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Dignidade da pessoa humana, poder público e pobreza

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Agenda 13/12/2013 às 16:20

A definição de dignidade da pessoa humana não está isenta dos reflexos da globalização,dos avanços tecnológicos e do consumismo, escancarando a necessidade de atuação firme do Poder Público no sentido de coibir o acelerado ritmo da pobreza local e mundial.

A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem origem bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com o Iluminismo e a centralidade do homem, ela se desloca para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a capacidade de valoração moral e autodeterminação do indivíduo[1]. No decorrer do século XX, ela se torna um objetivo a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. É após a 2ª. Guerra Mundial que a idéia de dignidade da pessoa humana se introduz no mundo jurídico, em virtude do surgimento de uma cultura pós-positivista e da sua  inclusão em diferentes documentos internacionais e Constituições de Estados democráticos[2]. O grande desafio que se apresenta é operacionalizá-la interna e externamente.

A dignidade humana, conforme já mencionado, apareceu nos documentos jurídicos apenas no final da segunda década do século XX, a começar pelas Constituições do México (1917) e da Alemanha de Weimar (1919)[3]. Antes de viver sua apoteose como símbolo humanista, esteve presente em textos com pouco conteúdo democrático, como o Projeto de Constituição do Marechal Pétain (1940) e como a Lei Constitucional decretada por Francisco Franco (1945), durante ditadura espanhola[4]. Após a Segunda Guerra Mundial, ela foi incorporada aos mais importantes documentos internacionais, como a Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e inúmeros outros tratados e pactos internacionais, passando a ser protagonista do discurso sobre direitos humanos. Cumpre destacar que a sua proteção foi inserida em diversas Constituições, como por exemplo, na brasileira[5], salientando que naquelas desprovidas de previsão expressa, a jurisprudência tem se encarregado de trazê-la à tona.

Barroso[6], ao prelecionar acerca do valor intrínseco da pessoa humana no plano jurídico, defende que a inviolabilidade da dignidade está na origem de uma série de direitos fundamentais, sendo o primeiro deles, o direito à vida. Em segundo lugar, o direito à igualdade; em terceiro, o direito à integridade física; e, por fim, o direito à integridade moral ou psíquica. Já no plano político, sustenta que a dignidade está subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais, em cujo âmbito merece destaque o conceito de mínimo existencial:

Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. Vale dizer: tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares. O direito ao mínimo existencial não é, como regra, referido expressamente em documentos constitucionais ou internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente reconhecida. E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública. Não é possível captar esse conteúdo em um elenco exaustivo, até porque ele variará no tempo e no espaço.

Finalmente, o mesmo estudioso defende a dignidade como fator heteronômico, funcionando mais como uma constrição externa à liberdade individual do que como um meio de promovê-la.

Conclui-se não ser tarefa fácil definir dignidade da pessoa humana. Ela é constituída de uma mescla de valores complexos. É certo, no entanto, que a dignidade deixou de ser sinônimo de poderio; de posição social e de grau de reconhecimento pela comunidade, para assumir uma dimensão de igualdade.


Poder Público, pobreza e dignidade da pessoa humana

Dá-se início a esta parte do trabalho com uma pergunta: o crescimento do bem-estar pode ser equiparado ao crescimento econômico? Tal pressuposto vem sendo bastante problematizado nas últimas décadas, especialmente quando se reconhece que a fome e a deficiência alimentar permanecem como grandes desafios. Kesselring destaca que[7]:

Os homens querem de um lado, cooperar e, de outro, concretizar seus interesses individuais. Desigualdade social e desigualdade econômica estão numa relação de efeito recíproco alternado, onde cada uma é tanto causa como também efeito da outra. Uma maior igualdade econômica conduziria a uma maior igualdade social. A muitas Sociedades que sofrem sob condições desfavoráveis, não faltam os recursos. Sociedades bem ordenadas podem aqui sair-se bem com muito pouco; sua riqueza está nas tradições políticas e culturais, em seu “capital humano”, em seu saber e sua capacidade de organização política e econômica.  Um regime corrupto, que recebesse ajuda econômica, não se tornaria com isso menos corrupto. A carência econômica seria antes conseqüência de problemas políticos e estruturais do que sua causa. O temor permanente ante uma insuficiente capacidade competitiva exerce pressão nos salários, conduz à diminuição das pessoas empregadas, à redução da segurança no emprego, à falta de compromisso na observância dos direitos humanos e ao aumento do trabalho infantil. O vertiginoso declive na estrutura salarial faz com que a pobreza se torne uma vantagem econômica da praça. Quem não dispõe de dinheiro é excluído do mercado (apartheid).

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As afirmações do filósofo deixam evidente a dubiedade humana: de um lado se rechaça; de outro, se cultiva a pobreza. Ninguém quer ser pobre, mas tal estado potencializa o acesso de alguns às oportunidades dirimentes da pobreza. Entretanto, o que são e quais são os pobres? Os professores Canotilho, Marcus e Érica Correia fazem o mesmo questionamento[8]:

Pobres são os proletários no clássico sentido marxista da luta de classes? Pobres são os pobres de espírito no sentido bíblico? Pobres são os excluídos da sociedade de conhecimento? Pobres são os que vivem em “bairros de lata”? Pobres são os que vivem em países pobres? Pobres são os beneficiários de um rendimento social de inserção? Pobres são os fracos e os oprimidos? Pobres são os que vivem no limite de uma existência minimamente condigna? (grifo nosso).

Este trabalho não ambiciona apresentar solução ao questionamento, mas traz observações que, apesar de escritas em 1989, são bastante atuais e imbuídas de elevado grau de discutimento:

(...) pobres são uma parte – mesmo sub-humana – da ordem natural e estabelecida do mundo (quase uma estrutura), sendo merecedores de censuras pela sua própria condição (uma conjuntura). Todos os estudos modernos acerca da pobreza concordam axiomaticamente com o fato de ela ser uma condição mais fácil de descrever do que de definir[9].

Interessa-nos a expressão “existência minimamente condigna”. Os professores que questionam a expressão “pobres” compreendem como mínimo existencial o conjunto de prestações materiais que asseguram a cada indivíduo uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável, ou seja, de uma vida que corresponda a padrões qualitativos mínimos que vão além da sobrevivência física e do exercício das liberdades fundamentais, sendo certo que o conteúdo do mínimo existencial está condicionado pelas circunstâncias históricas, geográficas, sociais, econômicas e culturais em cada lugar e momento e destacam a importância do ato de visibilizar os titulares de direitos, que só desta maneira conseguirão titularizar algo. Visíveis entram no universo dos direitos, não somente por meio das leis, mas também, e acima de tudo, para e pelos olhos do intérprete destas[10].  Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a proteção ao mínimo existencial constitui o elo entre a pobreza, a exclusão social e os direitos sociais[11].

A visibilidade dos (ex) incluídos pelo intérprete das leis é de suma importância. Não se intenta aqui, fomentar o debate acerca da distinção qualitativa entre princípios e regras. A teoria dominante nos mais variados países, inclusive no Brasil, é no sentido de que[12]:

(...) princípios são normas jurídicas que não se aplicam na modalidade tudo ou nada, como as regras, possuindo uma dimensão de peso ou importância, a ser determinada diante dos elementos do caso concreto. São eles mandados de otimização, devendo sua realização se dar na maior medida possível, levando-se em conta outros princípios, bem como a realidade fática subjacente. Vale dizer: princípios estão sujeitos à ponderação e à proporcionalidade, e sua pretensão normativa pode ceder, conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos. A identificação da dignidade humana como um princípio jurídico produz conseqüências relevantes no que diz respeito à determinação de seu conteúdo e estrutura normativa, seu modo de aplicação e seu papel no sistema constitucional. Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que consagram valores ou indicam fins a serem realizados (...) (grifo nosso).

A dignidade da pessoa humana, encarada como princípio, cede à razoabilidade e à proporcionalidade não se cogitando em algo absoluto. Ela desempenha importante papel na fixação do conteúdo do mínimo existencial que tem a ver com aquilo que o Estado deve assegurar positivamente e com aquilo que o Estado deve respeitar por força de um dever de não-intervenção.

O intérprete sopesará todas essas circunstâncias para encontrar o melhor desfecho, mais que isso, para atribuir efetividade aos direitos, sejam eles fundamentais, sejam eles sociais.

O Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do Poder Judiciária brasileiro, em celebrada decisão monocrática, afirmou a necessidade da preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do mínimo existencial, que não fica ao arbítrio estatal.

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTA. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS. DECISÃO: Trata-se de argüição de descumprimento de preceito fundamental promovida contra veto, que, emanado do Senhor Presidente da República, incidiu sobre o § 2º do art. 55 (posteriormente renumerado para art. 59), de proposição legislativa que se converteu na Lei nº 10.707/2003 (LDO), destinada a fixar as diretrizes pertinentes à elaboração da lei orçamentária anual de 2004. O autor da presente ação constitucional sustenta que o veto presidencial importou em desrespeito a preceito fundamental decorrente da EC 29/2000, que foi promulgada para garantir recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde. “DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno). Não é lícitoao Poder Público, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativ, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Renovar): “Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.” (grifei). Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. Extremamente pertinentes, a tal propósito, as observações de ANDREAS JOACHIM KRELL (“Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 22-23, 2002, Fabris): “A constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação' (...). No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes (...). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação (ADPF nº 45, Rel. Min. Celso de Mello)[13].

A decisão deixa claro qual é (ou pelo menos qual deveria ser) a prioridade dos gastos públicos: a satisfação das condições materiais mínimas de existência, bem como que há uma relação inversamente proporcional entre os recursos financeiros do Estado (quase sempre limitados) e a amplitude das necessidades sociais. Quanto mais próxima estiver a prestação positiva buscada frente ao Estado do conceito de mínimo existencial, mais força terá o indivíduo de fazer cessar a inação do Poder Público. Por outro lado, a mesma decisão em sua parte final, destaca o posicionamento totalmente oposto de uma porção da doutrina e de componentes do Poder Judiciário, pessoas formadoras de opinião e responsáveis pela aplicação do direito ao caso concreto, questionadores da legitimidade das decisões judiciais diante das limitações financeiras do Estado, o que é no mínimo preocupante. É preciso desmistificar a má-fé a que é concebido o que busca o direito social.

Sinal de que os recursos públicos estão sendo bem geridos e de que a dignidade da pessoa humana não é “letra morta” nos textos jurídicos é tornar realidade o atendimento às necessidades para uma vida condigna.

Convém destacar que a doutrina brasileira tem convencionado a utilização da locução ²direitos fundamentais² para os direitos humanos positivados em determinado sistema constitucional, ao passo que a expressão ²direitos humanos² tem sido empregada para identificar posições jurídicas decorrentes de documentos internacionais, sem vínculo com qualquer ordenamento interno específico e com pretensão de validade universal[14]. Jean Merle e Luiz Moreira destacam que os direitos fundamentais mostram-se como forma indispensável e universal de realização da liberdade[15]. E, Sarlet, em conhecida monografia sobre o tema, conceitua dignidade humana [16]:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Revela-se a necessidade de atuação do homem (a todo o direito corresponde um dever). Ele não pode ser passivo; omisso; até porque tal comportamento não é condizente com a natureza dos direitos fundamentais que são uma conquista histórica e, portanto, mutáveis no espaço e no tempo. Os textos jurídicos não fazem milagre. Milagre faz o cidadão ativo e participativo a torná-los vivos e respeitados[17].

Tratando-se da Carta Política brasileira, o constituinte, ao inserir o princípio da dignidade da pessoa humana no início do documento constitucional e fora do rol de direitos e garantias fundamentais, teve a clara intenção de conferir-lhe o atributo de preceito embasador e informativo de toda a ordem constitucional, especialmente das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais.

Partindo-se para o nível mundial (e não deixando de fora o Brasil), existem inúmeros direitos previstos; escritos e pouca efetividade. Heleno Tôrres utiliza uma expressão que bem visibiliza tal realidade[18]:

O século XX chegou à proclamação formal dos direitos sociais, num belo ensaio que principia nos direitos políticos individuais, passa pelo reconhecimento dos direitos coletivos, até alcançar os direitos sociais. No entanto, a ponte entre o sujeito virtual de direitos e o sujeito-cidadão está para ser erguida. (grifo nosso).

Há muito que se fazer para conscientizar o indivíduo, de seus direitos, que, aliás, antes de atingir a cidadania, precisa ter civilidade. Há muito que se fazer para “conscientizar” o Estado a deixar de transgredir direitos que ele próprio promulga, e, finalmente, para conscientizar o Poder Judiciário a enxergar além dos mármores. O direito não deve ser somente obedecido, mas reconhecido. Tanto mais bem observado quanto mais largamente for aceito [19].

Sobre a autora
Sandra Regina Pires

Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA), com diploma em fase de reconhecimento. Especialista em Direito Processual Civil com Formação para o Magistério Superior. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora no curso de Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, ministrando as disciplinas Direitos Reais, Direito Processual Civil (Recursos) e Introdução ao Estudo do Direito. Membro da Comissão de Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção Jabaquara/Saúde. Mediadora e Conciliadora capacitada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) para atuar nas iniciativas pública e privada, habilitada junto ao Núcleo de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e inscrita no Cadastro Nacional de Mediadores e Conciliadores do Conselho Nacional de Justiça. Integrante do painel de árbitros e mediadores da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada (CAMES/SP). Integrante do painel de conciliadores da Câmara de Mediação e Arbitragem de Joinville (CEMAJ). Advogada militante nas áreas cível e família há 26 anos. Atuação no Magistério Superior por 10 anos, ministrando as disciplinas: Prática Jurídica Civil I e II, Direitos Reais, Responsabilidade Civil e Direito Civil (Parte Geral). Integrante do Núcleo de Prática Jurídica. Atuação como Coordenadora de Monitoria e Estágios. Professora do Curso Preparatório para Magistrados na ESMA/PB (Escola Superior da Magistratura Estadual) nas disciplinas Ação Popular/Ação Civil Pública, Atualidades em Processo Civil, Direitos Reais e Direito Civil (Parte Geral). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9557919549020744.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sandra Regina. Dignidade da pessoa humana, poder público e pobreza. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3817, 13 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26117. Acesso em: 22 nov. 2024.

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