Globalização e a importância da limitação jurídica
É incontestável que o mundo foi afetado pela globalização do mercado e das tecnologias, passando a ter três figurantes entrelaçados: indivíduo, mercado e técnica. É irrefutável, também, que internalizar o Poder Público significa caminhar na contramão. Assim, é necessário que ocorra uma globalização política e social, na qual os valores democráticos tenham um claro protagonismo (há quem defenda que isso já vem acontecendo). Esta é a única via para uma globalização qualitativa, com comunhão de civilizações e não o choque delas[20]. É preciso ampliar e qualificar a cidadania. Presentes estão a oportunidade e a necessidade de configurar um Poder Público que possa ser aplicado ao local, ao regional e ao mundial[21]. Solidariedade e humanidade são as palavras de ordem para combater o individualismo da modernidade. É preciso compatibilizar a autodeterminação do Estado com o poder financeiro e econômico das grandes corporações empresariais, de forma que o Estado Constitucional não venha a sucumbir.
É fato que a globalização da sociedade capitalista abalou a ordem jurídico-política e as diferentes instituições estatais e civil que a regulam, além de afetar a própria face do Estado que perdeu ou reduziu os seus papéis em matéria de produção, política social, regulação econômica e ordenamento territorial. A globalização provocou o enfraquecimento do Estado, o surgimento da legalidade supra-estatal[22] e a redução da efetividade dos direitos fundamentais[23] .
Como todo fenômeno, tem dois lados: o positivo e o negativo. Quanto ao primeiro, se pode citar a democratização do acesso à informação e a desobstaculização do deslocamento das pessoas e das coisas como conseqüência do desaparecimento das fronteiras físicas; o reconhecimento das adversidades e a tolerância para com elas; a sensação de se pertencer a um todo; a uma sociedade global, portanto, interdependente. Quanto ao segundo, o Estado, enfraquecido, vem enfrentando dificuldades para conter o apetite desenfreado de seus agentes econômicos empresariais.
Marcos Santos sustenta que os beneficiários da globalização inventam fronteiras virtuais como os paraísos bancários, fiscais e, sobretudo, judiciários. Nesses paraísos não há policiais nem juízes, os vencedores são aqueles que não respeitam lei nenhuma[24]. Conclui-se que a globalização há de ser domesticada pela lei; pelo Direito Internacional, ou melhor, pelo Direito Transnacional. Tal denominação foi empregada por Jessup, Professor da Universidade de Columbia (Nova Iorque) e juiz da Corte Internacional de Justiça, no período de 1961 a 1970, falecido em 1986, que procurou chamar a atenção para o crescimento das complexidades jurídicas de um mundo não mais estanque; mas interdependente; para um mundo carente de normas jurídicas e de processos aplicáveis às situações que ultrapassem as linhas fronteiriças. É mister lembrar que reduzir o direito à economia ou à política é sucumbir a formas difusas de autoritarismo[25]. Os interesses econômicos têm se tornado a matriz do direito. É preciso entender as finalidades e as formas de intervenção do direito na vida econômica e analisar os fatos sociais que dão origem ao ordenamento jurídico. É a busca do sentido econômico do direito[26], que não pode quebrar o seu compromisso com a justiça social.
Os constitucionalistas brasileiros, bem como de outras nacionalidades, classificam os direitos fundamentais em três dimensões, reservando à terceira o valor fraternidade ou solidariedade, cujo destinatário seria não um indivíduo ou grupo isolado, e sim, o gênero humano[27].
A ferocidade dos investidores, a velocidade alucinante com que se realizam os negócios, o tratamento descartável que se tem dado ao ser humano, mais especificamente ao trabalhador e a prioridade ao lucro em detrimento do bem estar comum só podem ser detidos pelo próprio indivíduo (componente de uma sociedade global) e pelo complexo jurídico (leis, princípios, tratados e convenções internacionais), voltado a uma cidadania transnacional, o que coloca em relevo, como desde sempre o foi, o papel desempenhado pelos homens letrados ou iletrados desse mundo que passou a ter fronteiras nítidas apenas nos mapas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dignidade da pessoa humana, ser humano e direitos fundamentais foram expressões exaustivamente utilizadas no presente trabalho. Já de algum tempo para cá, não é mais possível pensar nelas de forma compartimentada. O mercado está aí, livre e aberto (talvez mais livre do que aberto), com o seu poderio insensível e as nações almejam concorrer, podendo-se afirmar que existe uma vigilância entre elas, no sentido de se fazer cumprir ao que se obrigaram para entrar nesse mesmo mercado. Repensar o conceito de bem comum, tanto interna quanto externamente, talvez seja um bom início ou indício para reduzir a exclusão social. Entretanto, essa releitura não se fará com um cidadão indiferente e passivo. Será necessário que ele esteja “logado na rede mundial”, atento e consciente não só da sua realidade, mas da realidade global. Exemplo de tal atuação é a militância internacional das organizações não governamentais que vêm desempenhando importante e crescente papel como procurador da sociedade civil.
O critério econômico não pode ser inimigo do homem; ele tem de ser instrumento para oferecer qualidade de vida às pessoas; para reafirmar os modelos democráticos, culturais, políticos e sociais refletidos a partir dos Direitos Humanos. Almeja-se uma intervenção estatal sempre no sentido de maximizar os direitos fundamentais. Prega-se a solidariedade como único antídoto para a insensibilidade do mercado globalizado.
O ordenamento jurídico apenas será freio para o laissez-faire sans frontières se eficaz e inequívoco. Enquanto houver exclusão social e concentração de riquezas nos níveis em que se apresentam, não se pode falar em um Poder Público Democrático. Nesse sentido, se constata que não perdeu atualidade a máxima de Santo Agostinho: (..) esquecida a justiça, a que se reduzem os reinos senão a grandes latrocínios?” (De civitate Dei, 1, IV).
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Notas
[1] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010.
[2] Ibidem
[3] Cristopher McGrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of International Law 19:655, 2008, p. 664.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Op.cit., pág. 3.
[5] Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I – (...)
III - a dignidade da pessoa humana;
IV – (...)
[6] BARROSO, Luís Roberto. Op.cit., pág. 5.
[7] KESSELRING, Thomas. Ética, política e desenvolvimento humano: a justiça na era da globalização. Rio Grande do Sul: EDUCS, 2007, págs. 73, 94, 149, 197 e 275, (tradução de Benno Dischinger).
[8] CANOTILHO Gomes J.J., CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 33.
[9] ANDREAU, J., CARRIÉ, J.M., KOLENDO, Giardina J. O homem romano. Lisboa: Editorial Presença, 1992 (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, pág. 226.
[10] CANOTILHO Gomes J.J., CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, CORREIA, Érica Paula Barcha, op. cit.
[11] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humjana e direiots fundamentais na Constituição de 1988. 2. ed. Ver. E ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pág. 96.
[12] MARCELINNO JÚNIOR, Júlio César, VALLE, Juliano Keller do, AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Direitos fundamentais, economia e estado: reflexões em tempos de crise. Campinas: Conceito Editorial, 2010, pág. 133.
[13] STF. Informativo n. 345. Brasília, 26 a 30 abr. 2004. Disponível em: www.stf.jus.br/ / arquivo/informativo/documento/informativo345htm. Acesso em 02 dez.2010
[14] GASPERIN, Antonio Augusto Tams. Síntese comentada à teoria do ordenamento jurídico de Norberto Bobbio. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 737, 12 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6953>. Acesso em: 30 nov. 2010.
[15] MERLE, Jean-Christophe, MOREIRA, Luiz. Direito & Legitimidade. São Paulo: Landy , 2003, pág. 196.
[16] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., pág. 62
[17] AZEVEDO, Plauto Faraco. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Elaborada pela equipe da biblioteca do tribunal de justiça do Rio Grande do Sul, 1983, pág. 45.
[18] TÔRRES, Heleno Taveira. Direito e poder: nas instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos. Barueri: Manole, 2005, pág. 613.
[19] SABELLA, Vinícius Leite Guimarães. Os elementos de atuação social de natureza funcional. O Poder, o Direito, e a Justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1905, 18 set. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11739>. Acesso em: 30 nov. 2010.
[20] MARCELINNO JÚNIOR, Júlio César, VALLE, Juliano Keller do, AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de, op. cit., págs. 131 e 136
[21] LIMA, Máriton Silva. Judiciário: deveres, valores e o Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1466, 7 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10114>. Acesso em: 30 nov. 2010.
[22] Verba Juris: Anuário da Pós-Graduação em Direito – Ano 7, n. 7. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), 2008, pág. 229.
[23] DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito. Campinas: LZN, 2003 (tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama), pág. 25.
[24] SANTOS, Marcos André Couto. O Direito como meio de pacificação social: em busca do equilíbrio das relações sociais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <jus.com.br/artigos/4732>. Acesso em: 30 nov. 2010.
[25] ALMEIDA, Guilherme Assis de, CHRISTMANN, Martha Ochsenhofer. Ética e direito: uma perspectiva integrada. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, pág. 69.
[26] DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010, pág. 264.
[27] Revista da ESMA (Escola Superior da Magistratura) da Paraíba – Ano 1, n. 1, João Pessoa: 2010, pág. 114.