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Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade

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Agenda 10/12/2013 às 12:25

CAPÍTULO IV - ESTADO DE NECESSIDADE

01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

O instituto do estado de necessidade remonta à antiguidade. CUNHA GONÇALVES faz um resumo histórico e relata que tanto no Código de Manu , no direito hindu, hebraico, grego, romano, germânico, canônico existiram referências a atos lesivos de direito alheio desculpáveis,  por causa de certa conjuntura. Geralmente eram previstos : o furto famélico, o falso testemunho para salvar o delinquente, o aborto para ocultar a desonra, a destruição de feto para salvar a mãe de parto perigoso. Após a  Lex Aquilia ( por volta do século V  a . c.),  os romanos passaram a discutir se o ato praticado  magna vi cogente ( com grande força coativa) determinava ou não um  damnum injuria datum (dano produzido pela injuria).  Apesar das divergências, a tendência era para se afirmar a irresponsabilidade do agente, principalmente se o bem a ser salvo fosse maior do que o bem alheio sacrificado e, posteriormente, até mesmo quando os direitos em conflito fossem equivalentes. São citados como exemplo :  demolição parcial da casa vizinha para preservar a própria de um incêndio; atirar mercadorias alheias para  salvar as próprias; atravessar propriedade alheia cultivada, por se encontrar a via pública intransitável. ( Cf. Op.cit., p. 515, 516).

No entanto, não havia ,no direito romano nem canônico, uma elaboração verdadeira do instituto. Coube aos jusnaturalistas fixar uma noção geral para o  estado de necessidade, e discutiu-se haver exclusão de culpabilidade ou de injuridicidade.

Atualmente a antiga discussão cessou e  considera-se o ato necessário objetivamente lícito, posição aceita pelos Códigos atuais.

Já consignava o direito romano, assim como fazem os atuais Códigos Civis, a responsabilidade do comodatário pela perda da coisa, quando podia ele salvá-la e preferiu salvar suas próprias coisas. (Cf. Id. Ibid., e artigo 1.253 do C.Civil  brasileiro).

Nos  glosadores e pós -glosadores reinava ainda dissenso. Para  Baldo era lícito destruir o alheio para salvar o próprio; Bartolo distinguia a licitude conforme as circunstâncias;  para Acúrsio era necessária  a demonstração de que era justo o temor de quem praticou o ato necessário; Cujácio sustentava a obrigação de indenizar, invocando a  Lex Rhodia de jactu ( as avarias comuns se repartiam por todos os interessados) e pretendia generalizar essa responsabilidade proporcional a todos os casos análogos, o que  não era admissível, pois a  Lex Rhodia atendia às singulares condições em que se encontravam pessoas e coisas a bordo de um navio, sujeitas todas elas ao mesmo risco, o que não se dá no caso de incêndio de prédios contíguos, que estão em maior risco do que os afastados, faltando comunhão de interesse e de perigo, fundamentos indispensáveis da responsabilidade proporcional. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 516, 517 . Cf. D’AMELIO   et allis. Op. Cit., p. 241).

Observa-se, com o exposto, não poder ser tratado o ato de necessidade dentro de conceito absoluto, devendo haver relatividade no seu ordenamento legal quanto à ofensa a terceiros, pois que a ideia dominante na elaboração do instituto é a de que todo dano deve ser indenizado, independentemente do ato caracterizar-se como culposo ou não.

“Intervindo com culpa ou dolo, tem-se o ato ilícito, e o agente culpado  ou doloso responde pelo prejuízo causado. Não havendo culpa ou dolo, o agente é, ainda assim, obrigado a indenizar, salvo quando a outrem se deve atribuir a culpa do ato danoso. Se  o culpado é o próprio dono da coisa deteriorada ou destruída, afasta-se, então, a ideia de indenização; ele sofre as consequências de sua culpa ( art. 1.519- atual 929). Se o culpado é terceiro, o agente indeniza a quem for prejudicado, mas vai haver de quem, por negligência ou má-fé, criou a situação, a quantia, que foi constrangido a pagar (art. 1.520 – atual 930).”( BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 423, 424).  Nosso Código de 1917 tinha por objeto lesão à coisa, não se referindo à lesão da pessoa.

02 – CONCEITO

Ocorre, por vezes, um conflito entre o direito/interesse de um indivíduo com o de outro. Dada a impossibilidade de coexistência, um deles deve sucumbir, com o desaparecimento ou cessação transitória que, por princípio de equidade será o menos valioso, não necessariamente do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista  ético e humano . Autoriza-se a violação de direito alheio, com o fim único de evitar um mal maior.

No direito francês, segundo a definição adotada por SAVATIER, é a situação daquele a quem parece claramente que o único meio de evitar um mal maior ou igual é de causar um mal menor ou igual. (Cf. Op. Cit., p. 125).

PLANIOL e RIPERT o conceituam como prejuízo resultante de um ato indispensável para evitar um dano que é impossível evitar de outro modo, e sem que, por outra parte, concorram as condições da legítima defesa. (Cf. Op. Cit., p. 779).

No direito italiano, o Código Civil declara que há estado de necessidade quando quem realizou o fato danoso executou-o constrangido pela necessidade de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, e o perigo não foi por ele voluntariamente causado nem de outro modo evitável, sendo devida ao prejudicado uma indenização, apreciada pelo juiz (art. 2045).

Não se refere à  proporcionalidade (como fez o Código Penal - sempre que o fato seja proporcional ao perigo), mas essa, segundo a doutrina, está implícita, pois, onde cessa a proporcionalidade, há excesso, ou seja, culpa. Há, porém, diferença fundamental entre a  disciplina penal e a da lei civil, quanto à responsabilidade. Na primeira, há irresponsabilidade; em sede civil, é prescrito que o prejudicado deve obter indenização à justa apreciação do juiz - trata-se de justificante em sede penal e de atenuante em sede civil. (Cf. CANDIAN.  Op. Cit., p. 139).

DE CUPIS considera sua natureza  excludente de antijuridicidade ( não atenuante, em sede civil) :

O estado de necessidade, e o dano que dele deriva, permanece não antijurídico. Malgrado a sua não antijuridicidade, o dano de que se trata produz igualmente uma reação, caracterizando-se, pela atribuição, ao juiz, de um especial poder de justa apreciação. (Cf. Op. Cit., p. 16).

CUNHA GONÇALVES prefere o conceito formulado por CHIRONI, por salientar a causa determinante do conflito, o que é essencial:

“É o  conflito entre duas situações jurídicas, determinado por uma força estranha, que não permite a pacífica coexistência delas.”( Op. Cit., p. 518).

Retornando ao direito francês, DELIYANNIS não o vê como excludente de ilicitude. No estado de necessidade, o agente tem uma  excusa, mas esta não chega a suprimir o caráter  culpável de seu estado de ânimo; ela não chega  a suprimir o caráter objetivamente ilícito do ato realizado, isto é, a lesão de um bem garantido  permanece sempre ilícita. (Cf. Op. Cit., p. 194)

A divergência apontada não foi ausente no direito brasileiro.

Para aqueles que assentaram o dever de reparação na culpa, há incoerência do legislador brasileiro, ao declarar a não ilicitude do ato (art. 160, II), e, paralelamente, estabelecer indenização ao dono da coisa não culpado do perigo (art. 1.519). A este argumento contrapõe-se o princípio preponderante no  direito moderno de que todo dano deve ser indenizado, tanto assim é que leis mais recentes estabelecem a obrigação de indenizar ao incapaz, conforme veremos em outro local. Porém, não se cuida aqui de reparação por ato culposo; ela tem como fundamento o ato-fato do agente. (Atuais arts. 188,II e 729).

A discussão prolifera. CHIRONI o vê como ato ilícito, após estudo de várias opiniões doutrinárias; ÚNGER  distingue-o como ato fora do direito, acolhendo o adágio  Necessitas non habet legem ( A necessidade não tem lei). Contra argumenta AGUIAR DIAS: O critério de CHIRONI não corresponde à realidade, pois ao agente do ato necessário falta a vontade, elemento integrador da culpa; sem razão ÜNGER, porque o direito nunca deixa de existir, mas impera sempre. Anota que a doutrina prestigiada pela maioria é a que considera o ato de necessidade  ato lícito. (Cf. Op. Cit., 1983, v. II, p. 749).

A doutrina argentina tem-no considerado ato perfeitamente lícito, sempre que as condições indispensáveis para sua caracterização estejam reunidas. Se essas condições faltam, haverá o ato  contra jus. A razão está em que, ao atuar por necessidade, o agente está longe de querer as consequências prejudiciais de sua atitude e não se encontra em condições de evitá-las ou suprimi-las, pondo maior diligência ou cuidado. (Cf. COLOMBO, Leonardo A. Culpa aquiliana-cuasidelitos.  2ª. ed.,  Buenos Aires: Tipografia Ed. argentina, 1947, p. 2110).

Em Nosso direito civil, o Estado de necessidade é o praticado, a fim de remover perigo iminente a bens e pessoas, destruindo-se ou deteriorando coisa alheia, desde que as circunstâncias o tornem absolutamente necessário e não exceda o agente os limites do indispensável para a remoção do perigo. Não tendo o perigo originado por culpa do dono da coisa, a ele cabe indenização. Se for terceiro culpado da situação de perigo, contra ele o agente, autor do dano, terá direito de ação regressiva da importância que tiver ressarcido ao dono da coisa.

O Código Penal traça as características do estado de necessidade (art. 24):

“Quem  pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

§ 1º. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

§ 2º. Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.”

03 - NATUREZA JURÍDICA

Seria o ato em estado de necessidade exercício de direito subjetivo? Divergindo de VON THUR, PONTES afirma, assim como ocorre na legítima defesa, não encerrar o ato o exercício de direito subjetivo, porque ele não entra no mundo jurídico como ato ilícito e, se existe o dever de reparação, este é consequência do ato-fato jurídico.(Op. Cit., p. 303) .

Ocorre, no caso, colisão de interesses para a qual o legislador deu a solução ao considerar o ato como ato-fato. A indenização, repetimos, é dever do agente ( o que pratica o ato necessário) e, havendo culpa de terceiro contra esse o agente tem ação regressiva, como também a terá contra o terceiro beneficiado com o ato de necessidade (art. 930, § único). A ação contra o beneficiado a lei não determina, aplicando-se o artigo 7º. da Lei de Introdução ao Código Civil ( recurso à analogia).

O eminente penalista NELSON HUNGRIA, examinando a natureza jurídica do instituto, assenta ser o mesmo faculdade e não direito subjetivo. Ao configurar-se o conflito de interesses ou bens, merecedores de proteção jurídica, concede a lei a  faculdade da ação violenta para salvamento deles. Faculdade e não direito, porquanto a este deve corresponder uma obrigação ( Jus et obligatio sunt correlata) e, no caso de estado de necessidade, nenhum dos titulares dos bens ou interesses colidentes é obrigado a suportar o sacrifício do seu. A lei assume atitude de neutralidade (Cf. Op. Cit., 1978, v I, t II, p. 272). Faculdade é a possibilidade de poder fazer ou exigir; exprime o próprio exercício do direito subjetivo da pessoa, exteriorizado pela  facultas agendi.

04 - BENS TUTELADOS

O perigo pode ameaçar tanto um bem econômico, como não econômico : vida, liberdade, honra, bens corpóreos, etc.,  enfim, tudo o que orbita na esfera jurídica da pessoa. Poderão ser lesados uma pessoa ou coisa diversa daquela de onde emana o perigo (art. 188, II).

Pode ocorrer não só em relações extra-contratuais, como também nas contratuais. O exemplo mais citado, na última hipótese, é o do comodatário que deixa de socorrer a coisa em comodato, preferindo salvar a  sua própria (art. 583, C.Civil brasileiro). A propósito da situação do comodatário, diz CUNHA GONÇALVES que o artigo referente (1516 C. Civil português anterior), por analogia, pode ser aplicado aos contratos de empreitada, mandato, depósito, prestação de serviços. (Cf. Op. Cit., p. 527).

Demonstrando que a tutela aplica-se às relações contratuais, o Código Civil italiano reza em seu art. 1.147:

“Contrato concluído em estado de perigo.

O contrato pelo qual uma parte assumiu obrigações, com exigências iníquas, pela necessidade conhecida pela outra parte, de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, pode ser rescindido, em juízo, a pedido da parte que se obrigou.

O juiz, ao pronunciar a rescisão, pode, segundo as circunstâncias, atribuir uma eqüitativa compensação à outra parte pelo trabalho prestado”.

Adota o Estatuto italiano a teoria da rescindibilidade do negócio jurídico, entre as teorias citadas pela doutrina : a da nulidade, a da anulabilidade, a da validade da declaração (esta última seguida pela maioria da doutrina francesa, arrimada no disposto no art. 111, do Código Civil, e por WASHINGTON DE BARROS e CARVALHO DE MENDONÇA). ( Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1.571).

O Código Civil brasileiro assentou o estado de perigo (necessidade) como defeito passível de anulação do negócio jurídico (art. 171,II), juntamente com os demais vícios de consentimento, em que pese não consistir a vontade declarada rigorosamente viciada, restringindo-o ao salvamento de pessoas

“Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”.

Ainda sobre os bens  alcançados, CUNHA GONÇALVES deduz, com suporte no art. 705 do Código Civil português anterior (atual 339), que o estado de necessidade podia abranger a inexecução do contrato, porquanto  só se libera o contraente remisso, quando este não contribuiu de nenhum modo para o caso fortuito ou força maior. No estado de necessidade, não é o  casus (evento) que impede executar o contrato, mas sim  a escolha do contraente remisso, que se funda no desejo de evitar prejuízo maior para si do que o sofrido pela outra parte por não ter sido cumprido o contrato nessa ocasião. De qualquer sorte, o contraente remisso, por se encontrar em estado de necessidade, não se libera da obrigação de indenizar a outra parte; ao contrário, haveria subversão dos contratos com a estimulação da má-fé. (Cf. Op. Cit., p. 527).

05 - DISTINÇÃO ENTRE ESTADO DE NECESSIDADE E  DEMAIS ATOS

05.1 -  ESTADO DE NECESSIDADE - CASO FORTUITO - FORÇA MAIOR

Definindo o estado de necessidade como sendo a situação em que o agente não pode, normalmente, proceder em relação à pessoa ou coisa, de forma diferente da procedida, os jurisconsultos fundiam em único conceito o estado de necessidade, o caso fortuito e a força maior, a diferença de que o caso fortuito e força maior atuam num só fato, excludente da vontade; no estado de necessidade, há fato próprio do agente, e declaravam que a normalidade de proceder  harmonicamente com as circunstâncias retirava o caráter ilícito ao fato danoso. (Cf. ALVES, Guilherme Moreira. Instituições do direito civil português. Coimbra: Imprensa da Universidade., 1907, v.  l, p. 617, 618).

Para GUILHERME ALVES MOREIRA, a fusão daquelas figuras em conceito único não é aceitável, e a distinção  entre caso fortuito e força maior, estabelecida no modo de atuação do mesmo fenômeno, é importante. Na força maior, o dano é causado materialmente pelo agente, mas esse é apenas um instrumento, podendo também ser paciente. A consequência é que, não se lhe pode imputar responsabilidade, mesmo ao fundamento da teoria objetiva. No estado de necessidade, a colisão em que o indivíduo fica, embora não suprima a liberdade de agir, só será lícito o fato, se a lei reconhecer o direito de causar um mal para evitar outro; mesmo assim deve haver reparação do dano causado, nos limites estabelecidos em lei.

Exemplifica não poder ter-se como lícito o fato de uma pessoa matar outra, para salvar-se, quando perseguida por uma fera. Igualmente, se o prédio está prestes a inundar-se, o indivíduo desvia a água para outro, causando a esse dano igual ou maior. (Cf. Op. Cit. P. 617).

Com razão CUNHA GONÇALVES, na mesma linha precedente, e com apoio no Código Civil português anterior, ao não concordar com a equiparação entre o estado de necessidade ao caso fortuito e à força maior feita por alguns, ao argumento de não existir objetivamente diferença alguma entre eles, dizendo que são expressões idênticas de um mesmo conceito. Há distinção, pois o caso fortuito  ou de força maior é apenas a causa determinante do estado de necessidade e este, por sua vez, produz o denominado (erroneamente, segundo o autor)  aspecto subjetivo da força maior, ou seja, “A reação do agente contra o perigo iminente, a relação entre a força fatal e a sua vontade, o que implica, ou não, a sua responsabilidade”. Exemplifica: abalroamento acidental, causado por tempestade, configura situação de caso fortuito ou força maior.

Mas, durante a tempestade, esse abalroamento pode ter sido voluntário, quando se busca evitar à embarcação abalroada uma perda maior. Embora exista nas duas situações uma força invencível, atuando em alguém, nota-se a distinção : no caso de abalroamento acidental, a força opera diretamente no lesado, contra sua vontade e esforços; no caso de abalroamento voluntário (estado de necessidade), o dano é cometido, posto que sob pressão de uma força, pelo agente, conscientemente, que se viu com a opção ou de deixar-se ser vítima da força maior ou caso fortuito ou causar o mal para salvar-se. A força maior (vis maior) atua como fator único e absoluto, enquanto o estado de necessidade tem como suporte o fato do agente, voluntário e consciente.                                                      

Enfim, para não ocorrer responsabilidade de certo ato, é necessário que a vontade se paralise ou se suspenda; mas, sendo o ato resultado de livre escolha entre o dano alheio e o próprio, não se pode dizer que tal fato foi involuntário, mesmo em circunstâncias tão críticas : coacta voluntas, voluntas est “. ( A vontade coagida não deixa de ser vontade). (Cf. CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil português. S. Paulo: Ed. Max Limonad, 1955, 1a. ed. bras., v.l. t. l, p. 521,522).

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Embora doutrine o autor, invocando o direito marítimo, que a necessidade não torna lícito o ato ilícito, sua exposição permite-nos perceber a distinção entre as figuras ora abordadas.

Autores há que, embora reconheçam seja possível estabelecer diferenças entre  estado de perigo ou de necessidade e força maior, do ponto de vista jurídico, acham que a situação é a mesma e os efeitos não diferem em ambos os casos. (Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1567). Opinião, acertadamente, não acatada por CUNHA GONÇALVES para quem  o caso fortuito e a força maior são somente a causa determinante do estado de necessidade e não encerram expressões idênticas de um mesmo conceito. (Cf. Op. Cit., p. 521).

05.2 - ESTADO DE NECESSIDADE E JUSTIÇA DE MÃO-PRÓPRIA

A justiça de mão-própria supõe  contrariedade a direito, ato que entra no mundo jurídico, como ofensivo do direito objetivo, podendo o titular do direito, da pretensão, da ação, da exceção usar a autotutela. No estado de necessidade,  não há contrariedade a direito; é também elemento fático que serve a conteúdo de norma preexcludente. A justiça de mão-própria é ato praticado contrapondo-se a fato jurídico que já teve ou tem eficácia (realizado). PONTES leciona ser grande erro falar-se em justiça privada  agressiva (  que seria a justiça de mão-própria ou a justiça privada no sentido exato) e justiça privada  defensiva ( abrangedora da legítima defesa e do estado de necessidade). Há, em cada deles, elemento um do outro, mas  “...O senso largo, com a dicotomia, conservaria referência à tutela jurídica, à justiça, que se encontra num e não se pode encontrar nos outros. O elemento  defesa,  com sentido lato, é comum; porém então teríamos de dizer : a defesa compreende a justiça de mão-própria, a legítima defesa e o estado de necessidade, o que não teria qualquer valor científico”. ( Op. Cit., p. 322).

06 - ESTADO  DE NECESSIDADE PUTATIVO –

Não ocorrendo os pressupostos para  configuração do estado de necessidade, os quais veremos  adiante, mesmo que o agente tenha suposto tê-los configurados - estado de necessidade putativo - cabe indenização por negligência (culpa) ou com base no artigo 929 (inocorrência de culpa do dono da coisa).

Exemplificando, ocorrerá estado de necessidade putativo em caso de salvamento de terceiro, se este foi o culpado pelo perigo e o agente desconhecia essa circunstância. Não se trata de exclusão de ilicitude. De acordo com os pressupostos, só haverá  excludente de ilicitude se o dono da coisa perigosa não foi o culpado; Se, tendo-o sido, mas o agente ignorava tal circunstância, haverá putatividade, com a consequente obrigação de reparação.

No campo penal, trata-se de causa elidente de culpa, lato sensu; se o erro provém de culpa, stricto sensu, responderá o agente por delito culposo. (art. 20, 7 1º.).

07 - COISA PERIGOSA

Em nossa Lei Civil, não se consignou diferença entre o estado de necessidade por ser a própria coisa perigosa  ou se ela não encerra perigo, por si mesma e, segundo PONTES, não há censura para a indistinção, já que “Não há algo especial no suporte fático da pré-exclusão”. A particularidade reside no fato de que, sendo perigosa a coisa, o lesado é o dono dela, e tem de ser diferente a responsabilidade sem contrariedade a direito ( art. 1519, atual 929).

Ressalte-se que o ato em estado de necessidade é permitido e a ação contra esse ato seria antijurídica, porque a atividade está ligada ao direito do agente, razão pela qual o dono da coisa não pode oferecer resistência nem supor legítima defesa. Se se opõe, submete-se ao art. 159 C.C. (ilícito- atual 186). No art. 160, II  (atual 188,II) entra  “ A deterioração ou destruição da coisa que pertence ao agente, se sobre ela recaem direitos reais de terceiros, posse mediata ou imediata, ou constrição (arresto, penhora, etc). ( Cf.. Op. Cit., p. 299)

A defesa contra coisa perigosa, como animais, pedras que rolam, vegetal (plantação venenosa), seria exercício de direito subjetivo, indaga-se.. Essa defesa seria contrária a direito se produzisse dano. Para que tal defesa encerrasse exercício de direito subjetivo, seria necessário que a agressão do animal, “Ou alcance pela coisa perigosa, entrasse no mundo jurídico como fato jurídico de que decorresse a eficácia jurídica, consistente na irradiação do direito subjetivo a favor do ameaçado. Ora, imaginá-lo seria construir sem alicerces”.  Se o animal foi incitado por Tito, Se Tito fez rolar a pedra ou semeou a planta e, posteriormente, teve de defender-se, não há legítima defesa (não existe legítima defesa contra si mesmo); há estado de necessidade e Tito tem o dever de reparar o dano que sua atividade produza. Seu ato seria em estado de necessidade ou ato ilícito? . Para PONTES, o dever de reparação funda-se no art. 1519 (estado de necessidade – atual 929). (Op. Cit.  p. 301)

É excepcionado o estado de necessidade quando o animal é usado como ARMA, caso que recai na hipótese da legítima defesa. Desse modo, ao agente cabe o dever de indenizar, pouco importando se salva coisa sua ou a si ou a terceiro ou coisa de terceiro, pois foi ele quem praticou o fato.

Contrapõe-se à doutrina alemã, defendida por Mezger, que falava em legítima defesa ao ataque de um animal, ENRICO ALTAVILLA ao acentuar:

“....Ma basterà ricordare che il MEZGER parla di legittima difesa anche per un attacco di un animale (12); per convincersi che tale opinione deriva dalla inesatta concezione dello stato di necessità”. ( Op. Cit., p. 823).

08 - PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE NECESSIDADE

Da noção exposta podemos extrair os seguintes requisitos:

1. Existência de um perigo grave, atual ou iminente e inevitável, ameaçando um bem jurídico ou lesão a pessoa;

2. Necessidade de salvar a si ou a outrem : pessoa, seus bens jurídicos ou de outrem:

3. Inocência do lesado ou improvocação;

4. Ato de vontade, praticado dentro dos limites do indispensável para remoção do perigo.

A - Existência de perigo grave, atual ou iminente e inevitável, ameaçando um bem jurídico ou a pessoa, sem contribuição culposa do agente

O perigo, conforme anota CUNHA GONÇALVES,   “É uma condição de fato em que há alguma coisa de sinistro a temer; Pode ser determinado, ou pela atividade do homem, ou pelo caso fortuito, ou pela natureza”. (Op. Cit., p.518). Sua gravidade deve ser entendida não como impossibilidade de reparação, mas no sentido da importância do mal receado.

Deve consistir em algo iminente,  quer dizer, presente (prestes a realizar-se ou que já se realiza), independentemente de ser previsto ou imprevisto. A  avaliação desses conceitos deve ser relativa, conforme a ideia que o agente deles formou, no momento do evento. Em qualquer caso, salienta o autor referenciado, “É forçoso que tenha ficado em risco a vida ou a integridade de uma pessoa, ou qualquer outro bem de alta importância, que ao agente era imprescindível”. (Op. Cit., p. 519)

Se o estado de necessidade é posterior à destruição ou deterioração, não se submete ao art. 160, II (188, II). A atualidade quer significar que deve o perigo estar presente ou na iminência de realizar-se. A inevitabilidade significa impossibilidade de impedir aquele perigo do qual não se podia escapar, por outro modo ou segundo a opinião razoável do ameaçado. Em síntese : aquele do qual não se pode fugir a não ser com a violação do direito alheio;  mesmo havendo outro meio possível, na grave conjuntura, a violação apresentou-se ao agente como única solução, pois, em face do risco imediato , reclamando decisão urgente,  não é de se exigir do agente a escolha rigorosa do meio menos lesivo. (Id., ibid, p. 519).

Se o perigo recai sobre a pessoa ou interesse a ela pertinente, a possibilidade de fuga exclui o estado de necessidade (assim pensa  HUNGRIA, Op. Cit., 1978, p. 276), diferentemente da legítima defesa, em que o ato de fugir pode qualificar-se, embora nem sempre, como conduta infamante.

A inevitabilidade deve ser entendida  em sentido relativo e reconhecida do ponto de vista objetivo.

A ignorância ou não do estado de necessidade pelo dono da coisa destruída ou danificada não tem relevância  para aquele que se encontra em estado de necessidade o invoque. Diferente será a situação, se o dono da coisa teve culpa por não evitar o estado de necessidade (podendo-o evitar); a ele descabe o direito de indenização e, por outro lado, responderá por perdas e danos caso ocorridas ao  agente ou a terceiros (art. 186) ou nos termos dos arts. 936 e 937.

“Art. 936 - O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.

 “Art. 937 - O dono do edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifestada.”

B - Necessidade de salvar a si ou a outrem ou bens

Não tem relevância a natureza  do bem jurídico ameaçado, seja a própria vida do agente ou de outrem ou outro bem de qualquer natureza. Cuidando-se de bem econômico, “Ainda, nesse caso, o direito permite que se viole o direito de propriedade de outrem, para salvar um bem econômico, se for absolutamente necessário, e se o mal, que se pretende evitar, for maior do que o praticado para removê-lo. Exemplo:  destrói-se um prédio para evitar que o incêndio se propague à rua inteira” (BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 422).

Outrem significa tanto a pessoa física quanto a jurídica. Em tese, não há sentido algum em distinguir os entes físicos e morais.

Há uma alternativa entre sofrer ou causar o mal e, para caracterizar o ato de necessidade, não é necessário que essa alternativa corresponda a uma realidade objetiva, sendo suficiente que se verifique no ânimo do agente. Portanto, quem tem o dever de suportar o perigo, dever decorrente de imposição legal, ou quem assume obrigação de se sujeitar ao risco, não pode alegar a excludente. Esses não podem causar dano a terceiro, para se defenderem do perigo, cujo dever/obrigação assumiram. Exemplo: enfermeira que tem sob custódia um demente, se, para livrar-se da violência deste, comete um dano a terceiro, obriga-se à indenização com suporte na responsabilidade por ato ilícito. Há quem entende que esse dever só pode ser imposto por lei, não alcançando as relações contratuais, como no exemplo dado, porque a expressão é  dever legal, imposto por lei, e não  dever jurídico, (conforme reza o Código Penal italiano). (Cf. HUNGRIA. Op. Cit.,1978, p. 279-280). A posição de HUNGRIA é sedimentada no § 1º. do art. 24, do Código Penal, que emprega a expressão dever legal.

Analisando a situação de terceiro salvar alguém com o sacrifício de outrem, CUNHA GONÇALVES anota a discussão que reinou, em doutrina, já que o Código Civil português anterior não fazia qualquer menção ao questionado. Para o direito penal alemão, a intervenção do terceiro só seria defensável a favor de pessoas de sua família, dentro dos graus de sucessão legítima. Contra argumenta o autor que é de rejeitar-se a limitação baseada no parentesco, porquanto o amor, dever, amizade são sentimentos não menos imperiosos. Quanto a  salvar alguém com o sacrifício de outrem, acresce que ninguém se decide a lesar outrem para salvar quem lhe é inteiramente indiferente, porém, em certos casos, podem haver contingências em que se impõe a escolha entre eles, como salvar uma criança, sacrificando um velho. (Cf. Op. Cit., p. 520).

C - Inocência do lesado ou improvocação

Segundo a doutrina clássica, aqui reside efetivamente a excludente. Somente nesse caso ela ocorre, significando  que o lesado não tenha provocado ou facilitado seu dano, seja suscitando o perigo, não promovendo o ato lesivo, não colaborando direta ou indiretamente na sua ocorrência. Não pode haver sua interferência.

Alguns autores brasileiros costumam dizer que, em nosso direito penal, o dolo do agente exclui o estado de necessidade, mas só ele e não a culpa; nesta subsiste o ato necessário, seja por imprudência, imperícia ou negligência, e não existirá crime. MAGALHÃES NORONHA é contrário à assertiva de que a culpa do perigo não exclui o ato necessário. A redação do art. 24 do C. Penal “não provocou por sua vontade” não é indicativa do dolo, pois na culpa (sentido estrito) também existe vontade - “vontade na ação causal e, por exceção, até no próprio resultado. A nós nos parece que também o perigo culposo impede ou obsta o estado necessário”. ( Op. Cit., 1990, V. I, p. 183, 184  e ed. 2009, p. 188).

No campo civil, qualquer que seja a culpa excluirá o estado de necessidade, mas a jurisprudência vem atenuando o rigor da total inocência da vítima. ( Conferir concorrência de causas no estado de necessidade).

Havendo perigo recíproco, causado por dois animais cujos proprietários os deixam envolver-se em briga, não  se configura a excludente. Nessa situação, se um dos donos for ferido, responderá o outro por ilicitude e, por ser a vítima também culpada, a responsabilidade atenua-se.

D - Ato de vontade  praticado dentro dos limites do indispensável para a remoção do perigo

Por ato de vontade compreende-se que o agente deve escolher a opção de lesar terceiro. Quanto aos limites, havendo excesso na prática do ato, isto é, se o agente empregou meios além do necessário, o ato deixa de ser jurídico, passando o agente a responder pelos prejuízos causados, mas aí na incidência do art. 186 (culpa) e não responsabilidade sem culpa (pelo ato-fato).

Quanto à desproporcionalidade entre o dano evitado (ou provável) e o dano causado, o Código Civil a ela não se refere e os autores clássicos tem-na adotado. O dano que se pretende evitar há de ser maior em relação ao dano imposto à esfera jurídica do lesado.  Assim, a vida é bem jurídico desproporcional comparativamente a qualquer outro bem; a integridade física, de regra, é superior a bem econômico. Lembra PONTES que “A apreciação dos valores entre lesões corporais e danos materiais tem de partir do princípio de que são elas desproporcionais,  exceto se seria sem grande importância, necessariamente, a lesão corporal e alto o valor da coisa. O princípio da desproporcionalidade atenua-se quando o perigo está na coisa mesma, porque então há a responsabilidade do dono dela (animal, art. 1527; edifício em construção, art. 1528; coisas que caem ou são lançadas, art. 1529) “. (Cf. Op. Cit. p. 297) – Atuais arts. correspondents: 936, 937, 938.

Dentro desse critério, não posso desviar as águas, que vão inundar minha casa, para a casa do vizinho, onde elas causarão dano maior ou igual ao que causaria à minha. Expressivo exemplo de conflito entre direitos idênticos, proporcionais, portanto, é-nos trazido por AGUIAR DIAS, extraído dos tribunais franceses ; “... No conflito entre o direito à vida do agente e o direito idêntico de seu semelhante, aquele não pode sacrificar impunemente o segundo. Assim, os reféns tomados pelos tribunais inimigos e colocados na penosa contingência de indicar um ou mais companheiros para o fuzilamento não podem isentar-se da obrigação de reparação perante a família das vítimas, invocando o estado de necessidade”. (Op. Cit., 1983, v. II, p. 752).

A nossa Lei Civil não menciona o princípio da desproporcionalidade  nesses casos e o Código Penal atual aboliu a rigorosa condição de preponderância do interesse salvado em cotejo com o interesse sacrificado. Sua exposição de motivos  diz : “...É igualmente abolido o critério anti-humano com que o direito atual lhe traça os limites. Não se exige que o direito sacrificado seja inferior ao direito posto   a salvo, nem tampouco se reclama a  falta absoluta de outro meio menos prejudicial. O critério adotado é outro: identifica-se o estado de necessidade sempre que, nas circunstâncias em que a ação foi praticada, não era razoavelmente exigível o sacrifício do direito ameaçado. O estado de necessidade não é um conceito absoluto : deve ser reconhecido desde que ao indivíduo era extraordinariamente difícil um procedimento diverso do que teve”.

Preferimos endossar a opinião de BEVILLÁQUA; apesar de a Lei Civil não fazer qualquer alusão ao princípio, é intuitivo e justo que não se pratique mal maior para evitar um menor ou igual, ressaltando que a avaliação de ambos deve seguir um critério rígido.

A respeito da desproporcionalidade, leciona SAVATIER que a comparação entre os dois danos deve ser mais rigorosa, quando o agente causa um mal para evitar outro a si ou a terceiros do que quando se prejudica para evitar um mal a outrem.( Cf. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: LGDJ, 1939, t. I, p. 125, 126).

09 - ESTADO DE PERIGO SIMPLES, QUALIFICADO E ESTADO DE PERIGO PUTATIVO

Em tese defendida em 1977 ( Estado de Perigo ou de Necessidade), JOSÉ FERREIRA DE ANDRADE assentou as seguintes distinções sobre as figuras acima;

Ocorre estado de perigo simples quando a condição de salvar a si ou a outrem impõe a obrigação, na defesa dos direitos da personalidade;

Há o estado de perigo  qualificado quando a condição de salvar a si ou a outrem não compreende a faculdade de abuso, que encontra a sua expressão prioritária no aproveitamento da necessidade da outra parte. Nesse caso,  é susceptível de aplicar-se a sanção prevista no art. 169, II, do Projeto (art. 171,II – anulação do ato jurídico)). Tem-se como exemplo o doente que, na fase aguda da moléstia, concorda com os altos honorários exigidos pelo cirurgião.

“O estado de perigo  putativo ocorre pela obrigação exageradamente assumida pelo impulso gerado pela necessidade aparente. É o caso do cirurgião que, procurado pelo pai desesperado pelas dores do filho, supostamente condenado à morte, por ser portador de um tumor na cabeça, obriga-se a pagar alta soma, quando a doença comprovadamente deveria ter sido tratada numa clínica de olhos”. (Apud CHAVES, Antônio. Op. Cit., V I, t. II, p. 1567).

10 - SUJEITOS DA RELAÇÃO JURÍDICA

A relação jurídica estabelece-se entre o agente que praticou o ato necessário e o lesado. Se o  o perigo vem de animal, há responsabilidade do dono, como quando provém de outra coisa qualquer. Responsável é o dono.

 Várias situações oferecem dificuldades, precisamente a saber se houve configuração do ilícito e é nos casos concretos, da lide jurídica, que se foi construindo a teoria das excludentes de ilicitude civil.

O ato de necessidade pode ser realizado em proveito do próprio agente ou de terceiro e, neste último caso, a opinião geral é no sentido de não se lhe exigir  consentimento, nem mesmo sendo preciso sua ratificação do ato (que produz  todos os efeitos do mandato), tal como sucede na gestão de negócios (art. 1343 – atual 873), porque o estado necessário consiste em uma faculdade  de salvar pessoa ou seus bens jurídicos. Nesse caso, o dano deveria ser indenizado pela pessoa que dele se beneficiou e, se for mais de uma, haverá responsabilidade solidária. Ocorre, por determinação do Código Civil, a relação estabelecer-se diretamente entre o agente e o lesado, ficando aquele com ação regressiva contra esse último do que vier a indenizar. Não podendo o prejudicado haver os prejuízos do agente, a responsabilidade solidária do beneficiado há de prevalecer. Nada impede seja acionado diretamente o beneficiado ou culpado.

O ABSOLUTAMENTE INCAPAZ não se exclui da relação que se estabelece; pode praticar ato-fato. A incapacidade não o isenta ou elide o dever de reparação por prejuízos causados (art. 928); responde pelo ato praticado em estado de necessidade. Também responderá como terceiro salvo do perigo, atendendo ao fundamento específico dessa responsabilidade, que não é, de forma alguma, o ato ilícito.

AGUIAR DIAS, expondo as várias opiniões e evolução doutrinária na consideração da responsabilidade civil do incapaz, descreve que, no princípio, não havia esta responsabilidade e a doutrina assentava-se no pressuposto da ausência de discernimento daquele. Num segundo momento, reconheceu-se aquela responsabilidade, principalmente pela ajuda da jurisprudência, quando a ausência de discernimento provinha de hábitos viciosos ou de culpa inicial a cargo do agente. Posteriormente, passou-se a responsabilizar a pessoa encarregada da guarda do incapaz e, por fim, tomou corpo na doutrina e jurisprudência a ideia de reconhecer-se a responsabilidade do próprio incapaz. O notável jurista discordava da posição adotada pelo nosso Código Civil  anterior:

“De forma que, se for possível a prova de que não houve negligência relativamente a esse dever, ficará a vítima, ainda que lesada por amental de fortuna, privada da reparação civil, solução que nos parece injusta e de todo contrária aos princípios que temos como norteadores da responsabilidade civil”. (Op. Cit.,1983, v II, p. 398).

A evolução por que têm passado doutrina, jurisprudência e leis mostra-nos a justa realidade  em considerar que, entre os dois patrimônios ( agente do dano e do lesado) não deverá sofrer as consequências danosas o daquele que não acarretou o ilícito, apenando-se o incapaz, distanciando-se em muito da arcaica orientação romana, para a qual o ato deste equiparava-se ao caso fortuito, completamente isento de reparação.

Apesar desta tendência, algumas legislações  penalizam a pessoa, em cuja guarda se encontra o incapaz, conforme podemos constatar. Códigos atuais estendem a responsabilização ao próprio incapaz:

-  O Código Civil do Peru ( Dec. Leg. N. 295, de 24 de julho de 1984) admite a responsabilidade subsidiária do incapaz:

“Art. 1976 - No hay responsabilidad por el daño causado por persona incapaz que haya actuado sin discernimiento, en cuyo caso responde su representante legal”.

“Art. 1977 - Si la víctima no ha podido obtener reparación en el supuesto anterior, puede el juez, en vista de la situación económica de las partes, considerar una indenización equitativa a cargo del actor directo”.

- O Código  Suíço  das Obrigações( Livro Cinco), capítulo II, art. 54, permite ao juiz condenar à reparação do ilícito o incapaz:

“1. Si l ‘equité l’exige, le juge peut condanner une personne même incapable de discernement à la réparation totale ou partielle du  domage qu’elle a causé”.

- O do Código Civil italiano trouxe   inovação substancial na segunda parte do artigo 2047:

“Art. 2047 - Em caso de dano ocasionado por pessoa incapaz de entender ou de querer, o ressarcimento é devido por quem tenha a vigilância do incapaz, salvo se provar não ter podido impedir o fato.

No caso em que o prejudicado não tenha podido obter o ressarcimento de quem for responsável, o juiz, em consideração às circunstâncias econômicas das partes, pode condenar o autor do dano a uma equitativa indenização”.

 O Código Civil italiano  estende a responsabilidade ao próprio incapaz, quando o prejudicado não tenha conseguido obter a reparação através do responsável legal desse, o que fica a cargo do juiz. Neste caso, a responsabilidade não é culposa, embora o dano se qualifique como antijurídico, porque não se fala de culpa, quando o agente é incapaz de entender.

No direito brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei n. 8.069/1990) estabelece a própria responsabilidade do menor, em se tratando de ato infracional ( crime ou contravenção penal), com reflexos patrimoniais, caso em que a autoridade poderá determinar que se promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima e esta medida poderá ser substituída por outra adequada (art.116).

Nosso atual Código Civil acompanha o italiano, determinando ao incapaz responsabilidade subsidiária, cuja indenização deve ser equitativa, não podendo privá-lo e as pessoas dele dependentes do necessário, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes  (art. 928).  Em se tratando de ato ilícito, a responsabilidade do pai, tutor, curador, independe de culpa  deles e, nesse ponto, difere do Código anterior  que a exigia (art. 933).

Em síntese, no verdadeiro estado de necessidade, ele é responsável pelo ato-fato e se lhe aplica a ação prevista no art. 929, se o dono da coisa  ou a pessoa lesada não forem culpados  pelo perigo); contra ele igualmente caberá ação regressiva, quando o agente, ao salvar interesse dele (INCAPAZ), causa prejuízo a outrem. Sendo o atuante o dono da coisa danificada, responde o absolutamente incapaz, a favor dele. Se o atuante age putativamente, salvando bens do absolutamente incapaz, este não tem responsabilidade pelo ato (ilícito) daquele, não havendo contra si ação regressiva.

11 - FONTE DO PERIGO

Pode provir o perigo de ato humano ( ação antijurídica ou não, imputável ou inimputável, culpada ou inocente - é indiferente para o ato em necessidade), de fato causado por animal irracional, de força da natureza, enfim de qualquer acontecimento desfavorável, como : incêndio, inundação, desabamento, desastre ferroviário, rodoviário, naufrágio, fome, epidemia grave, investida de animal bravio (cães, touro, etc). (Nesse sentido Cf. HUNGRIA. Op. Cit., p. 274).

12 - FUNDAMENTO DO ESTADO DE NECESSIDADE

Tal como ocorre na legítima defesa, o estado de necessidade faculta a intervenção de pessoa para salvar a si e a seus bens jurídicos ou a outra pessoa e seus bens, diante de situação especial, onde o Estado não consegue socorrer de imediato, pois, podendo o Estado agir, descaracteriza-se o estado de necessidade. A respeito pontifica ENRICO ALTAVILLA : “In fondo si può concordare col Massari (4) “chi agisce in stato di necessità, per salvare altri, indubbiamente com la sua azione collabora a una funzione dello Stato, ossia ad una funzione di assistenza publica”. ( Nuovo Digesto Italiano. Torino: ed. UTET, 1939, V. XVII, p. 966).

13 – EXCESSO

Excedendo o agente, dolosamente, no exercício dos meios de defesa, evidentemente que seu ato será ilícito, como também será ilícito se empregou meios imoderados e não apropriados, caso em que sua atitude será ilícita, por ação culposa. O excesso é punível em instância penal e tido como  abuso do direito, na esfera civil.

Enfoca ANÍBAL BRUNO que, em outras legislações, leva-se em consideração o ânimo do agente, punindo-se geralmente o excesso com pena atenuada ou deixa-se a atenuação ao arbítrio do juiz. “O nosso Código não seguiu esses modelos. No direito vigorante entre nós, se justificado pela própria turbação do agente, sob a ameaça de perigo grave e premente, o excesso não altera a situação de estado de necessidade como descriminante. Doloso ou culposo, porém, não exclui nem atenua a pena. O agente responderá pela lesão que constitui o excesso a título de dolo ou culpa”.  (Direito penal. Atualizada por Rafael Cirigliano Filho. Rio Janeiro: Forense, t. I, 2003, p. 251), ( art. 23, § único, CP).

Configura-se o excesso quando o agente, após o uso do meio proporcional, intensifica sem necessidade sua conduta, indo além do necessário para o salvamento. Tanto pode ser doloso ou culposo; não exclui a antijuridicidade, mas, a partir da ação excessiva, responderá o agente.

14 - INTERESSE COLETIVO

Um perigo comum, com iguais condições de tempo e lugar, que ameace muitas pessoas e coisas, cada uma delas tem igual faculdade para realização do ato, salvando a si e suas coisas. Se apenas uma realiza o ato necessário para salvação do perigo comum, dependendo da circunstância, a ela   pode ser aplicada SENÃO a figura do estado de necessidade, a do mandatário tácito ou a de gestor de negócios. Como o ato foi aproveitado por várias pessoas, a responsabilidade pelo ressarcimento reparte-se, conforme o benefício que do ato obtiveram. (Cf. CHIRONI. La culpa..., p. 25).

Referindo-se ao interesse da coletividade, entende SAVATIER que, na falta de beneficiário real, ser o interveniente, mesmo isento de falta, responsável pelo prejuízo causado a outrem para servir um terceiro ou à coletividade. E esta regra, verdadeira quando ele é desinteressado, impõe-se ainda mais quando tem interesse. (Cf. Op. Cit., p. 133, 134).

15 – CULPA

O estado de necessidade caracteriza-se pela não contrariedade a direito, pela ausência de culpa, elemento importante na indenização. Todavia, nem sempre o dano praticado nesse estado é resultante de simples fatalidade. Poderá a culpa surgir em vários momentos do ato, suscitando obrigação ao agente de reparar o dano injusto. Conforme nota CUNHA GONÇALVES, a  culpa, por vezes, antecede o fato (negligência em calcular as consequências de um ato lícito ou realização de um ato, que causou ou facilitou o perigo). Exemplifica, citando o caso do navio que, por falta de seu capitão ou piloto, envolve-se em redes de pesca e as rompe para se soltar. Aí ocorre culpa casum determinans, não podendo ser invocado o estado de necessidade.

Poderá ser posterior  a culpa e esta resulta do modo como o agente reage à situação, seja não procurando outro meio de defesa ou um meio defensivo menos lesivo ou excedendo-se na defesa, o que retira o fato do estado de necessidade e o torna ilícito.(Cf. Op. Cit., p. 522)

16 - CONCORRÊNCIA DE CAUSAS NO ESTADO DE NECESSIDADE - PARCELA DE CULPA

Dentre os requisitos elencados na configuração do estado de necessidade, destacamos a inocência do lesado, isto é,  segundo a doutrina mais antiga, o lesado ou vítima não pode provocar ou facilitar seu dano.

A construção jurisprudencial vem modificando a regra rigorosa e estende os efeitos da concorrência  de causas ao  estado de  necessidade. Em Embargos Infringentes, julgados pelo 2º. Grupo C. Cível do TJSP, em 25/outubro/1973, tendo como relator o desembargador COSTA MANSO, temos o seguinte caso.

Um motorista atropelou e matou meninos, que brincavam no leito transitável da via pública, forçado pela necessidade de fugir do perigo ,causado por outro veículo que vinha na contramão direcional. A apelação acolheu em parte o pedido de indenização, na ação movida pelo pai das crianças, condenando o motorista ao pagamento de metade da indenização, com suporte na  concorrência de causas.

Comprovou-se que realmente o acidente deu-se por culpa de terceiro, cuja imprudência obrigou o motorista da Embargante a desviar-se pra junto do meio-fio, ante o perigo iminente à sua própria vida, bem como de passageiros de seu automóvel, num ato de necessidade.

Ficou assentado no julgamento dos embargos infringentes a concorrência de causas, louvada no voto do relator, trazido a lume por WILSON BUSSADA:

“A novidade do caso presente seria talvez a divisão da importância do prejuízo, entre o autor do dano e a vítima, pela concorrência de causas - a culpa de terceiro e a necessidade que conduziu o agente à prática voluntária do ato lesivo, de um lado; e  a parcela de culpa da própria vítima, de outro lado (não exercera vigilância para evitar que os filhos menores brincassem imprudentemente no leito carroçável da via pública).

No antigo rigor da ortodoxia jurídica, exigia-se que a vítima fosse inocente, de maneira completa, isto é, que não houvesse provocado nem de qualquer maneira facilitado o seu próprio dano: “Finalmente -advertia  Cunha Gonçalves - o ato praticado no estado de necessidade tem por característica essencial que o lesado não haja provocado, nem de qualquer modo facilitado o seu próprio dano. O lesado é, aqui  uma vítima imbele. Não suscitou o perigo, não promoveu o ato lesivo, não colaborou nele”. (Op. cit.,p. 520). “Mas o temperamento dado pela maioria subscritora do acórdão embargado constitui um avanço muito louvável da  jurisprudência que, assim, estende o conceito e, sobretudo, os efeitos da concorrência de causas do evento, para a hipótese de indenização, resultante de estado de necessidade: não seria justo que o autor do dano pagasse tudo, se a vítima de seu lado contribuiu também, com sua imprudência,, para a concorrência do fato; e não seria justo que a vítima sofresse a totalidade do prejuízo, só pela circunstância de ter uma parcela de culpa, se o fato resultou igualmente de ato voluntário do autor do dano, impelido pelo estado de necessidade, para escapar de perigo iminente, em consequência de culpa de terceiro.

Esse raciocínio é tanto mais aceitável quanto se considere que, se fosse conhecido o terceiro culpado e a vítima contra ele preferisse agir, diretamente, a concorrência de culpas, acima referida, imporia, segundo a jurisprudência dominante, a divisão do prejuízo.” (Código Civil brasileiro ...V I, t. III, 1980, p. 73, 74).

17 - CULPA DE TERCEIRO

Nem sempre a situação de perigo resulta de força maior. Na origem  dela pode existir uma falta, cujo autor deve responder pelo dano causado. Reconhece-a o direito brasileiro ao declarar o direito de regresso do agente ao  terceiro culpado do perigo ( art. 930). Igualmente será responsável pelas consequências do ato necessitado quem tem a guarda jurídica de pessoas ou coisas causadoras do estado, caso em que será a responsabilidade fundada na culpa  in vigilando. O agente responde pelo ato-fato jurídico; o terceiro responde pelo ato ilícito. Se, quem atua em necessidade, foi o responsável pelo perigo, responderá pelos danos, com suporte na ilicitude; neste caso, não se trata de estado de necessidade.

A responsabilidade de quem  teve seu bem salvo com o sacrifício do bem de outrem é reconhecida pela jurisprudência francesa, seja ao argumento de enriquecimento sem causa, seja em virtude de uma ideia de gestão de negócios. Em todo caso, trata-se de uma regra de equidade que pode ser admitida mesmo na ausência de texto legal. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 127).

 18 - ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ART. 188, II, combinado com o artigo 929

Nem sempre o estado de necessidade torna o ato danoso lícito no âmbito civil, mas só nas hipóteses do art. 188, II. A responsabilidade ali prevista não abrange todos  os danos ocasionados em situação de perigo, mas somente os praticados por  ato de vontade (deliberação); diante do perigo que se apresenta é feita uma escolha. A doutrina cita como exemplo : Se A, ao sentir a queda iminente do avião, lança-se de paraquedas e cai no telhado de um prédio, não caiu nesse telhado para salvar-se -  não é aplicação do art. 188, II. Porém, se foi obrigado a aterrizar e, ao fazê-lo, causou dano onde aterrou, há incidência do art. 188, II. Não incidirá nesse artigo se, ao aterrar, o avião andou mais do que o aviador previu, por culpa, e destruiu coisa de outrem (art. 186). A explicação vale para qualquer outra espécie de veículo. ( Cf. PONTES. Op. Cit., p. 304).

A doutrina discutiu, anteriormente, sobre os dispositivos acima, afirmando alguns autores estar o art. 1519 (atual 929) em contradição com o art. 160, II (atual 188,II), pois não seria lógico determinar o dever de reparação de dano (se o dono da coisa não for culpado do perigo), se a remoção do perigo já foi posta como excludente de ilicitude. Outros opinaram não haver incongruência e sim equidade dos dispositivos legais. “O encadeamento das ideias é lógico e tem um fundamento ético bem claro”, diz BEVILÁQUA (Op. Cit., p. 424), notando que a interpretação errônea deu-se por interpretação alheia ao Código Civil, quando é dever do intérprete penetrar o sistema que os dispositivos do Estatuto Civil traduzem, a fim  de analisá-los à luz dos princípios gerais e dos demais preceitos que envolvem a matéria. (Cf. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, 1919, v. V, t. II, p. 282).

De acordo com essa última posição, aduz WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO,  “No estado de necessidade, e também no de legítima defesa, à vista do  antigo art. 1540, quando o prejudicado não é o ofensor, mas um terceiro estranho, subsiste o dever de ressarcir. Este só desaparece se o prejudicado é o próprio ofensor ou o próprio autor do perigo”. (Op. Cit.,  1952,  p. 280).

Ao art. 1540 do Código anterior já fizemos alusão. Referindo-se à indenização, resultante de ato  ilícito, expressava que as disposições a ela relativas aplicavam-se ao caso de morte ou lesão, quando resultante de ato considerável crime justificável, se tal ato não foi perpetrado pelo ofensor em repulsa de agressão do ofendido. Quer dizer, quando atingir terceiro inocente. O  novo Código suprimiu essa disposição,  porquanto a regra geral é : quem produziu o dano é obrigado a repará-lo.

19 - MAL CAUSADO A SI MESMO PARA EVITAR UM MAL A OUTREM - ATO DE SACRIFÍCIO

Estamos aqui diante de uma situação de sacrifício ( dévouement, para os franceses). Não se tem em vista, nesse caso, apenas um simples serviço de favor ou gratuito, mas de situação na qual o agente causa verdadeiro mal a si, a fim de evitar um mal a terceiro. A jurisprudência francesa reconheceu-o como ato de sacrifício aquele pelo qual alguém arrisca sua integridade corporal para  afastar um perigo de outrem. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 130, 131).

Esse ato não é uma falta, mesmo se ele parece temerário, mas com a condição de que se reúnam os dois elementos essenciais ao estado de necessidade : primeiro, é necessário que o salvador tenha podido considerar legitimamente seu sacrifício, ao momento em que ocorre, como único meio de afastar o mal de modo urgente; é necessário que o mal seja grave para justificar o sacrifício do salvador/agente. Entretanto, não podendo o direito positivo fazer abstração do valor moral dos atos, as condições gerais do estado de necessidade serão, na sua aplicação, mais facilmente apreciadas para o ato de  sacrifício, cujo valor moral é grande, que para o ato no qual o agente sacrifica interesses ou a vida de outrem para seus próprios interesses ou  sua própria vida, atitude cujo valor moral é insignificante. (Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

O autor do ato de sacrifício, não incorrendo em falta, pode atribuir a responsabilidade do prejuízo sofrido a  todas as pessoas que criaram o estado de necessidade, seja por sua falta, seja por falta de coisa ou de pessoa pelas quais deviam responder. O mesmo ocorre quando o ato de sacrifício não tiver alcançado seu objetivo ou ainda quando esse ato realizado, por exemplo, por um agente de polícia, pudesse ser, por sua parte, o exercício de um dever. (Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

Inversamente, o autor do ato não teria recurso, se ele tivesse apenas procurado evitar para outrem, mesmo que, a despeito de um grave sacrifício, um dano que ele mesmo iria causar, seja por sua falta, seja pelo fato de pessoas ou coisas pelas quais devia responder. ( Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

Se o estado de necessidade deriva de puro caso de força-maior, o direito comum da responsabilidade designa o responsável. Nesse caso, como naqueles onde o criador responsável pelo ato necessário é insolvente, entende SAVATIER que o salvador pode fazer-se indenizar pela pessoa salva. A jurisprudência parece chegar a esse resultado por uma ação de gestão de negócios. (Id. Ibid., p. 131).

20 - MAL CAUSADO A ALGUÉM PARA EVITAR UM OUTRO A ESSA PESSOA

A falta ou ato culposo (ilícito), nessa situação, desaparece, mas, em geral, sob uma condição: a de haver consentimento do interessado, ao qual ele só pertence, normalmente, para apreciar a necessidade do ato. Esta é a regra aplicada, em particular, nos casos de intervenções médicas. Contudo, pode ocorrer que o interessado não esteja em condições de apreciar a necessidade do ato, ou o tempo pode faltar para adverti-lo e consultá-lo, em razão do perigo urgente. Nessa circunstância, o ato é perfeitamente justificável e, como ele beneficia a própria vítima, o agente não incorre em responsabilidade. Essa responsabilidade competiria, em tal caso, ao indivíduo cuja falta criou o estado de necessidade.

Na pessoa de administrador legal dos bens de outrem, o estado de  necessidade representa um papel particularmente importante. Ele justifica, especialmente, a teoria dos atos conservatórios. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 132).

21 - AÇÃO REGRESSIVA

Consigna o Código Civil brasileiro o direito de regresso ao agente (autor do dano) contra o terceiro culpado do perigo (art. 930). Não se refere à mesma ação contra o beneficiado no estado de necessidade, apesar de admiti-la em caso de legítima defesa. Apesar da ausência de dispositivo legal expresso, tem-se entendido, por razão lógica e fundamento ético, ter o mesmo direito o agente contra aquele em cuja defesa foi o ato praticado; invoca-se, portanto, o art. 4º. da Lei de Introdução ao Código Civil, em aplicação analógica. Seja para o estado de necessidade, seja para legítima defesa, há o direito de regresso.

Nada mais justo assegurar ao agente/atuante esse direito, já que ao prejudicado o direito de indenização foi estabelecido pela norma legal, fundada na relação entre ele e o agente. Em tal situação, optou o legislador em garantir o lesado contra quem esteve envolvido diretamente, não lhe impondo o ônus da busca, talvez  exaustiva e infrutífera, do causador do estado de perigo;  ou como acabamos de admitir, do beneficiado pelo ato do agente.

22 - RESPONSABILIDADE CIVIL -  FUNDAMENTO E ESPÉCIE

No direito moderno, tem-se assentado o princípio segundo o qual a voluntariedade e a culpa não são elementos essenciais da responsabilidade civil. No evolver da sociedade, sente o direito a necessidade de incorporar novos conceitos aos antigos institutos e se afasta do direito romano, onde a indenização tinha o caráter de pena.

Entre o patrimônio do lesante, não culpado, e o do lesado, prefere optar por este último. No estado moderno, a culpa não é critério socialmente admissível.

 Dentre alguns autores que examinaram a obrigação de reparar o dano, causado em estado de necessidade, AGUIAR DIAS aponta as divergências, quanto ao seu fundamento:

Uma corrente, e nela encontramos Chironi, filia-se ao princípio do enriquecimento sem causa.O ato de necessidade não fundamenta, por si só, a reparação civil, porém reconhece a procedência da ação  in rem verso, em face da alteração do direito do agente, trazida na vantagem para ele e prejuízo a outrem.

Para  AGUIAR, a teoria é  insuficiente, porque não há necessariamente enriquecimento, podendo o ato necessário não ter alcançado êxito; Efetivamente, buscando a obra de CHIRONI, ali encontramos : “... Quien perjudicando a otro en su persona o en sus cosas se salva a sí proprio o a sus cosas, ? no estará obligado a reparar el daño que no tenía derecho a inferir? ? No es esto un enriquecimiento ilícito, y, por tanto, prohibido? No es posible negarlo”. ( La culpa ... t. II, p. 388).

Para outra corrente, defendida por  Demogue, a reparação funda-se em  expropriação privada. Essa teoria satisfaz em parte, quando se trata de dano praticado em proveito do agente, mas não alcança a hipótese do ato em  favor de terceiro que, porventura, o obrigue, porquanto não se admite delegação deste para a expropriação.

Outra corrente (Giorgi) sustenta a reparação na eqüidade, na solidariedade  ou na assistência social”. É a teoria acolhida por Aguiar Dias, por enquadrar-se na sua concepção de responsabilidade civil, baseada na “Simples violação injusta do  statu quo”. ( Op. Cit., 1983,  v. II, p. 751).

Na evolução em que nos encontramos, não é possível endossar ou acolher o adágio romano  necessitas non habet legem, violador, incontestável da ideia de justiça.

Sendo o critério da culpa insuficiente para dar suporte à indenização, CUNHA GONÇALVES expõe outras teorias, concluindo que a teoria do risco é a que melhor se acomoda à situação e tem inspirado as legislações contemporâneas. Quem deve sofrer as consequências será o causador do dano, embora bem intencionado, ou aquele que lucrou com o mesmo dano. Invoca o autor o princípio : “Deve reparar  o dano quem se arriscou, com ou sem intenção de tirar proveito, a exercer, por si ou por via de outrem, uma atividade qualquer, positiva ou negativa, de que resultou o dano”.

Consequentemente ele afasta as teorias seguintes por julgá-las errôneas : a teoria de  extrajuridicidade ( o ato necessário está fora do direito, não sendo conforme nem contrário a ele, porque nenhum ato lesivo pode ser considerado como estranho ao direito); teoria da licitude ou irresponsabilidade ( porque não pode ser tido como irresponsável o agente que se encontrava em seu perfeito juízo); teoria do valor superior do bem salvo ( pois isto é sacrificar demasiado o interesse do lesado ao do lesante, mesmo que esse interesse coincida com o interesse geral).

Rechaça, pelas mesmas razões, as outras teorias mais defeituosas, buscadas por outros, objetivando fugir da teoria do risco, tais como : gestão de negócios; locupletamento (actio in rem verso); ou expropriação por utilidade privada, mencionada anteriormente; e ainda com base no critério estreito da culpa. (Op. Cit., p. 524)

Conforme assentado por PONTES, a reparação funda-se em ato-fato, ato que não entrou no mundo jurídico (anomia  ou ausência de leis).  Alicerçado  nesse argumento, afirma  que há algo de parecido na desapropriação por utilidade pública. Mas não desdobra sobre as teorias que lhe dão fundamento.

Devemos sintetizar em breves linhas a matéria da responsabilidade por fato de outrem, em âmbito de aplicação dos preceitos que tratam do estado de necessidade. Para o direito positivo brasileiro, a responsabilidade é direta, principal do agente do ato necessário, porquanto foi ele o causador do dano, embora lhe assista o direito de ação regressiva, se não foi culpado pelo fato. Há obrigação solidária de indenizar ao agente (ação regressiva), quando ocorrer pluralidade de culpados pelo ato necessário. Aí, tanto pode ser exigido o reembolso a qualquer deles ou a todos, sendo cada um obrigado à prestação por inteiro. Exigida a restituição do gasto de um, este terá, por seu turno, o direito de exigir de cada dos codevedores  a  sua  cota  (art. 283 C.Civil  bras.),  mas  não mais  como  devedores   solidários.  Na  relação interna, entre codevedores, o princípio reinante é oposto à solidariedade e a responsabilidade reparte-se  pro rata.

Registre-se, porém, que a solidariedade, por encerrar exceção ao princípio  concurso partes fiunt,  não se presume e resultará de imposição legal, como por exemplo, a dos coautores do ilícito (art. 265 e 942 do C.C. bras.) ou de convenção entre as partes.  Deste modo, sendo vários os culpados do perigo determinante do ato necessário, contra eles existe a responsabilidade solidária.

Acionando um ou alguns dos devedores, o agente continua com a qualidade de credor solidário quanto aos outros responsáveis e a ação proposta naquela forma não induz em renúncia à solidariedade.

Será igualmente solidária, quando o  prejudicado  exigir a indenização do agente e do terceiro culpado ou beneficiado pelo ato. Na relação interna entre estes, a responsabilidade não se reparte  pro rata, pois ao primeiro subsiste o direito de regresso para haver o  quantum na sua totalidade, porquanto a dívida solidária é do interesse exclusivo do terceiro culpado ou beneficiado ( art. 284 do C. Civil). É como ocorre com o avalista de título de crédito, em relação ao avalizado.

Se forem vários os agentes do ato necessário,  entre eles ocorrerá, embora não seja ato ilícito, também a responsabilidade solidária.

Quanto ao terceiro beneficiado (não se trata de ilícito), a sua responsabilidade funda-se na gestão de negócios ou em virtude de existência de outra relação entre agente/beneficiado (como poder familiar) somada ao ato-fato do agente, segundo informa PONTES ( Op. Cit., p. 307).

No direito francês, sustenta SAVATIER ser a responsabilidade do agente  subsidiária, só existindo se o dano causado não tiver sido reparado, seja por aquele cuja falta está na origem do estado de necessidade, seja por aquele que teve proveito do sacrifício imposto a outrem (Cf. Op. Cit., p. 127). 

24 – DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO

Legislação mais detalhada, o Código Civil português,  no subtítulo IV, que cuida do Exercício e tutela dos direitos, insere no art. 339 o estado de necessidade:

“Art. 339 - Estado de necessidade

1.É lícita a ação daquele que destruir ou danificar coisa alheia, com o fim de remover perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.

2.O autor da destruição ou do dano é, todavia obrigado a indenizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indenização equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiveram proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessidade”.

O agente é obrigado à reparação, se o perigo for provocado por culpa sua, o que é evidente, porque aí a matéria entra no  campo da ilicitude. Ao invés de prever ação regressiva, prefere determinar responsabilidade direta tanto do agente, como do terceiro culpado ou do beneficiado pelo ato necessário. Insere o critério da  superioridade entre o dano evitado e o praticado como requisito do ato.

No BGB, o ato  necessário não é contrário a direito, quando o dano ou destruição são necessários para evitar o perigo e não for desproporcional. O agente só é obrigado à indenização, quando o perigo provier de culpa sua.

Na seção VI, que trata do exercício dos direitos, legítima defesa e justiça privada, assenta o  § 228 ( Estado de necessidade)

“Quem deteriorar ou destruir uma coisa estranha, a fim de afastar, de si ou de outrem, por meio dela, um perigo iminente, não procederá antijuridicamente, se a deterioração ou a destruição era necessária para o afastamento do perigo e o dano não estava fora de proporção com o perigo.

Se o que assim agiu, for culpado do perigo, estará obrigado a indenizar o dano”.

Peca o Estatuto alemão por consignar os casos de responsabilidade, apenas registrando uma obviedade, qual seja, dever de reparação pelo agente culpado do perigo; portanto, estaria isento o agente, em não havendo culpa sua, mas havendo culpa de terceiro é da sistemática jurídica que contra este caberá pedido de indenização.

A doutrina tem apontado contradição entre o dito parágrafo 228 (agente só é obrigado à reparação se for culpado do perigo) e o § 904 ( que permite a qualquer pessoa exercer na propriedade alheia ato necessário, para afastar perigo iminente, mesmo danificando-a, se o dano receado ou evitado for superior ao causado ao proprietário), no qual reconhece-se ao proprietário, sempre, o direito à indenização. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 525).

O Código Civil  italiano, no título IX, correspondente aos fatos ilícitos, traz a exceção prevista no art. 2045:

“Art. 2045 (Estado de necessidade). Quando, quem praticou o fato danoso, estava constrangido pela necessidade de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, e o perigo não foi por ele voluntariamente causado, nem era de outra forma evitável, ao prejudicado é  devida uma indenização,  cuja medida é remetida à equitativa apreciação do juiz.”

Verificamos, na disposição, os requisitos: perigo não voluntariamente causado pelo agente, atual e inevitável; peca por contemplar somente o dano grave à pessoa ou outrem, não se referindo a outros direitos. A doutrina entende que essa expressão  à pessoa é empregada em sentido amplo, o que vale dizer, incluem-se seus bens, interesses físicos e morais.

Não introduz o critério da proporcionalidade entre o dano evitado e o mal causado, o que é feito pelo Código Penal. Determina indenização ao prejudicado, sendo o agente não culpado, a ser apreciada pelo juiz. No art. 2047, há previsão do dano causado por incapaz,  conferindo-se ao juiz, considerando as condições econômicas das partes, o poder de condenar o agente a uma equânime indenização, quando o lesado não puder obter o ressarcimento pelo seu responsável..

Outro dispositivo legal aborda o estado de necessidade em matéria contratual, no capítulo que dispõe sobre a rescisão do contrato, celebrado em estado de necessidade.

Reza o art. 1447 :  “O contrato com quem uma parte assumiu obrigações em condições iníquas, pela necessidade, conhecida pelo outro contraente, para salvar a si ou outrem de perigo atual de um grave dano à pessoa  pode ser rescindido por ação  pela parte que se obrigou.

O juiz, ao pronunciar a rescisão, pode, segundo as circunstâncias, determinar uma justa compensação à outra parte pela obra realizada”.

O direito positivo  italiano pouca contribuição dá ao estudo das pré-excludentes de ilicitude. A construção doutrinária e jurisprudencial vem sendo feita, através dos dispositivos da legislação penal.

Sobre a autora
Aparecida I. Amarante

Procuradora do Estado de Minas Gerais. Ex-professora-adjunta de Direito da UFMG. Doutora em Direito Civil. Escritora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3814, 10 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25864. Acesso em: 27 dez. 2024.

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