto também ocorre, de forma errônea.
Quanto à validade dos Direitos Humanos, Jakobs afirma que não está a pregar contra ela, porém, há primeiro que estabelecer-se a vigência dos direitos humanos.
Conforme o doutrinador, não existe ainda um Estado-universal garantidor dos Direitos Humanos. Só em um Estado em que a vítima e o autor estão sujeitos à tutela do Estado e este Estado tenha força para fazer valer a norma é que se pode falar em pessoa violadora da norma.
Unicamente com a existência de um Estado forte que se poderá garantir os Direito Humanos, antes disso vivemos no estado da natureza. Logo, como ainda não se estabeleceu um Estado mundial garantidor dos Direitos Humanos, os violadores deste direitos estão no estado da natureza, não tem personalidade, e contra eles deve ser estabelecida uma guerra, e serem castigados.
Contudo, esta relação não seria com pessoas culpáveis, mas uma jornada contra inimigos, até se estabelecer o Estado garantidor de Direitos Humanos, ou seja, até não haver estas pessoas que afrontem a ordem vigente.
O estudo apresentado pelo professor da Universidade de Bonn é bem elaborado, bem fundamentado e tentador, diante da consciência que temos dos perigos que aqueles que são chamados por ele de inimigos trazem para toda a sociedade, fragilizando o Estado e impedindo o provimento de segurança.
Porém, utilizá-lo da forma como defendido, parece-nos um retrocesso. Foi longo o caminho até a chegada ao atual estágio de desenvolvimento do Direito Penal, um Direito que defende o cidadão dos abusos do Estado, o Direito do Equilíbrio obtido após muita guerra e muito sangue derramado.
O que se tem observado é que a política criminal do ocidente tem pendido para uma expansão do Direito Penal, o que pode ser constatado por dois fenômenos distintos: o Direito Penal simbólico e o punitivismo.[6]
O primeiro é uma estratégia legislativa de se levar à sociedade a impressão de que o Estado está atento e atuante. Seria uma resposta política para saciar demandas populares, em vez de se adotar medidas eficazes, simplesmente edita-se uma lei criminalizadora. O objetivo não é aplicar a norma, mas parecer que está atuando naquela matéria.
Quanto ao punitivismo, é um movimento de aumento da intervenção penal, com o fim de aplicar a norma penal. Aqui aparece um fenômeno interessante, que é tanto a direita política, como a esquerda, utilizando-se do ganho político de editar-se normas incriminadoras. Temos então o movimento para penalizar atos dicriminatórios, como contra mulheres, contra homossexuais, contra idosos etc.
Há uma escalada no número dos tipos penais, na ampliação das penas e na diminuição de garantias.
Da união de ambos os movimentos, surge então o Direito Penal do inimigo, que vem permeando as legislações.
Cancio Meliá apresenta o Direito Penal do Inimigo como terceira velocidade do ordenamento jurídico-penal, acompanhando Silva Sanchez, pois aplica penas privativas de liberdade e flexibiliza as garantias processuais penais.
Na sua crítica ao Direito Penal do Inimigo, Cancio Meliá aponta inúmeras fragilidades da teoria de Jakobs, seja pela imprudência na escolha de inimigos, seja pela falha nas tipificações que não se preocupam exclusivamente com o fato imputado.
O professor da Universidade Autônoma de Madri continua as críticas apontando desde questões externas ao Direito Penal, como ser uma política falha, ou inconstitucional, como o movimento não ter capacidade de prevenir o crime.
Conclui que o Direito Penal do Inimigo não é Direito Penal, pois não defende normas, mas, sim, demoniza alguns grupos de infratores escolhidos; assim como não é um Direito Penal do fato, mas do autor.[7]
Algo que tem que ser colocado em questão é se realmente os grupos de infratores apontados como inimigos realmente vulneram tão gravemente a estabilidade do Estado, a ponto de se deixar de lado valores tão relevantes para o ser humano. Ou seja, o endurecer da norma deve ser previamente bem estudado, para que a tensão de um curto momento histórico não faça desmoronar valores que demoraram tanto a ser adquiridos.
Este chamado Direito Penal do Inimigo, infelizmente, já é uma relidade nas legislações penais e processuais penais, tendo Jakobs sistematizado e fundamentado um movimento que tem se acelerado.
O Direito Penal pode e deve dar uma dura resposta às ameaças mais graves contra a sociedade. A corrupção, o crime organizado, os crimes de colarinho branco, entre outras, devem ser rigidamente tratadas.
Contudo, os valores adquiridos pela civilização não podem ser abandonados nesta luta. Os dados que trouxemos nas primeiras linhas foram para nos fazer refletir sobre números crueis. 10 milhões de pessoas morrem por ano de fome, será que não estamos apontando para os alvos errados?
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Manuel da Costa Andrade; DIAS, Jorge de Figueiredo Dias. Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1992.
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte geral. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: A Constituição penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
GOMES CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2008.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte geral. 15.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: L&pm, 2013.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
VALENTE, Manoel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O progresso ao retrocesso. São Paulo: Almedina, 2010.
Notas
[1] MUNDO: 11/9 – O dia que marcou uma década. Veja lista completa das vítimas dos ataques de 11 de Setembro. Folha de S. Paulo. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/mundo/967679-veja-lista-completa-das-vitimas-dos-ataques-de-11-de-setembro.shtml> Acesso em 18/5/2013.
[2] RODRIGUES, Arthur. Trânsito mata 42,8 mil pessoas no país e índice cresce 13,9% em um ano. O Estado de São Paulo. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,transito-mata-428-mil-pessoas-no-pais-e-indice-cresce-139-em-um-ano-,871934,0.htm> Acesso em 18/5/2013.
[3] REPRESENTAÇÃO da FAO no Brasil. Notícias: Os desafios para um mundo sem fome. Disponível em: < https://www.fao.org.br/dmsm.asp> Acesso em 15/5/2013.
[4] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[5] Ibdem, pag, 33.
[6] Ibidem, pag, 77.
[7] Ibidem, pag, 101.