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Pierre Levy, Paul Virilio e Bill Gates antes e depois de Snowden.

É tempo de repensar a cibercultura

Agenda 26/11/2013 às 10:30

As revelações de Snowden destruíram as esperanças que Pierre Levy depositava na construção de uma "democracia virtual", expuseram a hipocrisia doutrinária de Bill Gates e recolocaram na ordem do dia as teses fundamentais de Paul Virilio.

Há algum tempo resenhei três livros considerados fundamentais para aqueles que pretendem navegar no oceeano da cibercultura. Refiro-me às obras Cibercultura (Pierre Levy), A estrada do futuro (Bill Gates) e O Espaço Crítico (Paul Virilio). Os dois primeiros adotam uma perspectiva otimista em relação à internet e aos fenômenos sociais que ela desencadeou. O terceiro é bastante pessimista em relação a ambas.

As três resenham foram divulgadas há vários anos. Na oportunidade eu mesmo adotava uma perspectiva bastante otimista em relação a internet. As reveleções feitas por Snowden me obrigaram a rever minhas posições. Deixei de ser um entusiasta da internet.

Pierre Levy não fez previsões sombrias analogas às de Paul Virilio, nem tampouco enalteceu os aspectos comerciais e supostamente paradisíacos da vida on line como Bill Gates. Ao contrário de ambos, Levy procurou pensar as novas tecnologias e suas consequencias de uma forma aparentemente realista e cuidadosa. Escapou a ele, entretanto, a possibilidade da rede mundial ser transformada numa ferramenta de espionagem massiva de cidadãos, empresas e governos.

Crítico da sedentarização terminal provocada pela internet, Paul Virilio ataca de maneira veemente a homogeneizaçao cultural construída metodicamente pela rede de computadores. Numa passagem memorável, que há alguns anos me fez criticá-lo bastante, o autor francês evoca a História de Roma e diz:

“ 'Tu fizeste do mundo uma cidade' dizia o galo-romano Namatianus ao repreender César. Há pouco tempo, este projeto imperial se tornou uma realidade quotidiana que não podemos mais ignorar em termos econômicos, e menos ainda culturalmente.”

As palavras amargas de Virilio se tornaram realidade. O império virtual norte-americano não respeita fronteiras, privacidades ou garantias legais internacionais atribuídas aos Estados, governos, empresas e cidadãos. Todos são espionados em todos lugares pela NSA. Segundo Namatianus, Roma teria transformado o mundo (ou seja, a Europa ao tempo de César) numa cidade. Na atualidade, os EUA ambiciona transformar (e de certa maneira já transformou) o planeta inteiro num único território submetido à sua sede controle e interferência mediante a obtenção ilegal de informações.

Ao contrário de Paul Virilio, Pierre Levy afirmou que a internet era includente. O conceito mais importante desenvolvido na obra Cibercutura é o seguinte: a rede mundial de computadores seria um universal sem totalidade, ou seja, ela supostamente permitiria às pessoas conectadas construir e partilhar a inteligência coletiva sem submeter-se a qualquer tipo de restrição político-ideológica. Partindo deste princípio, Levy encarou a Internet como um agente humanizador (porque proporcionaria a democratização da informação) e um instrumento humanitário (porque permitiria a valorização das competências individuais e a defesa dos interesses das minorias). Ledo engano.

A ilegal coleta massiva de informações (ingenuamente compartilhadas por bilhões de seres humanos, milhões de empresas e centenas de governos) realizada pela NSA demonstra o quanto a internet foi transformada num agente desumanizador. Apesar do que consta expressamente na Lei Internacional para o governo dos EUA e a NSA neste momento ninguém em lugar algum tem direito à privacidade de suas comunicações virtuais. Ou seja, o que deveria ser um instrumento humanitário segundo Pierre Levy foi transformado rapidamente num instrumento ditatorial.

Embriagados com seu próprio poder tecnológico e militar, os norte-americanos não se deram nem ao trabalho de pedir autorização formal para coletar informações dos usuários da internet fora dos EUA. Depois que Snowden revelou a espionagem massiva com ajuda do Google, Windows e Facebook, a Casa Branca limitou-se a dizer que tinha o direito de fazer o que estava fazendo. A crítica feita por Namatianus a César citada por Virilio não produziu qualquer efeito. O mesmo está ocorrendo neste momento em que os EUA ignora todas as críticas baseadas nas denúncias de Snowden.

Bill Gates afirma na sua obra que “... a estrada da informação será acessível, se usada com discernimento. Mas não será grátis.” . O magnata norte-americano deixou bem claro, portanto, que os fundamentos da criação e da sustentação da estrada da informação seriam a livre concorrência, a desregulamentação das telecomunicações e o lucro das empresas envolvidas em sua construção, expansão e exploração comercial.

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Nas utopias tradicionais, a igualdade real sempre foi o fundamento da harmonia social. No extremo oposto, Bill Gates defende apenas a igualdade virtual. No seu livro ele afirmou peremptoriamente que “Uma das maravilhas da estrada da informação é que uma igualdade virtual é muito mais fácil de se alcançar que uma igualdade no mundo real.” Nem mesmo isto a internet consegue ser no presente momento.

Segundo Snowden, a NSA tem ilegalmente coletado informações de norte-americanos e de não americanos em qualquer lugar do planeta. Portanto, é evidente que fomos todosvirtualmente igualados como sugeriu Bill Gates. Mas esta igualdade não nos transformou em seres humanos dignos dos mesmos direitos. Ao contrário, bilhões de seres humanos foram transformados em objetos de investigação e, portanto, desumanizados pela agência de segurança do império virtual. O cada um de nós (que somos meros usuários desprovidos de conhecimentos técnicos e equipamentos sofisticados) pode fazer para impedir a NSA de coletar nossas informações? Que governo tem capacidade para coletar informações sobre os agentes da NSA como eles mesmos coletam as informações dos nossos agentes de segurança?

Os romanos não tolaravam diferanças. Eles reduziram a Europa a uma cidade como disseNamatianus a César (citado por Paul Virilio). Os norte americanos reduziram-nos todos a personalidades virtuais desprovidas de direitos e submetidas à fiscalização e ao controle da NSA. O império virtual tolerará concorrentes? Se um país tecnológica e economicamente desenvolvido criar uma agência semelhante a NSA para bisbilhotar norte-americanos qual será a reação dos EUA?

Uma conseqüência da liberdade individual e da igualdade real é a efetiva participação na construção da Política. Isto tem sido uma pré-condição em todas as utopias que foram escritas. Portanto, a democracia direta foi algo considerado desejável pelos os autores que se dedicaram ao tema. Em sua obra, Bill Gates defende abertamente a democracia representativa.

“Pessoalmente, não creio que a votação direta seja uma boa maneira de se exercer o governo. Há espaço no governo para que parlamentares – que são apenas intermediários – dêem sua contribuição. A ocupação deles é justamente ter o tempo de compreender todas as nuances das questões complicadas.”

Bill Gates, segundo Snowden, teria criado portas dos fundos no seu programa Windows para permitir que os agentes da NSA penetrem sorrateiramente (e sem ser detectados) nos computadores das pessoas, empresas e governos que usam o produto da Microsoft. O empresário norte-americano não representa ninguém em lugar algum. Mesmo assim ele decidiu dispor das informações de todos os usuários do Windows como se elas fossem dele. No seu livro ele defende a democracia representativa, na prática ele agiu como se fosse um verdadeiro tirano a serviço da criação do império virtual norte-americano.

Em seu livro Pierre Levy disse que, conectado a internet, o cidadão teria condições de interferir diretamente no controle das decisões públicas sem mediadores. Isto segundo ele iria ajudar a descentralizar, democratizar e otimizar os serviços públicos. A história, entretanto, seguiu caminho diverso do previsto pelo otimista filósofo francês. A aquisição e utilização de programas Windows centralizou as informações de seus usuários nas mãos de Bill Gates e permitiu que ele criasse condições tecnológicas para a espionagem massiva realizada ilegalmente pela NSA.

Quando meditou sobre a popularização da computação e da interent, Paul Virilio afirmou que ela teria distanciado o sensível do inteligível. “Uma vez que uma tal profusão de dados só pode ser analisada pela informática, a separação entre o sensível e o inteligível aumenta cada vez mais.”

É fato. A esmagadora maioria das pessoas não conhece absolutamente nada de informática apesar de usar computadores diariamente. Se um especialista como Snowden não tivesse revelado ao mundo que nossas informações são coletadas (com ajuda do Google e do Facebook) e que nossos computadores podem ser e são facilmente infiltrados pela NSA (com o uso de portas dos fundos no Windows), continuariamos sendo vítimas de nossa ingenuidade e ignorância tecnológica. Resumindo: Virílio estava certo. O advento da internet realmente separou o sensível (aquele que armazena informações no seu computador e eventualmente as compartilha na internet) do inteligível (aquele que está em condições de coletar estas informaçoes onde quer que elas estejam para poder utilizá-las sem autorização dos usuários).

Pierre Levy fez uma verdadeira apologia da oralidade reorientada pela era digital. É verdade que a internet retirou de cena os mediadores do processo de comunicação (jornais, revistas, televisão, ou seja, as mídias tradicionais que proporcionavam a comunicação um-todos) e possibilitou a comunicação direta e transversal (todos-todos) democratizando a produção e circulação de conteúdos. Esta porém não era “a verdade toda a verdade”. Parte significatica da verdade nós só ficamos sabendo recentemente. A internet reorientou a oralidade sim como disse Pierre Levy, mas também permitiu ao império virtual norte-americano escutar os segredos de todos os usuários do Windows, Facebook e Google (como se fosse o Grande Irmão do livro de George Orwell). Nossos segredos não existem em face dos EUA, mas os segredos guardados pelos EUA nos seus compuradores de Defesa nunca nos serão revelados. A comunicação todos-todos, portanto, é uma ilusão que permite a instauração de uma indesejada comunicação todos-um de natureza autoritária e ilegal.

No seu livro, Bill Gattes afirmou que:

“Servidores distribuídos pelo mundo aceitarão ofertas, as transformando em transações, controlarão autenticação e garantia e se encarregarão de todos os outros aspectos do mercado, inclusive a transferência de fundos. Isso nos conduzirá a um novo mundo, de um capitalismo com pouca força de atrito e baixo custo administrativo, no qual a informação será abundante e os custos de transação baixos. Será o paraíso dos fregueses.”

A informação é realmente abundante, mas o capitalismo virtual não se transformou no paraíso dos fregueses. Muito pelo contrário, ele foi deliberdamente transformado no inferno dos cidadãos norte-americanos e não americanos, de milhões de empresas e centenas de governos. Ao usar gratuitamente o Facebook e o Google fornecemos informações NSA. Ao comprar um programa Windows, permitimos que a NSA use as portas dos fundos existentes no mesmo para penetrar nos segredos de nossos computadores. A abundância de informação referida por Bill Gates realmente existe, mas apenas para a NSA. O fluxo de informações em sentido contrário (da NSA para cada um de nós que tem informações coletadas e estocadas pela agência de segurança dos EUA) não existe, não é permitido e provavelmente é criminalizado pela legislação do império virtual.

Paul Virilio defendeu a tese de que vivemos sob uma unidade perceptiva, que há uma identidade entre o mundo real e o conceitual. No último capítulo do seu livro, ele foi mais longe. Afirmou que a velocidade proporcionada pelas novas técnicas institui uma única forma de mensurar o tempo.

“Em uma entrevista concedida recentemente, a propósito do lançamento de seu livro Temps et Récit (editions du Seuil), Paul Ricoeur declarava: 'Não somos capazes de produzir um conceito de tempo que seja ao mesmo tempo cosmológico, biológico, histórico e individual.' Fazer tal afirmação é, em meu entender, menosprezar as conquistas das ciências e das técnicas, a importância decisiva do fator VELOCIDADE nas novas concepções do tempo.”

A princípio discordei desta afirmação de Paul Virilio. Ele não teria sido capaz (pelo menos para mim quando li o livro há alguns anos) de demonstrar como a velocidade produzida pela era digital afeta biologicamente o homem a ponto de fazer seu organismo sincronizar-se com o tempo dos deslocamentos instantâneos on line. Naquela oportunidade, me parecia que o aumento do fluxo de transferência de informações correspondia a uma diminuição do ritmo biológico.

Além disso, o próprio ritmo biológico, o tempo subjetivo, dependeria de variáveis que não estariam relacionadas ao dia-eletrônico referido por Paul Virilio. Segundo alguns especialistas, é a temperatura do corpo determina a maneira como o indivíduo percebe o tempo cronológico. Assim, quanto maior a temperatura corporal, maior a sensação de que o tempo se arrasta. Temperaturas menores criam a sensação de que o tempo passa mais depressa. Como os seres humanos não tem computadores regulando suas funções orgânicas ou chips de temperatura detendo o processo natural de desaquecimento que acompanha o envelhecimento, imaginei que seria impossível uma perfeita sincronia entre o tempo biológico, o cronológico e o instaurado pela era digital.

Ao debruçar-me novamente sobre a sofisticada tese viriliana após as revelações de Snowden, ocorreu-me algo diferente. Mas para me fazer entender terei que recorrer a uma citação do livro de Bill Gates. Em certo momento o magnata norte-americano nos adverte que a “RV será, sem dúvida, mais envolvente que os vídeo games, e viciará mais.” Ao lembrar de seus primeiros contatos com computadores quando era criança, o dono da Microsoft desabafou “Eu estava viciado.”  Mais adiante ele admitiu que “Meu pai viciou quando usou um computador para preparar seu imposto de renda.” A frase de Bill Gates que melhor sintetiza a relação entre os seres humanos e os computadores é a seguinte: “Se você lhes der uma chance, é quase certo que será fisgado.”

Paul Virilio afirmou que velocidade tem uma importância decisiva nas novas concepções do tempo. Bill Gates enfatizou o vício como um dos fatores essenciais da experiência virtual. Ora, todos sabemos o vício escraviza e destrói as funções biológicas, oblitera a racionalidade, suspende os freios morais e distorce a noçao de tempo. A velocidade referida por Paul Virilioé, sem dúvida, um agente causador do vício referido por Bill Gates. E foi justamente o viciona velocidade da informática e da internet que nos fez esquecer completamente que poderiamos ser (como de fato fomos) transformados em títeres virtuais nas mãos dos donos do Facebook, Google e Microsoft, passando a fornecer voluntariamente (e por intermédio dos produtos daquelas empresas) nossas informações à NSA.

Pierre Levy afirmou que:

“A partir do século XX, com a ampliação do mundo, a progressiva descoberta de sua diversidade, o crescimento cada vez mais rápido dos conhecimentos científicos e técnicos, o projeto de domínio do saber por um indivíduo ou por um pequeno grupo tornou-se cada vez mais ilusório.”

O domínio de todas as informações do planeta, sejam elas privadas, empresariais ou públicas, sigilosas ou não, não só se tornou possível. Tornou-se uma realidade. Em seu livro Bill Gates afirmou que a “...primeira regra de qualquer tecnologia utilizada nos negócios é que a automação aplicada a uma operação eficiente aumenta a eficiência. A segunda é que a automação aplicada a uma operação ineficiente aumenta a ineficiência.” A eficiência ou ineficiência do império virtual construído pelos norte-americanos é um mistério. Quem fizer previsões do futuro pode acabar cometendo erros tão graves quanto aqueles que foram cometidos por Pierre Levy. No momento, tudo que podemos fazer é ler com mais atenção e benevolência as duras palavras de Paul Virilio:

“De que serve a um homem ganhar o mundo inteiro se ele termina por perder sua alma?”

Não se enganem. Segundo Snowden, nós já perdemos nossas almas virtuais. Fomos todosdesumanizados e transformados em objetos de investigação da NSA. Igualados como nulidades cibernétidas desprovidas de quaisquer direitos ou garantias internacionais, em razão do vicio na velocidade da computação e da vida on line nós mesmos ajudamos a construir este gigante imperial que devora nossas informações. Ignoramos, todavia, o que será feito das nossas informações, com elas ou em virtude delas.

Neste processo os EUA também começou a perder o que restava de sua alma democrática. Dentro daquele país uma corrente de aço começou a se formar contra o autoritarismo da NSA e em defesa do sigilo das comunicações on line. As reações diplomáticas duras de aliados e parceiros históricos dos norte-americanos demonstram que o futuro da NSA é incerto.

E nós? O que devemos fazer agora para romper este escabroso triangulo de vício (nos computadores), velocidade (uniformizadora de todos os tempos em benefício da vigilância virtual onipresente da NSA) e vontade (de agir como se o mundo fosse hoje igual ao mundo que existia antes das revelações de Snowden)? Estas meus caros são as verdadeiras perguntas.

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. Pierre Levy, Paul Virilio e Bill Gates antes e depois de Snowden.: É tempo de repensar a cibercultura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3781, 26 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25809. Acesso em: 21 nov. 2024.

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