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Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista

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Agenda 20/11/2013 às 06:14

3. RELAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA MORALIDADE E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Conforme elucidado acima, o princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeito aos valores morais acolhidos pelo ordenamento jurídico, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico.

Assim, partindo-se da ideia de que o princípio da moralidade se relaciona com a moral jurídica e não com a moral comum, há que se ressaltar a diferença e a relação existentes entre os princípios da moralidade e o da legalidade, sobretudo no que concerne à existência, ou não, de autonomia do princípio da moralidade.

Como já assinalamos no capítulo anterior, a doutrina administrativista divide-se em relação ao tema. A posição de que o princípio da moralidade não é norma autônoma é defendida pelo Professor e Doutor na matéria, Márcio Cammarosano. Referido autor afirma que o princípio da moralidade é norma auxiliar, e não norma autônoma, pois não há na doutrina exemplo de invalidação de ato administrativo baseada única e exclusivamente na violação do princípio da moralidade.

“Para que pudesse ser considerado autônomo seria preciso que pudéssemos dar um exemplo de ato administrativo que comportasse invalidação com a só invocação desse princípio, sem que se vislumbrasse ofensa a qualquer outro. E esse exemplo não logramos encontrar”[82].

Posição diversa é a defendida, por exemplo, por Weida Zancaner e por Emerson Garcia. Weida Zancaner entende que é possível conferir autonomia ao princípio da moralidade já que a sua redução ao princípio da legalidade dificultaria o alcance do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito. Já Emerson Garcia entende que a autonomia seria identificada no embasamento que a norma teria para melhor identificar, e proibir, punir, o desvio de poder, atuando, assim, em uma análise da intenção do administrador ao praticar o ato.

Dessa forma, seja em prol da máxima efetividade da aplicação da Constituição, imperativo no Estado Democrático de Direito, seja pela facilitação do controle dos atos administrativos, entendem os eminentes doutrinadores supracitados que o princípio da moralidade administrativa é norma autônoma em relação não apenas ao princípio da legalidade como em referência a quaisquer demais normas.

Antes, entretanto, de aprofundar o estudo acerca da autonomia do princípio da moralidade há que se destacar as características mais marcantes do princípio da legalidade, pois tal conduta permitirá melhor elucidação da controvérsia existente a respeito da autonomia normativa.

Conforme afirmado no Capítulo 2 do presente estudo, o princípio da legalidade é princípio específico do Estado de Direito[83] e fruto da submissão do Estado à lei. Sua raiz encontra-se na ideia de soberania popular e na de tripartição do exercício do Poder.

“A razão mesma do Estado de Direito é a defesa do indivíduo contra o Poder Público. E a fórmula, por excelência, asseguradora deste desiderato descansa na tripartição do exercício do Poder, graças a quê os cidadãos se garantem ante os riscos de demasias do Executivo, negando-lhe qualquer força jurídica para estabelecer as regras que impliquem limitações à liberdade e propriedade das pessoas. Com efeito, foi exatamente para deter o poder do monarca, cujo sucessor é o Poder Executivo, que se concebeu este mecanismo, difundido no mundo civilizado”[84].

Segundo os ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Mello[85] o princípio da legalidade surgiu como decorrência da indisponibilidade do interesse público[86]. Os sujeitos da Administração Pública, em seu atuar, devem sempre visar ao alcance do interesse público primário, que é o pertinente à sociedade como um todo e, em razão disso, indisponível. Para tanto, devem atuar dentro dos limites da lei, sob pena de produzirem atos inválidos passíveis de anulação tanto pela própria Administração, no exercício de seu poder de autotutela[87], como pelo Poder Judiciário.

O princípio da legalidade é um princípio base do regime jurídico-administrativo: com o advento do Estado de Direito[88] e com o surgimento do Direito Administrativo houve grande mudança nas ideias político-jurídicas até então vigentes[89]. Os súditos passaram a ser considerados administrados e a Administração Pública teve de pautar sua atuação dentro dos limites legais.

Com efeito, uma das ideias centrais oriundas, em sua aplicação, principalmente da Revolução Francesa é a de que apenas através do controle do poder do Estado por leis, anteriores às condutas por elas previstas, é que se poderia desenvolver a vida humana em sociedade com o respeito aos direitos mais elementares (por isso ditos fundamentais) e universais dos Homens.

“(...) o que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração está, ipso facto, proibido, de tal sorte que a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar”[90].

Nota-se, portanto, que a existência do princípio da legalidade como princípio da Administração Pública, expresso no caput, do art. 37, como também nos arts. 5º, II, e 84, IV[91] da Constituição Federal, é garantia para os administrados de que a atuação da Administração Pública não será exercida de modo autoritário.

O princípio da legalidade pode ser definido, portanto, como o dever da Administração Pública de pautar seus atos em função das autorizações previstas na lei[92].

Para Ruy Espíndola o princípio da legalidade significa que

“todo ato do Poder Público que contraste com a lei é inválido; todo ato do Poder Público que tenha sido praticado sem autorização da lei é inválido; se uma lei conceder poder administrativo sem limitá-lo, consubstanciando verdadeira cláusula de conteúdo abdicatário ou demissório do poder de legislar – ou seja, se, por via transversa, oportuniza delegação indevida ao administrador, fazendo com que este defina por ato administrativo o que só o legislador poderia fazê-lo por ato legislativo -, a lei será inconstitucional”[93].

Segundo os ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Mello “a expressão ‘legalidade’ deve, pois, ser entendida como ‘conformidade à lei e, sucessivamente, às subseqüentes normas que, com base nela, a Administração expeça para regular mais estritamente sua própria discrição’”.[94]

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Com efeito, a atividade da Administração Pública deve sempre buscar seu fundamento na lei, no sistema jurídico. Isso porque administrar, segundo Seabra Fagundes, é “aplicar a lei, de ofício”.[95]

Importante definição do que seria o princípio da legalidade é oferecida por Hely Lopes Meirelles que afirma que

“a legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”[96].

Ou seja, pelo princípio da legalidade a atuação da Administração Pública deve estar sempre subordinada à lei, devendo ser exercida dentro de suas disposições, dentro de seus limites. Portanto, é pelo princípio da legalidade que se pode afirmar como bem asseverou o professor Hely Lopes Meirelles que “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”[97].

Sendo este, em linhas gerais, o significado do princípio da legalidade, há que se verificar os princípios que possuem uma sujeição especial em relação ao princípio em tela. Isso porque, tendo o condão de subordinar toda a atividade da Administração Pública ao seu talante, encerra o princípio da legalidade diversas outras disposições que com ele se coadunam, seja de maneira expressa, seja de maneira implícita.

Como já realçamos oportunamente, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello[98], encartam-se no princípio da legalidade os princípios da finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação e o da ampla responsabilidade do Estado.

A leitura das ponderações feitas por referido autor sobre o fato de considerá-los como decorrências lógicas encartadas no princípio da legalidade, entretanto, não traz (ao menos não, em princípio) a conclusão peremptória de que tais princípios da finalidade, razoabilidade e proporcionalidade restariam desprovidos de qualquer autonomia no ordenamento jurídico[99].

Nessa linha de raciocínio, se assim o é para os princípios tidos pelo autor como meras decorrências ou corolários diretos do princípio da legalidade, por maior razão, há de ser para o princípio da moralidade administrativa, apontado com viés de princípio autônomo.

Destarte, apesar de o presente estudo apontar a tese defendida pelo professor Márcio Cammarosano como melhor entendimento acerca da definição de moralidade administrativa, qual seja, de que a moralidade administrativa refere-se à moral juridicizada, discorda-se da tese apontada particularmente no tocante à opinião contrária à ideia de autonomia desse princípio da moralidade em relação ao princípio da legalidade.

O que aqui se defenderá é que a moralidade administrativa, tal como os princípios da finalidade e da motivação, por exemplo, constitui princípio autônomo, o que não impede, por outro lado, reconhecer que guarda uma relação de sujeição especial com o princípio da legalidade.

Assim, de fato não existe ato que viole o princípio da moralidade que não viole simultaneamente o da legalidade. Todo ato administrativo eivado de imoralidade também será violador da legalidade, pois não há ato imoral, no âmbito jurídico, que também não seja ilegal, já que, para tais fins, é imoral apenas aquilo que viola a moral juridicizada, posta pelo ordenamento jurídico.

Aqui se reconhece plenamente que o princípio da moralidade administrativa tem relação direta com o da legalidade, mesmo porque o conteúdo daquele é dado por este.

“Quando a ordem jurídica é violada, o ato a ela ofensivo padece de vício quanto à sua legalidade. Mas há ofensas à ordem jurídica especialmente qualificadas, como a intencional violação da lei, dissimulada ou não. Nesses casos, o ato, sobre ser ilegal, é também ofensivo à moralidade administrativa. Por outro lado, não pode haver ato que se possa qualificar como legal, mas ofensivo à moralidade administrativa, como se além de contrastá-lo com o Direito pudesse ser contrastado também com outra ordem normativa do comportamento humano e, por ofensa a esta, ser reputado inválido sem que o próprio direito tenha sido diretamente violado. (...) Nem todo ato ilegal é imoral. Mas não se pode reconhecer como ofensivo à moralidade administrativa ato que não seja ilegal. Não existe ato que seja legal e ofensivo à moralidade. Só é ofensivo à moralidade administrativa porque ofende certos valores juridicizados. E porque ofende valores juridicizados, é ilegal. Ofender certos valores torna o ato especialmente viciado. Não será apenas qualificado como ilegal, mas também ofensivo à moralidade administrativa. A imoralidade administrativa é, digamos, resultante de uma qualificadora da ilegalidade”[100].

Esta relação de sujeição especial que aqui se defende existir não é suficiente, entretanto, para retirar a autonomia do princípio da moralidade. Com efeito, uma vez reconhecido o advento do pós-positivismo, poder-se-ia muito bem conferir autonomia científica ao princípio da moralidade sem que se exija um exemplo de ato administrativo invalidado simplesmente (ou exclusivamente) por violação à moralidade juridicizada, uma vez que nenhuma norma, sob a nova concepção, pode ser considerada isoladamente quando de sua aplicação e interpretação, o que não lhe retira o caráter de autonomia diante das demais.

Observe-se que, conforme afirmado, a aplicação de uma norma principiológica passa por toda uma atividade hermenêutica que, diante do caso concreto, tem como missão identificar as normas jurídicas envolvidas e, dentre elas, aquelas que embasam o direito alegado pela parte lesada (efetiva ou potencialmente). Assim, não se reconhece o ferimento isolado a apenas uma norma, mas, ao contrário, as situações concretas que lesam direitos (ou causam ameaça de sua lesão) irão ferir sempre um amálgama de normas que devem ser restabelecidas pela aplicação do Direito.

Trata-se, em outras palavras, do reconhecimento da dimensão de peso, conforme afirma Ronald Dworkin[101], particular às normas principiológicas, segundo a qual, descobertos os princípios aplicáveis a determinado caso concreto, formam-se conjuntos de normas antagônicas e aquelas que se revelarem mais pertinentes para a realização dos fins do Estado, ou para a Justiça daquela determinada hipótese, devem ser aplicadas em detrimento das demais.

Essa constatação de qual será o conjunto de normas principiológicas aplicáveis será obtido através da atividade hermenêutica e pelo cotejamento dos estados de coisas ideais veiculados por tais normas em relação aos valores envolvidos na discussão do caso concreto ou na atividade de interpretação realizada (como se reconhece, hodiernamente, ser a finalidade imediata dos princípios), principalmente aquelas constantes do texto constitucional.

Além disso, importante observar outras duas características dos princípios que, à luz do pós-positivismo, impedem que os mesmos sejam aplicados de maneira isolada em relação às demais normas, quais sejam, as características de concorrência e parcialidade para a tomada de decisões.

Conforme a novel doutrina normativista (ou pós-positivista) vigente, com efeito, é considerada função primordial dos princípios a de concorrer de forma parcial para a tomada de decisões, ou seja, sem abrangerem em seu conteúdo todos os aspectos do caso concreto analisado. Assim sendo, é imperioso que, em sua aplicação e interpretação, sejam relevadas outras normas que, em conjunto ou, ainda, em concorrência, irão fornecer a resolução segura quanto ao direito aplicável ao caso posto.

Destarte, ainda que em determinada interpretação ou aplicação do direito apenas dê-se relevo a uma norma em particular que incida sobre o caso concreto, e ainda que somente essa norma seja expressamente citada como fundamento determinante de uma posição adotada, estar-se-á, na verdade, diante de ferimento a um conjunto de normas.

Dessa forma, o simples fato de não se conseguir vislumbrar a priori um caso no qual haja o ferimento isolado do princípio da moralidade não retira do mesmo, sob a nova ótica pós-positivista, o caráter de norma autônoma, mas ao contrário, apenas reforça a necessidade de que lhe seja conferido um caráter normativo pleno, que permita uma aplicação cada vez maior de seu conteúdo (estado ideal de coisas a ser promovido).

Segundo o magistério do professor Celso Antônio os princípios jurídicos

“se apresentam como decorrências sucessivas, uns dos outros, sofrem, evidentemente, limitações e temperamentos e, como é óbvio, têm lugar na conformidade do sistema normativo, segundo seus limites e condições, respeitados os direitos adquiridos e atendidas as finalidades contempladas nas normas que os consagram”[102].

De fato, a interpretação da Constituição deve ser feita de maneira sistemática, de modo a atribuir a melhor significação, dentre as inúmeras significações existentes, às normas jurídicas, entendendo-se como normas tanto as regras como os princípios, “hierarquizando-as num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias a partir da concatenação teleológica dos mesmos, tendo por escopo a solução de casos concretos”[103].

Sendo, pois, conjunto de normas supremo e fundamento de validade de todas as demais espécies normativas existentes no Estado, a Constituição deve ser interpretada de forma a serem efetivadas, em grau máximo, todas as normas presentes em seu corpo e, por decorrência, o princípio da moralidade, como norma constitucional expressa que é, não escapa a essa diretriz.

Com efeito, ensinam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que

“A doutrina constitucional, já há algum tempo, vem se debruçando sobre a formulação de princípios auxiliares da interpretação constitucional, buscando a identificação destes segundo critérios de relevância, funcionalidade e aplicabilidade no campo do direito constitucional”[104].

Identificam os referidos doutrinadores como princípios da hermenêutica constitucional[105]: a supremacia da Constituição, sua força normativa plena e unidade, o princípio do efeito integrador, o da concordância prática, o da máxima efetividade, o da correção funcional, da coloquialidade, da interpretação intrínseca e da proporcionalidade. Tudo isso demonstra que, hodiernamente, não se pode simplesmente interpretar a Constituição, mas, antes, deve-se atentar para uma atividade hermenêutica que atenda ao caráter excepcional e superior de suas normas, sendo o princípio da moralidade administrativa, portanto, alvo dessa particularidade por estar expressamente previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Assim, cientificamente analisando o princípio da moralidade, tem-se que se trata de princípio constitucional expresso, que pode e deve ser utilizado como fundamento de invalidade, ou inconstitucionalidade, de atos que o firam, conferindo-se-lhe, portanto, o máximo de carga normativa possível e grau máximo de aplicação. Esse seria, dessarte, o entendimento que mais se coadunaria com o pensamento pós-positivista hoje vigente. A compreensão do conteúdo, significado e alcance dos princípios constitucionais está condicionada às interpretações sistemáticas e teleológicas das normas, tendo em vista a interdependência existente entre elas.

Com efeito, em nota de rodapé, Marcelo Figueiredo oferece importante lição que merece transcrição. Afirma o autor:

“(...) não há como interpretar a Constituição aos ‘pedaços’; não resta a menor dúvida de que o princípio da moralidade se entrelaça com todos os demais princípios constitucionais, em especial com a legalidade, a igualdade, a publicidade, a impessoalidade, a fim de que o princípio do ‘Estado Democrático de Direito’ seja alcançado. Aliás, a grande dificuldade da doutrina reside no ‘encontro de um espaço jurídico específico da moralidade administrativa que já não esteja coberto pela impessoalidade e pela finalidade’ (Celso Bastos e Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil; v. 3, p. 39). Cremos que a dificuldade apontada exista muito mais no sentido ‘dogmático-conceitual’, do que propriamente na ‘inteligência’, no significado, do aludido princípio. Isto porque forçoso considerar que a falta de exatidão do conceito do ‘princípio da moralidade’ é apenas aparente. Em verdade, trata-se de um princípio aberto cuja dicção permite múltiplas interpretações (de sentido não unívoco). Ou, noutro giro, trata-se de um princípio a albergar múltiplas significações e condutas. Assim, v.g., sob as vestes do princípio da moralidade os doutrinadores identificam a ‘boa-fé’, ‘a lealdade’, a necessidade de ‘proporcionalidade’ da ação estatal, a ‘razoabilidade’, o ‘desvio de poder’, o ‘desvio de finalidade’. Vê-se, assim, que o princípio é rico em conteúdo e extensão, e por isso mesmo não pode ser aprisionado em um conceito rígido. Aliás, interpretar uma norma é interpretar todo o sistema. O exegeta comete erro grosseiro ao pretender isolar essa ou aquela norma do sistema”[106].

Assim, pode-se asseverar que a violação ao princípio da moralidade é causa de inconstitucionalidade da lei[107] ou do ato eivado de vício. Conforme elucida Marcelo Figueiredo é raro encontrar na jurisprudência pátria a declaração de inconstitucionalidade de um decreto baseada única e exclusivamente na violação ao princípio da moralidade. As decisões de nossos Tribunais sempre buscam fundamento na violação a diversos outros princípios como o da legalidade, proporcionalidade e devido processo legal. Tal fato ocorre pois a doutrina e jurisprudência ainda não firmaram

“os domínios jurídicos próprios do princípio da moralidade administrativa. Consciente ou inconscientemente, temos dificuldade de dissociar a violação da moralidade administrativa do princípio da legalidade. De fato, na maioria das vezes o ato tido por violador da moralidade administrativa é também ilegal, e o julgador busca reforço para a fundamentação da inconstitucionalidade no princípio da legalidade. Quer-nos parecer, contudo, que a violação ao princípio da moralidade é condição mais do que suficiente para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei ou da norma jurídica impugnada”[108].

Ressalte-se, contudo, por pertinente, que ainda que assim seja, não se pode afastar o caráter de autonomia de que dotado o princípio da moralidade administrativa, pois, conforme afirmado, o simples fato de não ser utilizado, ainda, como fundamento único de aplicação ou interpretação apenas se coaduna com o pós-positivismo hoje vigente, em nada influenciando na extensão ou existência do caráter normativo do referido princípio.

Juarez Freitas em seu livro “O controle dos atos administrativos” defende a autonomia do princípio da moralidade afirmando em linhas gerais que “como princípio autônomo e de valia tendente ao crescimento, colabora, ao mesmo tempo, para o reforço dos demais e para a separação da dicotomia rígida entre Direito e Ética (...)”[109].

Tais entendimentos demonstram, pois, que a alocação do princípio da moralidade como norma autônoma passa não só pela utilidade científica que tal posicionamento traz, permitindo que o referido princípio seja utilizado de maneira mais larga e abrangente (destacando-se seu uso como fundamento para propositura de ação popular), como também, pela premente necessidade de conferir-se força normativa plena aos comandos presentes na Constituição Federal, ápice de todo o ordenamento jurídico.

Por fim, não é demais frisar que, sob a ótica pós-positivista, ora vigente na filosofia do direito, nenhuma norma (princípio ou regra) poderá ser aplicada isoladamente em relação ao restante do ordenamento jurídico o que, de maneira alguma, retira-lhe o caráter de norma autônoma em relação às demais.

O que se constata, portanto, é que, a despeito de ter íntima relação e até mesmo caráter de sujeição especial em relação ao princípio da legalidade, o princípio da moralidade é norma constitucional autônoma e como tal deve ser interpretada e aplicada diante dos casos concretos.

Sobre a autora
Marina Centurion Dardani

Advogada/Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP - Cogeae

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25912. Acesso em: 21 nov. 2024.

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