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Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista

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Agenda 20/11/2013 às 06:14

2. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.1 Ética, Moral e Direito

A análise do princípio da moralidade passa pela necessária elucidação de alguns conceitos envolvidos com tal norma. Isso porque, enquanto parte do ordenamento jurídico, o princípio da moralidade administrativa pode levar o intérprete mais desavisado a confundir sua seara de previsão e aplicação com um âmbito de moral ou de ética sociais, o que seria deveras pernicioso para a congruência e unidade do ordenamento jurídico.

Assim sendo, o estudo do princípio da moralidade passa pela definição e distinção do próprio Direito em relação àquilo que se entende por Moral, por Ética e, por fim, por Moralidade Jurídica.

A definição do que seria Moral e do que seria Direito não consiste em tarefa das mais simples. Muitos estudiosos e operadores do Direito já se debruçaram sobre o tema no afã de empreender essa distinção entre os dois conceitos, tamanha sua importância prática, além da teórica.

A doutrina jurídica e a filosofia política, ao longo do tempo, vêm oferecendo definições para essas duas “ordens reguladoras da conduta do homem em sociedade[29].

O professor Marcelo Figueiredo, por exemplo, introduz seu livro “O Controle da Moralidade na Constituição” oferecendo um panorama sobre as relações entre Moral e Direito. Em nota de rodapé dá destaque às definições de Moral e de Direito, segundo os escólios de André Lalande e Eduardo García Maynez. Diz o autor:

“André Lalande oferece-nos a etimologia e os diversos significados de “moral” como adjetivo: a) que concerne quer aos costumes, quer às regras de conduta admitidas em uma época, em uma sociedade determinada; b) que concerne ao estudo filosófico do bem e do mal; c) oposto à lógica ou a intelectual; que concerne à ação e à consciência; d) oposto a material, físico; relativo ao espírito, e não ao corpo ou outros objetos materiais. Moral como substantivo: a) conjunto de fenômenos da vida mental, em oposição à vida do corpo; b) estado afetivo, nível mental; c) conjunto de regras de conduta admitidas em uma determinada época ou por um grupo de homens; d) conduta conforme à moral, realização de uma vida mais humana, uma justiça maior nas relações sociais (Vocabulaire Téchnique et Critique de la Philosophie – traduzi). Em relação ao Direito, fiquemos com a definição de Eduardo García Maynes: ‘Direito é uma ordem concreta, instituída pelo Homem para a realização de valores coletivos, cujas normas – integrantes de um sistema que regula a conduta de maneira bilateral, externa e coercível – são normalmente cumpridas pelos particulares e, em caso de inobservância, aplicadas ou impostas pelos órgãos do poder público. ’ (Filosofia del Derecho, p. 135 – traduzi)”[30].

Segundo os ensinamentos de Miguel Reale, Direito e Moral distinguem-se basicamente por ser o Direito uma ordenação heterônima, coercível e bilateral atributiva das relações de conveniência, enquanto Moral seria uma ordenação autônoma, incoercível e unilateral não-atributiva.

Com a premissa de que Direito e Moral não se equivalem, mas se tangenciam[31], vale trabalharmos os diferentes conceitos a partir de importante contribuição para o presente debate que pode ser retirada do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnaro.

Entretanto, antes da verificação de quais são as definições propostas pelo referido autor, há que se ressaltar importante contribuição oferecida por Hamilton Rangel Júnior que afirma que

“A vida em sociedade pode ser analisada sob dois prismas: o das subjetividades e o das objetividades. Ao primeiro correspondem todos os comportamentos dos indivíduos enquanto voltados às peculiaridades internas ao próprio sujeito, suas preferências, gostos, tendências e demais idiossincrasias. Já, objetividades correspondem a todos os comportamentos dos indivíduos quando voltados às convenções da coletividade, externas ao sujeito; todos os padrões que norteiam, não as peculiaridades de cada indivíduo, mas o contato entre todos eles”[32].

Assim, a boa convivência na sociedade dependerá, segundo os ensinamentos de Hamilton Júnior, do discernimento do e pelo indivíduo de onde se inicia e termina as esferas da subjetividade e da objetividade. Aqui, percebe-se mais uma salutar importância da distinção entre Moral e Direito que se tenta empreender: a convivência harmônica dos indivíduos em sociedade através da exata distinção entre aquilo que pode ser considerado como imposição universal e obrigatória e aquilo que, por outro lado, pode ser considerado uma imposição de ordem parcial na sociedade (cada indivíduo ou grupo de indivíduos, nesse caso, terá uma diferente concepção acerca das normas morais que devem ser seguidas).

Para Nicola Abbagnano, Ética é a ciência que estuda a conduta humana, possuindo diversas concepções a:

“1ª a que a considera como ciência do fim a que a conduta dos homens se deve dirigir e dos meios para atingir tal fim; e deduz tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; 2ª a que a considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar a mesma conduta”[33].

Assim, a Ética possuiria dois significados, a saber: a ciência que estuda a conduta-fim e a ciência que estuda a conduta dos meios[34]; tanto o agir e sua forma, quanto o resultado obtido e o alcance dos fins colimados.

Relacionando os conceitos oferecidos por Hamilton Júnior e por Abbagnano, destarte, pode-se afirmar que o estudo da relação respeitosa entre a subjetividade e objetividade constitui o próprio estudo da Ética.

Ainda segundo Abbagnano, a Moral é “o objeto da ética, a conduta enquanto dirigida ou disciplinada por normas (...)”[35]. Assim, é a Moral que dita quais as regras costumeiras que devem ser seguidas a fim de que a subjetividade não interfira arbitrariamente na objetividade e vice-versa.

Por fim, Abbagnano define Moralidade como “o caráter próprio de tudo aquilo que se conforma às normas morais” [36]. Assim, Moralidade é

“o conjunto de instrumentos viabilizadores da eliminação de arbitrariedades entre a subjetividade e a objetividade.

Enquanto a ética conceitua e a moral regula, a moralidade instrumentaliza a convivência autêntica, não-arbitrária, não-constrangedora, entre o âmbito das subjetividades e o das objetividades, em sociedade”[37].

Outra importante definição do que é Moral é oferecida por Emerson Garcia para quem a mesma é

“concebida como o conjunto de valores comuns entre os membros da coletividade em determinada época, ou, sob uma ótica restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do individuo, estabelecendo seus deveres para consigo e sua própria consciência sobre o bem e o mal. No primeiro caso, conforme a distinção realizada pelo filosofo Bérgson, tem-se o que se convencionou chamar de moral fechada e, no segundo, a moral aberta”[38].

Como se pode perceber, portanto, o tema ora em comento é complexo e árido, mas, observando-se as doutrinas até agora colacionadas, pode-se fornecer uma distinção teórica básica e minimamente operacional sobre os conceitos de Ética, Moral, Moralidade e Direito.

Assim sendo, Ética é um conceito amplo, que alberga em si a própria Moral e que tem como característica o entendimento das condutas humanas dirigidas a uma finalidade e o resultado dessas condutas pelo prisma da Moral.

A Moral, por sua vez, é o objeto da Ética, constituída pelas normas que dirigem as ações humanas para que a convivência em sociedade possa se dar de forma harmoniosa, sem que as diversas subjetividades colidam e\ou prejudiquem os âmbitos objetivos da convivência.

Moralidade é adjetivo ou qualificação daquilo que se conforma às normas da Moral, ou seja, para existir deve haver prévio juízo acerca do cumprimento, ou não, das normas morais para, somente então, poder-se concluir pela existência, ou não, de Moralidade. Ainda, a Moralidade confunde-se com os instrumentos existentes e necessários para a adequação das condutas à Moral, ou seja, dos meios utilizáveis para que a relação entre subjetividade e objetividade siga a harmonia desejável.

O Direito, de outro lado, em uma definição livre, refoge às normas de cunho moral e é constituído por normas de caráter cogente que visam à disciplina da vida humana em sociedade através da imposição de condutas ativas ou passivas dos seres humanos e cuja observância pode ser imposta pela utilização da força do aparato estatal voltado para tanto.

Nesse contexto, quer nos parecer claro que Moralidade Administrativa, enquanto conceito positivado pelo ordenamento jurídico na condição de princípio jurídico constitucional, corresponde a algo distinto da Moralidade, conforme melhor elucidado nos tópicos seguintes.

2.2 Princípios constitucionais da Administração Pública

Dentre a enorme gama de princípios contida na Constituição Federal, alguns podem ser classificados conforme a particularidade do âmbito de sua incidência, ou seja, podem ser tomados com base na matéria específica que visam normatizar. Assim, podem-se reconhecer, por exemplo, os princípios da ordem tributária (tais quais o da anterioridade e da proibição da bitributação, por exemplo), os princípios do processo legislativo (tais quais o da publicidade e o do devido processo legal, por exemplo) e, também, os princípios da Administração Pública, objeto específico de exame deste tópico do trabalho.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, “caput“, dá destaque aos princípios voltados diretamente à Administração Pública, direta ou indireta[39]. São eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ao longo do texto constitucional, entretanto, é possível encontrar diversos outros princípios que, embora não constem do rol do art. 37, “caput”, também são aplicáveis à Administração Pública.

Diversos doutrinadores[40] classificaram os princípios constitucionais voltados para a Administração Pública, dentre os quais citaremos Celso Antônio Bandeira de Mello.

Celso Antônio Bandeira de Mello em capítulo próprio destinado aos princípios constitucionais do Direito Administrativo brasileiro arrola os princípios expressos e implícitos que regem a Administração Pública. Com base em seus escólios, apresentamos os seguintes princípios como fundamentais para a Administração Pública:

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é, em verdade, não apenas princípio constitucional, mas verdadeiro princípio geral de Direito[41] inerente a qualquer sociedade, sendo pressuposto lógico do convívio social. Em função dele, a Administração Pública tem a possibilidade de constituir terceiros em obrigações por meio de atos unilaterais dotados de imperatividade, exigibilidade e até autoexecutoriedade, além da possibilidade de revogar seus próprios atos inconvenientes ou inoportunos e o dever de anulá-los caso sejam inválidos (princípio da autotutela dos atos administrativos);

O princípio da legalidade, específico do Estado de Direito e fruto da submissão do Estado à lei, possui como raiz a ideia de soberania popular, já que segundo ele a Administração apenas pode fazer aquilo que a lei antecipadamente permita. Com efeito, é um princípio que exalta a cidadania, impedindo que os agentes públicos, no desempenho de função[42], ajam de forma autoritária, beneficiando ou prejudicando administrados ou a própria Administração. Está previsto nos arts. 5º, II, 37 caput, e 84, IV, da Constituição Federal[43]. A previsão do art. 5º, II, da CF dirige-se aos particulares traduzindo a ideia de que aos particulares é permitido tudo o que não esteja proibido por lei, já a Administração Pública, diante do art. 37, caput, da CF pode fazer apenas aquilo que a lei autorize.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da legalidade abarca como sub-princípios, o princípio da finalidade, o da razoabilidade e o da proporcionalidade. Deveras, na aplicação do princípio da legalidade, a Administração Pública deve buscar não apenas a obediência à letra da lei, mas também o atendimento da finalidade normativa, sob pena de ter seus atos incursos no vício de desvio de poder. De igual modo, a aplicação da lei deve importar em condutas razoáveis e equilibradas da Administração Pública, tomadas na extensão e na intensidade necessárias ao cumprimento do interesse público firmado em lei.

Ressaltamos, a propósito, que a compreensão dos princípios da finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade como inerentes ao próprio princípio da legalidade enseja reflexos práticos relevantes, sobretudo no tocante à ampliação do controle judicial de atos administrativos sem que seja possível cogitar de ingerência do Poder Judiciário no reexame do mérito administrativo (que seria indevida à luz da cláusula constitucional de separação de poderes) enquanto juízo de oportunidade e conveniência tomado exclusivamente no exercício de função administrativa de competências discricionárias.

Já o princípio da motivação, por sua vez, implica no dever da Administração Pública de motivar seus atos, explicitando os fundamentos de fato e de direito utilizados, bem como a correlação lógica entre e situação existente e a providência tomada, a fim de se atingir o interesse público. Em regra, a motivação do ato deve ser prévia ou contemporânea à expedição do ato. Em casos de atos vinculados a motivação é implícita, bastando que a Administração, para dar cumprimento ao princípio da motivação, explicite quais foram as razões de fato e de direito que utilizou para expedir o ato. Seu fundamento constitucional encontra-se implícito nos art. 1º, II, e 5º, XXXV.

Com efeito, é avessa à própria ideia de Estado de Direito a existência de qualquer espécie de “surpresa” para o cidadão em relação aos atos estatais. Exigem-no a segurança jurídica e a certeza do Direito. Dessa forma, a motivação dos atos do Estado é corolário imediato de qualquer relação estabelecida entre os detentores do Poder Político, o povo, e seus representantes e gestores da coisa pública, donde se percebe-se a imprescindível relevância desse princípio para a Administração Pública.

Quanto ao princípio da impessoalidade, trata-se de norma voltada à obtenção de condutas impessoais da Administração Pública, ou seja, exige-se da Administração que ela aja em relação aos administrados sem favoritismos e sem perseguições. Encontra fundamento nos arts. 5º, caput, e 37, caput, da Constituição Federal. Aplicações concretas deste princípio podem ser encontradas nos arts. 37, II, 37, XXI, e 175, da Constituição Federal.

Esse princípio particulariza, ademais, o princípio da isonomia, tão caro ao Constituinte pátrio. Com efeito, previsto no art. 5º, “caput” e inciso I, da Constituição Federal, o princípio da igualdade proíbe o tratamento desigual, ou em medida desigual, entre pessoas que são consideradas iguais e vice-versa.

Como se percebe, o dever de impessoalidade do Administrador Público resulta no respeito à isonomia entre os cidadãos, sendo norma, portanto, de salutar observância e aplicação práticas.

Aliado aos princípios da motivação e da impessoalidade, o princípio da publicidade determina a busca da transparência dos atos praticados perante a própria Administração e perante os administrados. Encontra-se previsto nos arts. 37, “caput”, 5º, XXXIII e XXXIV, “b”, da Constituição Federal, e presta-se a uma melhor adequação e controle dos cidadãos em relação à Administração.

Os princípios do devido processo legal e da ampla defesa encontram fundamento nos art. 5º, LIV, LV, da Constituição Federal, e constituem-se, sucintamente, em verdadeiras liberdades públicas, voltadas à limitação da atividade estatal quanto à observância de procedimentos previamente estabelecidos para sua atuação (em âmbito formal) e, ainda, à conformação de toda a atividade estatal aos ditames do ordenamento jurídico considerado como um todo (âmbito dito material ou substancial).

Existentes em seu início de formulação desde o século XIII (Magna Carta, de João Sem-Terra, 1215), tais normas são hoje consideradas imprescindíveis para a existência de qualquer Estado de Direito ocidental.

Não podem, entretanto, ser utilizados como empecilhos às medidas estatais que eventualmente se façam necessárias logo após circunstâncias fáticas que demandem atuação imediata, ou seja, não podem impedir a adoção de imediata providência de extrema urgência.[44]

Ainda segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, tem-se que o princípio da moralidade implicaria aos agentes da Administração e à própria Administração o dever de agir conforme princípios éticos. Encontra previsão nos arts. 37, caput e § 4º, 5º, LXXIII, art. 85, V, da Constituição Federal.

Nessa visão, o princípio da moralidade teria o condão de impor ao Administrador o dever de seguir comportamentos de lealdade e boa-fé, ambos positivados no ordenamento jurídico brasileiro.

Ainda, pelo princípio do controle judicial dos atos administrativos,  previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, todos os atos da Administração são passíveis de apreciação pela autoridade competente do Poder Judiciário.

Conforme a literalidade do dispositivo constitucional em questão nenhuma lesão ou ameaça de lesão será excluída da apreciação do Poder Judiciário, o que consubstancia em possibilidade de controle dos atos da Administração por órgão devidamente imbuído da função jurisdicional do Estado Trata-se, no Brasil, de cláusula pétrea (não sendo passível, pois, de mitigação em seu conteúdo), por representar parte indissociável da separação harmônica dos Poderes estatais (art. 60, § 4º, III, cc. art. 2º, ambos da Constituição Federal).

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Dentro dessa esteira de raciocínio, importante e imprescindível, também, o princípio da responsabilidade o Estado por atos administrativos, segundo o qual a responsabilidade do Estado por atos comissivos é objetiva (logo, independentemente da existência de culpa) e por atos omissivos é subjetiva. Está previsto expressamente no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

Enorme é a garantia constitucional conferida ao administrado por meio desta norma, uma vez que, tratando-se de um Estado de Direito, no qual o próprio Estado submete-se ao ordenamento jurídico vigente em seu seio, entendeu a construção doutrinária sobre o tema que, havendo dano causado por representante do Estado, há em relação a ele a correlata possibilidade de responsabilização do mesmo, protegendo-se as esferas de liberdade do administrado.

O princípio da eficiência, ainda, conquanto criticado e até mesmo eivado de ser mera recomendação do Constituinte (pela fluidez de seu significado), poderia, enquanto norma que determina a obtenção do melhor resultado por meio do melhor meio utilizável (norma de otimização da atividade administrativa), por exemplo, desempenhar importante papel no controle dos atos da Administração.

Sua utilização no texto constitucional pátrio, partindo do dever de efetividade máxima das normas da Carta Magna, pode até mesmo estender-se para servir de embasamento para a responsabilização do Estado por omissão inconstitucional, por exemplo.

Por fim, o princípio da segurança jurídica, que pode até mesmo ser considerado como implícito ou da essência de um Estado Democrático de Direito, é norma que, por sua estrutura, permeia todos os demais âmbitos de aplicação e interpretação do Direito. Por esse princípio a Administração Pública não pode modificar seu posicionamento acerca de matéria para a qual firmou determinadas orientações sem prévia e pública notícia quando sancionar, agravar a situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões, por exemplo.

Além disso, implica em reforço de princípios como os da motivação dos atos administrativos e da publicidade dos mesmos, sendo dever de evitar “surpresas” jurídicas aos administrados.

Dessa forma, percebe-se que o conjunto de princípios identificado no texto constitucional que tem como principal escopo normatizar a atuação da Administração Pública em geral é reconhecido como o dos princípios constitucionais da administração, sendo compreendido dentro deles o princípio da moralidade administrativa, objeto do presente estudo.

2.3 Princípio da Moralidade Administrativa

Situado dentre os princípios constitucionais da Administração Pública, o princípio da Moralidade Administrativa não pode ser considerado como novidade no ordenamento jurídico e, muito menos, na doutrina.

Vale mencionar que, há tempos, o escritor francês Maurice Hauriou[45] formulou o conceito de moralidade administrativa a fim de fundamentar o controle, pelo Conselho de Estado da França, dos atos discricionários.

Baseado em monografia do jurista português Antônio José Brandão, Silvério Carvalho Nunes destaca:

“Hauriou desenvolveu tese audaciosa e avançada para a época segundo a qual a legalidade dos atos administrativos é fiscalizada pelo recurso baseado na violação da lei, mas a conformidade desses atos aos princípios basilares da ‘boa administração’, determinante necessária de qualquer decisão, é fiscalizada por outro recurso, fundado no desvio de poder, cujo campo de aplicação pertence ao recurso denominado de ‘moralidade administrativa’”[46].

O desenvolvimento da tese de Hauriou decorreu da percepção de que poderia haver divergência entre a intenção do agente público na prática do ato administrativo e os respectivos conteúdos e finalidades desse ato. Notou que comumente ocorria abuso na aplicação da lei e, principalmente, nos atos de competência discricionária em que o agente produtor do ato escolhe uma das opções veiculadas por parâmetros legais, segundo critérios de conveniência e oportunidade.

O conceito de Hauriou teve, portanto, fundamental importância na possibilidade de controle não só da forma ou legalidade externa do ato, mas também do conteúdo do mesmo. Dessa forma, percebe-se que o estudo inicialmente empreendido acerca do princípio da moralidade administrativa teve como principal escopo a ampliação da possibilidade de verificação da legalidade e da pertinência dos atos administrativos, sendo essa sua primeira função reconhecida doutrinariamente, portanto.

Tal preocupação com o controle dos atos administrativos e a ampliação de seus instrumentos era comum aos estudiosos da época de Hauriou e, bem por isso, sua tese teve aceitação rápida e passou a ser alvo de diversas análises doutrinárias a partir de então.

Seguindo as lições de José Brandão, Silvério Carvalho Nunes destaca que para Hauriou moralidade administrativa era “um conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração”[47].

Assim, esse conceito de moralidade administrativa foi desenvolvido posteriormente por Henri Welter em monografia de 1930 denominada Le Contrôle de la Moralité Administrative e por Lacharrière.

Ao comentar acerca da doutrina francesa da moralidade administrativa, Márcio Cammarosano destaca ensinamento de Hely Lopes Meirelles, abaixo transcrito:

“Desenvolvendo o mesmo conceito, em estudo posterior, Welter insiste em que a moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum; ela é composta por regras de boa administração, ou seja: pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o Bem e o Mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa”[48].

Para Welter a moralidade administrativa, portanto, não se confunde com a moral comum. Ela é espécie do gênero moralidade institucional. Assim, tanto para Hauriou quanto para Welter o controle da moralidade administrativa é coincidente com o princípio da legalidade em sentido amplo, pois, para que aquela seja respeitada, este não poderia ser violado.

A distinção, aqui, entre o âmbito da Moral e do Direito fazia-se salutar para o entendimento do princípio da moralidade administrativa, pois se reconhecia, nesse, que as normas jurídicas positivadas traziam dentro de si uma carga de moral que era intrínseca ao Direito e que deveria ser respeitada, principalmente no que tange à aplicação das normas jurídicas, porém não se confundia, necessariamente, com a Moral comum da sociedade.

Partindo de tais pressupostos, o assunto também foi objeto de estudos de Lacharrière em monografia de 1938 denominada Le Contrôle Hierarchique de l´Administration dans la Forme Jurisdicionel. Para ele, a moral administrativa

“é o conjunto de regras que, para disciplinar o exercício do poder discricionário da Administração, o superior hierárquico impõe aos seus subordinados. Semelhantes regras não se confundem também com as regras da moral comum. São regras da boa administração”[49].

O pensamento francês, portanto, como se pode perceber, primava por reconhecer que a moralidade administrativa, presente fora do âmbito da Moral comum, consubstanciava-se em normas jurídicas, das quais exsurgiam limites para a atuação do administrador segundo entendimento de “boa administração”, “eficiência administrativa”, “disciplina hierárquica” entre outros.

Tal paradigma de entendimento, contudo, reconhecia na moral administrativa o conteúdo de normas programáticas apenas, ou seja, não vinculantes imediatamente e nem mesmo autônomas, pois representavam ilações acerca de outras normas jurídicas. Essa postura dogmática do Direito era acarretada pelo entendimento vigente, segundo o qual apenas o texto da lei era fonte primária de Direito, não se permitindo que valores, por exemplo, pudessem se sobrepor à literalidade do quanto disposto na lei.

Ao concluir sua explanação acerca do pensamento francês, Silvério Carvalho Nunes inclusive destaca as alterações pelas quais o entendimento até então vigente passou na doutrina jurídica, reconhecendo, hoje, força normativa e obrigatória aos princípios jurídicos e, particularmente, ao da moralidade administrativa. Dizia ele que

“a moralidade administrativa, hoje, é princípio constitucional; o Direito já ingressou na era da pós-modernidade; a natureza programática de princípio jurídico é coisa de antanho. Ele é norma dotada de força obrigatória. Finalmente, o intérprete goza de liberdade maior para o exame do instituto, o que não ocorreria na época nebulosa de Hauriou, quando a hermenêutica tradicional impunha se considerasse na interpretação ‘a lei antes de tudo’, a par do abuso das abstrações lógicas, expresso no dogmatismo jurídico”[50].

No Brasil, inúmeros estudiosos têm se debruçado sobre o estudo do princípio da moralidade, seu alcance, sua aplicação, contudo, ponto comum a que chegam os estudiosos contemporâneos é que o reconhecimento da juridicidade ao princípio da moralidade é questão pacífica após o advento da Constituição de 1988.

Entretanto, antes da Constituição de 1988, comumente denominada Constituição-cidadã, nem todos os administradores brasileiros reconheciam a índole jurídica da moralidade administrativa[51]. Havia certa resistência dos doutrinadores acerca da possibilidade de conceituação do princípio, precipuamente porque se poderia correr o risco de trazer ao Direito conceitos que lhe eram estranhos, oriundos da Moral comum.

Inexistindo previsão expressa nos textos constitucionais anteriores, reconhecer-se o princípio da moralidade administrativa como princípio implícito era considerada atitude perniciosa para a harmonia do sistema, mesmo porque nenhuma definição lograva afastar o referido princípio das normas de Moral comum.

Hodiernamente, contudo, inúmeras são as aplicações do princípio da moralidade, destacando-se a de poder ser fundamento de ação popular para anulação de ato lesivo à moralidade administrativa. A despeito da extrema importância do assunto, após a Constituição de 1988 e diante do pós-positivismo, antes de se proceder à enumeração das aplicações deste princípio, faz-se necessário trazer a baila algumas definições oferecidas pela doutrina do que seria o princípio da moralidade.

A maior discussão ainda existente acerca do presente tema orbita em torno da moral comum integrar, ou não, o conceito de moralidade administrativa. Muito há se discutido se o princípio da moralidade se refere a normas morais de comportamento dos indivíduos na sociedade e sobre como tais normas influenciariam o universo jurídico para sua aplicação efetiva.

O que se defenderá no presente estudo é que o princípio constitucional da moralidade não pode ter, a priori, seu conteúdo retirado da moral comum.

Entretanto, antes de aprofundarmos o estudo acerca da dúvida existente quanto a moral comum ser, ou não ser, a priori, a base do princípio constitucional da moralidade, convém destacar algumas das definições de princípio da moralidade sugeridas pela doutrina atual.

2.4 Definições doutrinárias do Princípio da Moralidade

2.4.1 Breves considerações introdutórias

Antes de especificar algumas definições ofertadas pela doutrina, cumpre salientar que o conceito de moralidade constitui conceito de experiência ou valor, denominado conceito jurídico indeterminado.

Essa indeterminação, entretanto, não é impeditiva da sua compreensão e nem impede sua aplicação, já que segundo Celso Antônio Bandeira de Mello os conceitos indeterminados, plurissignificativos possuem uma densidade mínima. Dessa forma, cabe ao jurista, utilizando os métodos de interpretação, definir quais seriam os conteúdos mínimos possíveis para o entendimento de tais conceitos.

Dessarte, importante salientar que, ainda, que se trate de um conceito jurídico indeterminado, seu entendimento passa necessariamente pela concepção de Direito enquanto sistema uno e coeso, ou seja, só é possível perscrutar o significado real de um conceito jurídico através da análise de todo o ordenamento de Direito, em atividade denominada, com pertinência, interpretação sistemática[52].

Outro expoente jurídico hodierno, Humberto Ávila entende que a Constituição de 1988 preocupou-se de diversas maneiras com os padrões de conduta. Isso porque, em primeiro lugar, estabeleceu valores fundamentais que devem ser atendidos pelo Administrador Público no exercício de sua atividade administrativa. Esses valores fundamentais, constantes dos artigos 1º, 3º, 5º, caput e XXXVI, da Constituição Federal devem reger os atos dos Administradores que, além de ter de respeitá-los, não podem restringi-los sem justificação razoável.

Tal constatação decorre do caráter próprio das normas constitucionais, que, como ápice hierárquico do ordenamento jurídico, demandam, para sua interpretação, cuidados especiais do exegeta, tais como a preocupação com a máxima efetividade possível das normas constitucionais e a impossibilidade de sua restrição para prejudicar direitos fundamentais, dentre outras.

Em segundo lugar, primou pela atuação administrativa impessoal e não subjetiva (artigos 1º, 2º, 5º e 37, da CF), isto é, a Constituição instituiu que a administração não pode agir sem amparo jurídico, devendo fazer apenas aquilo que a lei permite, não podendo atuar de forma arbitrária, pois estaria desconforme com os ideais de um Estado Democrático de Direito

A própria ideia de Estado de Direito, por si só, positivada pela Constituição Federal de 1988, já encerra em si o pressuposto de que o Estado subordina-se às normas jurídicas por ele positivadas e, com mais razão ainda, às normas constitucionais que o regem.

Em terceiro lugar, a Constituição de 1988 criou mecanismos de defesa dos direitos do cidadão a fim de permitir a anulação de atos administrativos praticados em desconformidade com o ordenamento. Estão dispostos nos arts. 5º, XXXV, LVI, LXIX e LXXIII e 37, § 4º, da Constituição Federal.

Tal aspecto é deveras relevante, pois constitui verdadeira “arma” em prol da congruência do sistema: se os cidadãos, administrados, detém todo o Poder do Estado (art. 1º, parágrafo único, CF), a Administração Pública é apenas voltada para a realização dos seus interesses e, logo, deve haver meios jurídicos disponíveis para que os próprios cidadãos controlem sua atuação institucional.

Em quarto lugar, por fim, a Constituição de 1988 criou requisitos para o ingresso na função pública (arts. 12, 14, 37, II, XVI, XXI e § 1º, 73, 101, 104, 119 e 120, CF) e, além disso, instituiu mecanismos de controle externo, porém institucional, da atividade desenvolvida pela Administração Pública (art. 70, CF).

Assim, para Humberto Ávila, o cotejamento de todos esses aspectos inovadores da Constituição de 1988 leva à constatação de que violam o princípio da moralidade “a conduta adotada sem parâmetros objetivos e baseada na vontade individual do agente e o ato praticado sem a consideração da expectativa criada pela Administração”[53].

Para o autor, o princípio constitucional da moralidade, tal como qualquer outro princípio, é norma finalística, que exige a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado através da delimitação de comportamentos necessários à realização dos fins albergados constitucionalmente. Uma vez identificadas tais conjunturas, a norma deve ser aplicada ao seu máximo, a fim de, na maior medida possível, serem alcançados os estados ideais por ela determinados.

Logo, o princípio da moralidade exige a adoção de condutas sérias, motivadas, leais, sinceras, mesmo que não previstas na lei, todas passíveis de serem controladas e exigidas através dos meios previstos na própria Constituição Federal.

2.4.2 Definição de Celso Antônio Bandeira de Mello

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da moralidade administrativa representa o dever de atuação da Administração Pública consoante valores éticos, a fim de não praticar qualquer ilicitude apta a invalidar o ato produzido. Os cânones da lealdade e da boa-fé estão abrangidos em sua definição de princípio de moralidade. Assim, vejamos:

“segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”[54].

Pelo exposto, vislumbramos que o jurista faz a correlação do princípio da moralidade administrativa com os valores de lealdade e boa-fé positivados pelo sistema jurídico, mas sem propriamente delimitar quais são todos os valores éticos abarcados nesse conceito.

2.4.3 Definição de Weida Zancaner

Weida Zancaner em artigo intitulado “Razoabilidade e Moralidade: Princípios Concretizadores do Perfil Constitucional do Estado Social e Democrático de Direito” afirma que

“o administrador afrontará o princípio da moralidade todas as vezes que agir visando interesses pessoais, com o fito de tirar proveito para si ou amigos, ou quando editar atos maliciosos ou desleais, ou ainda, atos caprichosos, atos exarados com o intuito de perseguir inimigos ou desafetos políticos, quando afrontar a probidade administrativa, quando agir com má-fé ou de maneira desleal”[55].

Para a autora, os atos contrários ao princípio da moralidade são aqueles produzidos em desconformidade com a finalidade do ato, ou seja, aqueles atos praticados com desvio de poder em que o agente, valendo-se de sua competência para exarar determinado ato administrativo, o faz para atingir fim diverso daquele para o qual o ato teoricamente teria de ser produzido. Weida Zancaner entende, ainda, que o princípio da moralidade é autônomo já que a sua redução ao princípio da legalidade dificulta o alcance do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, considera essa linha de raciocínio que, uma vez reconhecido o advento do pós-positivismo, poder-se-ia muito bem conferir autonomia ao princípio da moralidade para atuar junto aos motivos determinantes da prática do ato administrativo, uma vez que nenhuma norma, sob a nova concepção, pode ser considerada isoladamente quando de sua aplicação, o que não lhe retira o caráter de autonomia diante das demais.

2.4.4 Definição de Emerson Garcia

Posição semelhante quanto à autonomia do princípio da moralidade, por exemplo, é adotada por Emerson Garcia:

“O princípio da legalidade exige adequação do ato à lei, enquanto o da moralidade torna obrigatório que o móvel do agente e o objeto pretendido estejam em harmonia com o dever de bem administrar. Ainda que os contornos do ato estejam superpostos à lei, será ele inválido se resultar de caprichos pessoais do administrador, afastando-se do dever de bem administrar e da consecução do bem comum”[56].

Para o autor, o princípio da moralidade atua como um mecanismo aglutinador, condensando os princípios afetos a atividade estatal em standards. Para ele, a inadequação dos motivos e da finalidade do ato com a intenção do agente é suficiente para a identificação de vícios contidos em atos de competência discricionária e, até mesmo, para a identificação de desvio de poder. Portanto, o ato ferirá a moralidade administrativa quando fundado em motivo inexistente, incompatível, inadequado, insuficiente e desproporcional ou quando o seu objeto for impossível, desconforme ou ineficiente.

A autonomia do princípio da moralidade, assim, seria identificada no embasamento que a norma teria para melhor identificar, e proibir, punir, o desvio de poder, atuando, assim, em uma análise da intenção do administrador ao praticar o ato.

2.4.5 Definição de Hamilton Rangel Junior

Para Hamilton Rangel Júnior:

“moralidade institucional é o conjunto de mecanismos que a Constituição oferece, para evitar que a subjetividade, individual, e a objetividade, coletiva, sejam arbitrárias, uma em relação à outra, no âmbito das coletividades organizacionalmente estruturadas para o desempenho legítimo de determinadas funções, na ordem social e política”[57].

Conforme este jurista, portanto, o conceito de moralidade institucional, que não abarcaria apenas a moralidade administrativa, ou aquela referente apenas à função administrativa, seria de conjunto de disposições de cunho constitucional que prevêem as formas de equacionar a convivência, no seio da sociedade, dos subjetivismos (tradução de interesses mais individualizados), com a objetividade (identificada, aqui, com o regramento voltada ao interesse público primário).

Por tal entendimento, seria constituinte da moral institucional cada diverso conjunto de normas constitucionais que regulasse os diversos âmbitos da moral individual e social (ou seja, entre relação entre indivíduos, ou entre entes estatais, ou entre grupos ou entre uns e outros, por exemplo). Tal constatação faria com que se devesse incluir a moralidade institucional como princípio constitucional e não apenas a moralidade administrativa (porque essa última abarcaria apenas um âmbito da norma).

2.4.6 Definição de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho

Ainda, importante magistério é efetuado por Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, no livro “O Controle da Moralidade Administrativa”. O autor, a semelhança de outros, entende que o princípio da moralidade administrativa está associado ao conceito de ‘bom administrador, e em função disso relaciona-se com a moral comum. Assim, para bem administrar a coisa pública, o Administrador precisa agir dentro dos preceitos vigentes, devendo também respeitar a moral comum.

Interessante realçarmos que o dever de boa administração, objeto de precioso trabalho monográfico desenvolvido por Guido Falzone, é citado por Celso Antônio Bandeira de Mello como princípio do direito italiano norteador da introdução do princípio da eficiência em nosso ordenamento através da Emenda Constitucional nº. 19[58].

2.4.7 Comentários

A despeito da vertente que será defendida no presente estudo, há que se ressaltar que as posições doutrinárias que associam o princípio constitucional da moralidade a valores que o Administrador Público deve adotar no exercício de sua competência não estão equivocadas[59], entretanto, a tese aqui defendida é a de que o princípio da moralidade se refere à moral juridicizada.

Com efeito, ao se atribuir ao princípio da moralidade uma carga valorativa advinda não do Direito, mas do âmbito estrito da Moral comum, poder-se-ia permitir que a justificativa de sua prática fosse relegada ao âmbito subjetivo, impedindo, assim, que a referida norma pudesse servir efetivamente para controle da atividade administrativa, sobretudo à luz dos princípios da isonomia e da segurança jurídica.

Assim, pretende-se distinguir da tese até aqui apresentada uma que possa compreender o princípio da moralidade nos exatos limites de sua previsão no sistema jurídico, ou seja, enquanto parte integrante e indissociável do ordenamento jurídico, possuindo, como tal, carga valorativa advinda do próprio sistema de Direito positivado e não de algo externo e estranho a ele.

Para tanto, há que se aprofundar o estudo acerca da dúvida existente quanto a moral comum ser, ou não ser, a priori, a base do princípio constitucional da moralidade.

Muito há se discutido se o princípio da moralidade se refere a normas morais de comportamento dos indivíduos na sociedade e a maneira como tal princípio poderia promover a interação entre essas normas morais e as jurídicas.

Conforme se denota da análise da própria sociedade contemporânea brasileira, o que é moral para determinado indivíduo pode não ser moral, ou até mesmo pode ser amoral para outro indivíduo. Significa dizer que os padrões morais da atualidade encontram-se difusos na sociedade, sofrendo variações de indivíduo para indivíduo, e de grupo para grupo.

Desta forma, a fim de se evitar o subjetivismo trazido pelas inúmeras possibilidades do que cada indivíduo considera moral ou não, é que se tentará entender o princípio da moralidade dentro do próprio ordenamento jurídico, ou mais especificamente, dentro do sistema constitucional.

Isto porque a “moral é noção de natureza universal, variando em conformidade com o tempo, o local e os mentores de sua concepção, terminando por condensar os valores subjacentes a determinado grupamento.”[60]

Dessa forma, não se poderia trazer para o Direito conceito da Moral comum, pois não se teria, aí, base confiável de interpretação que pudesse levar à aplicabilidade do conceito, haja vista a já salientada maleabilidade da moral conforme o indivíduo, o grupo, o local a que pertença.

Com efeito, da mesma maneira que não se pode afirmar que o princípio da moralidade se refere à moral comum, não se pode afirmar que ele se refere a um ideal de justiça ou a uma justiça absoluta, pois dessa forma, também não se estaria conferindo ao referido princípio um substrato adequado e minimamente objetivo para que se pudesse dele extrair um conceito juridicamente aplicável.

O princípio da moralidade, tal como defendido no presente trabalho, se refere à moral jurídica, ou seja, ao único padrão de moral que se pode aferir: aquele presente nas próprias normas de Direito positivadas, principalmente as normas constitucionais, sabidamente mais dotadas de carga valorativa, advinda diretamente do seio social após manifestação do Poder Constituinte Originário.

Nas palavras do professor Márcio Cammarosano

“O que se nos afigura equivocado é supor que o princípio da moralidade administrativa nos remete a uma ordem normativa superior, ou paralela, suplementar ou subsidiária à ordem jurídica posta; a uma ordem que ‘reflete ou condensa uma moral extraída do conteúdo da ética socialmente afirmada’, ou que se possa identificar com ideais de uma justiça absoluta; a uma ordem que permita superar, enfim, a distinção entre Direito e Moral.

(...) o princípio da moralidade administrativa não está referido à moral comum, mas ao próprio Direito, que consagra valores que recolhe de outras ordens normativas do comportamento humano, inclusive de ordens morais”[61].

Com efeito, os valores morais são fluidos e encontram-se difusos na sociedade, não podendo ser invocados a não ser que estejam transfundidos em alguma lei ou ato normativo escrito, a fim de que a interpretação siga a proporcionalidade e as demais regras interpretativas desenvolvidas ao longo da história evolutiva do pensamento jurídico.

Reconhecendo-se a presença da moral dentro das normas jurídicas positivadas, destarte, é possível aplicar a esses valores toda a gama de instrumentos exegéticos que permitem ao intérprete e ao aplicador do Direito a delimitação exata do objeto normativo e a extensão exata de sua aplicação.

Assim, é de suma importância que as regras morais aplicáveis à Administração Pública sejam aquelas juridicizadas, a fim de que o aplicador do Direito se valha do próprio ordenamento para valorar a questão concreta, não utilizando padrões morais difusos na sociedade ou, até mesmo, os seus próprios padrões morais na apreciação do caso concreto.

Vale ressaltar, neste ponto, o magistério de Lúcia Valle Figueiredo:

“Consoante entendemos, a discricionariedade consiste na competência-dever de o administrador, no caso concreto, após a interpretação, valorar, dentro do critério de razoabilidade e afastado de seus próprios “standards” ou ideologias – portanto, dentro de critérios da razoabilidade geral – dos princípios e valores do ordenamento, qual a melhor maneira de concretizar a utilidade pública postulada pela norma. O intérprete, o aplicador, para concretizar a norma geral, deverá primeiramente interpretá-la, depois terá de valorar qual a melhor maneira de atender à utilidade pública. Tal valoração, entretanto, não é livre, no sentido de que possa o administrador, se assim o entender, preencher os conceitos com seus critérios próprios”[62].

Assim, o princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeitar as regras morais acolhidas pela lei, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico, condicionando não só o administrador, como também o juiz e o legislador. Este último, aliás, está impedido de legislar, inovando no mundo jurídico, de forma contrária ao princípio constitucional da moralidade. O legislador não pode exercer sua função típica de modo a editar normas jurídicas que desatendam aos princípios elencados na Constituição de 1988 e valores éticos albergados pelo ordenamento jurídico como um todo. Toda a atividade legislativa deve voltar-se para a edição de normas que prestigiem os valores consagrados pelos princípios constitucionais, sob pena de violarem o ordenamento[63].

Dessa forma, não só a interpretação e a aplicação do princípio da moralidade devem ser atividades realizadas no âmbito circunscrito das normas jurídicas positivadas, a fim de conferir segurança jurídica para o controle dos atos emanados do Poder Público, como, também, deve-se entender que somente se poderá falar em moralidade vinculante à atividade legislativa se e quando se reconhecer que referido princípio, além de inserido no ordenamento jurídico, tem com ele relação de pertinência de seu conteúdo, extraindo do próprio Direito aquilo que se deva entender por moral.

Aliás, além do próprio conteúdo da norma a ser editada precisar estar de acordo com os princípios constitucionais, dentre eles o da moralidade, é possível falar em inconstitucionalidade do “impulso de legislar”, controlando-se não os vícios objetivos existentes na lei, mas os vícios subjetivos trazidos pela mesma. Vale dizer que a verificação da ocorrência de inconstitucionalidade no impulso de legislar permite a verificação da existência de vícios subjetivos da lei.

No tocante propriamente ao objeto do presente trabalho, associar o princípio da moralidade ao dever de bem administrar a coisa pública de acordo com parâmetros éticos positivados pelo ordenamento importa como fundamento para delimitar a atuação do administrador, sobretudo na prática de atos de competência discricionária, a fim de que sua conduta esteja em conformidade com a lealdade, boa-fé, veracidade e honestidade sob pena de ter os seus atos invalidados de forma objetiva.

De todo modo, ao que parece, estes enfoques que buscam associar o princípio da moralidade à moral comum “não deixam de reconhecer que a só invocação de outros princípios jurídicos já possibilitaria o controle da Administração que com base naquele se pretende efetuar”[64].

Partindo-se, então, da ideia de que o princípio da moralidade se refere aos valores contidos dentro do sistema jurídico, e não ignorando a existência de posições contrárias, o professor Márcio Cammarosano entende que o princípio da moralidade não é um princípio autônomo, já que não há na doutrina exemplo de invalidação de ato administrativo baseada única e exclusivamente na violação do princípio da moralidade.

Com efeito, a identificação de uma conduta estatal como moralmente jurídica, ou não, passa por uma análise prévia de outros institutos, principalmente do princípio da legalidade, pois, sendo moralmente jurídico apenas o quanto estipulado no próprio ordenamento de Direito, apenas poderá ser imoral o que não for conforme a legalidade.

Essa constatação fica mais nítida quando se estuda o modo de aplicação do princípio da moralidade em diversas situações práticas e até mesmo apenas em tese, pois daí exsurge seu caráter auxiliar em relação às demais normas jurídicas, principalmente principiológicas. É essa justamente a análise que se fará no tópico seguinte.

2.5 Aplicações do princípio da Moralidade Administrativa

Muito se discutiu, como acima ressaltado, se o princípio da moralidade, agora expresso, era parte integrante do ordenamento jurídico pátrio antes da promulgação da Constituição de 1988 como norma implícita. Isso porque, conforme dito, era tarefa deveras árdua conferir-lhe um conceito que pudesse escapar à utilização da moral comum e tal possibilidade era rechaçada de plano, por problemática que seria ao ordenamento jurídico como um todo.

Não ignorando posições contrárias, entende-se que a moralidade administrativa já era antes mesmo da Constituição de 1988 aplicável à Administração Pública, sendo requisito de validade dos atos administrativos em geral[65].

Esta posição, adotada por diversos juristas, dentre os quais se destacam Márcio Cammarosano e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, coaduna-se em tudo com o entendimento de que a moral contida no conteúdo desse princípio é justamente aquela que pode ser extraída das normas jurídicas positivadas e, logo, condicionantes do ato administrativo em geral.

A grande inovação trazida pela Constituição Federal, assim, não foi fazer da moralidade administrativa norma integrante do ordenamento. A inovação consistiu em ser a moralidade administrativa fundamento hábil para a propositura de ação popular.[66]

Com efeito, a Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII estabeleceu que atos[67] ofensivos à moralidade administrativa podem ser anulados pelo Poder Judiciário por meio de ação popular, mesmo que este ato imoral não tenha causado qualquer dano ao patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe, ao patrimônio histórico cultural ou ao meio ambiente[68]. Além disso,

 “o art. 14, §9º, da Constituição Federal admite, em defesa da moralidade para o exercício do mandato eleitoral, possa lei complementar estabelecer a inelegibilidade em proteção à probidade administrativa que é igualmente resguardada na enumeração dos crimes de responsabilidade atribuíveis ao Presidente da República (art. 85, V), sobre os quais dispõe o art. 9º da Lei nº. 1.709, de 10 de abril de 1950”[69].

Assim, os atos viciados com violação ao princípio da moralidade podem ser atacados não apenas pelo titular do direito violado, mas também por qualquer cidadão mediante a propositura de ação popular[70].

“(...) ainda que o titular do direito lesado contra a ilegalidade que o atinge não queira agir, qualquer cidadão poderá fazê-lo, propondo ação popular para que se restaure a legalidade e, com ela, seja fulminada a imoralidade administrativa. A imoralidade administrativa, residente na intencional violação da lei por quem, por dever de ofício, estava obrigado a dar-lhe exemplar cumprimento, enseja a qualquer cidadão ir a juízo mediante ação popular, direito de ação este que antes da Constituição de 1988 não existia, a menos que o ato viciado fosse também lesivo àqueles bens e direitos elencados no art. 1º, § 1º, da Lei nº. 4.717, de 29 de junho de 1965”[71].

Assim, a afronta a moralidade é causa autônoma de invalidação do ato viciado, sendo “poderosa aliada na busca da finalidade do ato, na busca do interesse público, no contraste do ato discricionário, na análise de possíveis desvios de finalidade”.[72]

Sendo, portanto, princípio da Administração Pública expresso, a moralidade administrativa ganhou inegável realce na Constituição Federal de 1988 como possível fundamento autônomo de ação popular, sendo essa uma das principais aplicações que se pode vislumbrar para essa norma hodiernamente.

Conforme já defendido no bojo do presente estudo, o ferimento ao princípio da moralidade, para ser constatado, deve ser fruto de verificação de diversas situações fáticas e jurídicas, dentre elas o ferimento à legalidade, entretanto, tal relação de sujeição especial não retira do princípio da moralidade a sua autonomia enquanto norma, conforme restará demonstrado no capítulo seguinte.

Além da possibilidade de ser fundamento de ação popular[73], a moralidade administrativa possui outras diversas aplicações.

Grande destaque deve ser dado ao papel do Poder Judiciário nesta árdua tarefa de aplicar a moralidade administrativa aos casos concretos a ele submetidos.

Os magistrados não devem aplicar seus próprios padrões morais no momento da apreciação do feito, e isso justamente porque são órgãos estatais que desempenham a função jurisdicional, logo, submetidos inexoravelmente ao ordenamento jurídico-constitucional positivado. Devem, destarte, buscar os padrões morais albergados pelos princípios e regras integrantes do ordenamento jurídico e identificar os standards vigentes para a resolução do caso levado ao Poder Judiciário, já que o princípio da moralidade se refere a valores juridicizados.

Desta forma, os operadores do Direito e os magistrados devem estar conscientes da moral e da realidade vigentes em sua época, entretanto, possuem fundamental papel na transformação social da comunidade em que se inserem[74].

Neste contexto, o Poder Judiciário tem fundamental papel na modificação de entendimento majoritário que defende a proibição de exame judicial do mérito dos atos discricionários, devendo para tanto valer-se do princípio da moralidade.  Como bem ressalta Marcelo Figueiredo

“Não é possível que o ‘mérito’ do ato questionado seja colocado como impedimento à fiscalização ou controle da Corte de Contas, como também, na maioria dos casos, do próprio Judiciário no que tange aos atos normativos (quer provenientes do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário no exercício de função administrativa.”[75]

Sem maiores aprofundamentos nesta polêmica questão do controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário, há que se destacar alguns julgados que utilizaram o princípio da moralidade como fundamento, demonstrando os limites e a extensão que os Tribunais pátrios vêm identificando no referido princípio jurídico.

Há que se ressaltar, entretanto, que a jurisprudência majoritária aplica o princípio da moralidade sempre conjugado com os demais princípios constitucionais, como realmente deve ser feito numa fase pós-positivista.

Em nota de rodapé, Marcelo Figueiredo dá destaque ao voto proferido pelo Ministro Carlos Mário Velloso no julgamento do impedimento (impeachment) do Presidente Collor, que assim decidiu

“Não me refiro, ao mencionar o princípio da moralidade administrativa, inscrito no caput do art. 37 da Constituição, à moral comum. Não estou, assim, valorando, de qualquer forma, os fatos que teriam sido praticados pelo impetrante e que deram ensejo à instauração de processo de impeachment. A valoração desses fatos coube ao Senado e, neste ponto, o ato deste escapa, em linha de princípio, ao controle judicial. Refiro-me à moral jurídica, mesmo porque ‘seguindo-se o espírito que domina a Constituição, seus próprios termos e a sua interpretação, não seria aceitável a suposição de que alguém que tivesse de ser afastado da titularidade do cargo máximo do Poder executivo por destrato com a lei pudesse continuar a participar, ativa e imediatamente, do poder público logo após a ocorrência dos fatos que teriam conduzido à condenação, frustrada por um atalho (...)”[76].

Nesse precedente, portanto, o próprio Pretório Excelso reconheceu que a noção de moral enquanto parâmetro que se possa utilizar para contraste judicial de atos administrativos à luz do princípio da moralidade não é aquela etérea, dissolvida, imperscrutável no seio da sociedade, mas, antes, apenas a carga moral\valorativa encerrada nas próprias normas jurídicas positivadas, pois somente dessa forma é que se respeitarão todos os cânones jurídicos e o sistema como um todo.

Ainda, não se poderia deixar de destacar também a questão do nepotismo, que, de tão polêmica (ainda que praticado endemicamente nas instituições brasileiras), levou o STF à publicação, em 29/08/2008, da Súmula Vinculante nº. 13 que estabelece que “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.

Outra não poderia ser a posição adotada pelo STF[77].  A Administração Pública, até pouco tempo atrás, sustentava que a vedação à prática do nepotismo dependeria da expedição de lei específica acerca do tema[78]. Mas como exigir-se edição de lei como condição para controle de atos administrativos diante da existência do princípio da moralidade? Ora, conforme elucidado no capítulo 1 do presente trabalho, os princípios não são meras recomendações de caráter ético ou moral. São normas de altas densidade axiológica e carga normativa.

Nas palavras do Min. Ricardo Lewandowski, em voto proferido no RE 579.951/RN,

 “tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios abrigados no caput do art. 37 da Constituição, não há como deixar de concluir que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa reprovável conduta. Para o expurgo de tal prática, que lamentavelmente resiste incólume em alguns ‘bolsões’ de atraso institucional que ainda existem no País, basta contrastar as circunstâncias de cada caso concreto com o que se contém no referido dispositivo constitucional”[79].

O Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 1.521/RS assim se manifestou

 “(...) quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República. O nepotismo, além de refletir um gesto ilegítimo de dominação patrimonial do Estado, desrespeita os postulados republicanos da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa”[80].

Com efeito, conforme os votos acima destacados, nota-se que interpretação literal dos incisos II e V, do art. 37, da Constituição Federal não pode prevalecer sobre a interpretação sistemática do ordenamento, não podendo contrariar o sentido lógico e teleológico do caput do art. 37, da Constituição Federal.

Mesmo porque, anteriormente à positivação expressa do princípio da moralidade, já havia normas constitucionais que determinavam a necessidade obrigatória da realização de concursos públicos para contratação de pessoal pelo Estado, encerrando, aí, nítida questão de moral juridicizada: além de o Estado precisar da melhor mão-de-obra possível, também deveria viger a impessoalidade na contratação deste pessoal[81].

Observe-se que, também nesse precedente, tem-se a presença de normas jurídicas positivadas conferindo o âmbito da moral comum abrangida no campo de incidência do princípio da moralidade que, dessa forma, pôde ser aplicado contra a prática do nepotismo. 

Há que se destacar, entretanto, que o STF restringiu a aplicação de referida súmula vinculante aos agentes políticos, aos quais supostamente não se aplica a vedação de nomeação de parentes para cargos comissionados de direção, chefia e assessoramento.

Por outro lado, a efetiva vedação à prática de nepotismo por ofensa ao princípio da moralidade administrativa poderia depender da análise do caso concreto, se não fosse a dificuldade prática de fiscalização e punição dos agentes públicos aliada à péssima cultura geral dos representantes de nossa sociedade que prima pelo mau trato da coisa pública com efeitos nefastos ao interesse público. Não por outra razão, aliás, o Supremo houve por bem promover a generalização e a abstração da proibição por força da súmula vinculante em apreço.

Assim, a proibição do nepotismo como regra é a melhor maneira de se prestigiar, na atualidade, os cânones da impessoalidade e da moralidade na Administração Pública. A proibição geral não deveria, entretanto, ser aplicada indistintamente a todos os casos de maneira cega. Vale dizer, o nepotismo é proibido como regra, mas, se não houvesse os óbices indicados no parágrafo acima, seria recomendável que a análise do caso concreto pudesse revelar possibilidades de mitigação desta proibição, quando o parente nomeado assim o fosse porque efetivamente capaz de exercer as atribuições do cargo a contento, com habitualidade, experiência e especialização tão indispensáveis à Administração Pública para o alcance do interesse público primário.

Seria louvável que pudéssemos ponderar no caso concreto quais são as normas que devem incidir na resolução da questão proposta. Logo, os princípios da moralidade e da impessoalidade, traduzidos na obrigatoriedade de realização de concurso público para provimentos de cargos públicos para parentes de agentes públicos já integrantes da Administração, poderiam, no plano ideal, sofrer mitigações diante da real necessidade de atendimento ao interesse público que, em última análise, poderia ser até melhor alcançado mediante a contratação desses parentes para cargos de comissão.

Nota-se, portanto, que o princípio da moralidade relaciona-se com questões muito atuais da sociedade brasileira contemporânea. Os exemplos de ferimento ao princípio da moralidade são fartos e a especificação de todos eles no presente trabalho se mostra inviável.

Para finalizar, portanto, a questão da aplicação do princípio da moralidade e dos demais princípios constitucionais há que se destacar o último escândalo em que se envolveu o Senado Brasileiro recentemente: a edição de centenas de atos secretos por parte desta Casa.

Os chamados atos secretos ferem patentemente os princípios da impessoalidade, da publicidade e da moralidade administrativa. Segundo informações trazidas pela imprensa em meados de março de 2009, o então Presidente do Senado, o peemedebista José Sarney, tomou conhecimento da existência de atos secretos em função de um relatório produzido pela Fundação Getúlio Vargas, que havia sido contratada pelo Senado para realização de um estudo para melhoras na administração da Casa. Uma comissão especial, instituída pela 1ª Secretaria, foi nomeada a fim de averiguar o ocorrido. A comissão instaurada descobriu a existência de 663 atos administrativos secretos, ou seja, atos administrativos que não haviam sido devidamente publicados.

 Diante do escândalo, o Senado abriu sindicância para apurar os fatos, visando a anulação de todos eles. Antes de encerrada a sindicância, mais precisamente no dia 12/08/2009, foram descobertos outros 468 atos secretos editados entre 1998 e 1999, quando era Presidente da Casa o Senador Antônio Carlos Magalhães. Esse novo grupo descoberto seguia o mesmo padrão do anterior, ou seja, continha nomeações de aparentados de políticos, concessões de benefícios salariais e criação de cargos. Os fatos foram inseridos na publicação do Boletim de Administração de Pessoal somente após o levantamento da comissão de sindicância que identificou os outros atos secretos do Senado. Os arquivos de computador desses 468 atos descobertos agora foram criados após 29/05/2009. As investigações ainda não chegaram ao fim, mas é possível afirmar que referidos atos são inválidos por ferimento patente aos princípios constitucionais da legalidade, publicidade, impessoalidade e moralidade administrativa.

As denúncias efetuadas no Conselho de Ética do Senado contra o Senador José Sarney foram arquivadas. A análise acerca do desarquivamento das denúncias caberá ao Poder Judiciário. Diante de tal escândalo, o que resta é o questionamento acerca de como os legisladores manejam os princípios constitucionais de forma tão desavergonhada. Conforme ressaltado acima, os legisladores devem como qualquer outro cidadão respeitar os princípios expressos e implícitos acolhidos pelo ordenamento jurídico, sendo, inclusive, os destinatários primeiros do princípio da moralidade.

O que resta evidente na presente situação é que o agente público, seja ele do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, deve atuar dentro dos limites impostos pela ordem jurídica, procedendo de forma a acatar e respeitar as normas principiológicas abarcadas pelo ordenamento, desvencilhando-se da ideia de transformar o público numa extensão de seu domínio privado. Só assim é que o Brasil se virá livre de agentes corruptos e, principalmente, formará cidadãos capazes de agir diante de argumentos inconsistentes como os ofertados pela classe política atual para justificar casos como o da farra das passagens aéreas e da expedição de atos secretos.

Sobre a autora
Marina Centurion Dardani

Advogada/Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP - Cogeae

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25912. Acesso em: 21 nov. 2024.

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