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Intolerância religiosa entre a Igreja Universal do Reino de Deus e as religiões de matriz africana sob a perspectiva da intervenção estatal

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Cabe ao Estado assegurar um meio social propício à manifestação lícita de pensamentos, respeitando-se as convicções alheias. É preciso punir incursões como as aqui citadas, promovidas pela Igreja Universal contra pessoas ligadas ao Candomblé, particularmente humilhantes e atentatórias à dignidade humana.

Resumo: O artigo propõe-se a discutir como o Estado Democrático de Direito tem se posicionado acerca das condutas de Intolerância Religiosa manifestadas por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, baseada nos ditames norteadores do neopentecostalismo, para com as demais religiões, em especial as de Matriz Africana. Procura abordar o tema de forma objetiva, visando convidar o leitor à reflexão do tema proposto.

Palavras-chave: Estado. Intolerância Religiosa. Igreja Universal do Reino de Deus. Religiões de Matriz Africana.

Sumário: 1. Introdução. 2. A intolerância da Igreja Universal do Reino de Deus para com as religiões de matrizes africanas. 2.1 O neopentecostalismo. 2.2 O conflito existente entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e as religiões de matriz africana. 3. O papel do Estado e a intolerância. 3.1 A liberdade religiosa violada por condutas de intolerância. 3.2 A intervenção do Estado diante da intolerância religiosa. 4. Considerações finais. Referências.


1. Introdução

“As religiões são tidas com efeito como tendo um valor e uma dignidade desiguais; disse geralmente que elas não contém todas a mesma dose de verdade.”

Émile Durkheim

O Estado Brasileiro considera-se como um Estado laico, e, como característica deste, consagra-se como sendo destituído de qualquer religião. Não obstante, este mesmo Estado posiciona-se como protetor da diversidade religiosa e por isso insere a liberdade de crença como um dos seus direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são considerados como aqueles essenciais à existência do ser humano, responsáveis pela promoção de uma convivência digna e pacífica na sociedade, no qual todos têm a possibilidade de expressar as suas próprias convicções. O Estado brasileiro em sua Constituição vem, dessa forma, reconhecer esses direitos e contemplar-lhes eficácia no ordenamento jurídico, por serem norteadores das relações interpessoais. Os direitos fundamentais, também chamados de direitos humanos, podem ser caracterizados como imprescritíveis e irrenunciáveis respectivamente, em que nunca poderão perder a sua exigibilidade e nem ser renunciados por qualquer indivíduo, nem mesmo pelo seu detentor.

Partindo desse pressuposto e salientando a inerência da liberdade de crença no âmbito dos direitos supracitados, pode-se concluir que esta se ampara como garantia constitucional e como tal, possível de ser exigida a qualquer tempo, principalmente quando exposta a violações.

A liberdade de crença vem possibilitar que o homem se relacione com o sagrado de forma autônoma, sem qualquer cerceamento, seja por parte do Estado ou dos seus integrantes. A liberdade de crença objetiva um tratamento igualitário para todo e qualquer tipo de culto religioso exercido no âmbito da sociedade brasileira, sendo meio de garantir o bem estar social. Dessa forma, subsiste no seio do Estado possuidor de diversidades religiosas a idéia de que, embora muitas vezes antagônicas, as religiões possam coexistir, nutrindo um respeito mútuo.

O Estado, como regulador da ordem social, coloca-se como o principal responsável em garantir o respeito a essa liberdade, de maneira que não haja interferência nas religiões a ponto de cercear a liberdade de culto de cada um. Observa-se, no entanto, que contrariamente ao que está determinado no ordenamento jurídico, condutas tidas como intolerantes são fomentadas e praticadas em todo o território brasileiro. Atualmente no Brasil, a intolerância religiosa não produz guerras nem matanças, porém tem se propagado sentimentos de ódio e ojeriza ao diferente, manifestados através de agressões físicas e morais. Contudo, essas condutas podem ser observadas nas igrejas neopentecostais, que se configuram como contribuidoras para a propagação desta intolerância religiosa. Diante disso, aponta-se a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) como sendo a maior representante desta religião no país.

Atrelada a esta idéia, conclui-se que a liberdade de expressão religiosa tem sido exacerbada por esse grupo, pois estão se utilizando dessa liberdade para ofender a fé e a moral das crenças alheias, em especial a do Candomblé. Afetando, desse modo, a ordem no seio da sociedade a partir do momento que se deseja impor ao outro a sua concepção de verdade, sem respeitar o direito a liberdade de consciência e religião garantidos constitucionalmente.

A guerra espiritual, característica das religiões neopentecostais como a Universal, tem sido, no entanto, a principal responsável por fomentar a intolerância religiosa destes para com os seguidores das religiões de matriz africana. Os líderes da IURD titularizam os deuses destas como sendo os responsáveis pelas mazelas do mundo e incitam os seus fiéis a combaterem tudo que venha dessas religiões. Assim, o fiel se torna tão intolerante ao ponto de perseguir aqueles seguidores com o intuito de destruí-los, acreditando que destruirá também todo mal existente no mundo.

Partindo do pressuposto que a IURD, utilizando-se do poder midiático, do marketing e do apelo emocional, está evangelizando mais e mais fiéis a cada dia no país e, consequentemente, disseminando o repúdio às religiões africanas, se faz necessário entender as bases que norteiam esse pensamento intolerante, bem como identificar e analisar como o Estado interfere nessas condutas intolerantes que agridem a ordem social, cujos estudos se constituem foco deste trabalho. O caminho a ser percorrido, neste artigo, apoiar-se-á nos alicerces constitucionais, bem como os direitos humanos, além de um arcabouço teórico acerca do tema em questão.


2. A intolerância da Igreja Universal do Reino de Deus para com as religiões de matrizes africanas

2.1 O neopentecostalismo

Antes de adentrar na esfera do neopentecostalismo, se faz necessária uma breve explanação do que vem a ser o pentecostalismo no Brasil, objetivando uma maior compreensão acerca dos princípios que consubstanciam a religião neopentecostal.

O Pentecostalismo, ou religião pentecostal, tem seu surgimento datado no século XX, sendo sua evolução histórica subdivida em fases, conhecidas como as três ondas históricas. A Primeira, intitulada Pentecostalismo Clássico, tem por base a rejeição ao mundo, isto é, a tudo que não pertença aos princípios pentecostais, à crítica ao catolicismo, ao uso da palavra como meio de evangelização e ao batismo no espírito santo como forma de salvação; O Deuteropentecostalismo, ou segunda onda, preservou princípios do conhecido pentecostalismo clássico (primeira onda) ao manter como princípio básico da religião, o batismo no Espírito Santo e o oferecimento de cura àqueles que aderem a esta religião. No entanto, foi inovadora ao se utilizar da mídia para difundir suas bases doutrinárias; Como última fase, define-se a Neopentescostal (terceira onda), caracterizada por ser o período que mais fiéis foram evangelizados. Assim como o Pentecostalismo Neoclássico, utiliza-se de forma expressiva dos poderes midiáticos. Mas, contrariando a postura adotada até então pelos pentecostais, adota uma postura mais flexível permitindo, por exemplo, que o fiel não tenha limitações ao se vestir. Esta religião tem como principal representante a Igreja Universal do reino de Deus (IURD)1.

Fundada em 1977 pelo bispo Edir Macedo, a IURD é uma religião de bases neopentecostais que mais cresce no Brasil atualmente2. A religião neopentecostal caracteriza-se, diferentemente da religião pentecostal, por dividir o mundo espiritual entre Deus e do Diabo – princípio este, que será a base na “guerra santa” travada entre os “libertadores de demônios e os próprios Demônios”, como ocorre entre a IURD e as religiões de matriz africanas. Como se coloca como centro para libertação do mundo das mazelas produzidas por demônios na batalha cristã, os neopentecostais, afirmam que as demais religiões não detém força o suficiente para guerrear contra estes demônios.

Dessa forma, considerando que o Demônio é responsável por todos os problemas ocorridos no mundo, os neopentecostais acreditam que o homem sofre com a pobreza, com as doenças e com a falta de prosperidade na vida pelo simples fato de não acreditarem em Deus. o acreditam em Deus sofrem com doenças, sendo a origem desta do dem do Diabo, princ lismo hist Utilizando-se de cultos emotivos, das promessas de curas e milagres e do poder midiático, tais religiões agregam, com o passar do tempo, um número cada vez mais significativo de fiéis em todo o Brasil.

2. 2 O conflito existente entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e as religiões de matriz africana

“O povo quer ver o seu pastor com coragem, quer ver o pastor brigando com demônio.” (Edir Macedo).

“Com nomes bonitos e cheios de aparatos, os demônios vêm enganando as pessoas com doutrinas diabólicas. Chama-se orixás, caboclos, pretos-velhos, guias, espíritos de luz, etc. Dizem-se ser exus, erês, espíritos de crianças, médicos famosos, poetas famosos, mas na verdade são anjos decaídos.” (Edir Macedo)3.

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A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) figura-se no âmbito social como sendo um exemplo de igreja que é responsável por diversas práticas intolerantes para com as demais religiões, em especial, para com as de origem africanas. A não aceitação vista na IURD não se restringe a uma simples divergência religiosa, mas em uma tentativa de depreciar toda uma religião, colocando-a em totalidade, no pólo negativo da "batalha travada entre o bem e o mal", isto é, despreza-se toda uma cultura religiosa, resumindo-a em demônios e adorações satânicas. Mister salientar, que a IURD reconhece a existência das entidades afros, porém distorcem seu significado ao atrelá-las ao demônio, como forma de sustentar o seu discurso intolerante.

É fato reconhecido que a sociedade hodiernamente vivencia repetitivos conflitos promovidos pelas divergências religiosas. Divergências que tem gerado no cerne religioso um processo de intolerância que muitas vezes beira o fanatismo, onde verdades tidas como absolutas são impostas à sociedade com o escopo de que esta as aceite, sem insurgências.

As religiões de origem neopentecostal utilizam-se da mídia como um meio eficaz para propagar seus princípios religiosos. No entanto, ao declarar uma batalha religiosa contra as religiões de matrizes africanas, a IURD não se utiliza da mídia apenas para a evangelização de novos fiéis, mas também para incentivar a idéia de que essas religiões são obras demoníacas, como bem exemplifica Janayna de Alencar Lui no artigo Os Rumos da Intolerância Religiosa no Brasil, “o demônio iurdiano leva o nome de “exu”, “pomba-gira, “encosto”, ou seja, para esses neopentecostais tudo que se refere às religiões afro-brasileiras é contagioso; é obra do diabo e deve ser evitado por aqueles que optaram por “aceitar Jesus”.4

Nesse diapasão evidencia-se que a Igreja Universal do Reino de Deus acaba fomentando entre seus fiéis um fanatismo religioso que não mais se limita aos muros de suas "catedrais", ocasionando retaliações àqueles que cultuam as religiões consideradas demoníacas. Dessa forma aduz Edir Macedo: "essa religião (afro-brasileira) que está tão popular no Brasil é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno” (MACEDO, 2002, p. 86).

A Igreja Universal do Reino de Deus visa libertar as pessoas de tudo o que as afligem, que as oprimam, bem como todos os males da humanidade como a fome, a pobreza, a depressão, o desemprego, doenças, e, tais males, assim como as pessoas que não seguem Jesus Cristo, são associados como fruto de obras demoníacas ou espíritos caídos.

A grande maioria dos conflitos existentes entre essas duas religiões pode ser observada a partir não só das declarações de adeptos da IURD, mas também a partir de suas ações que tem atingindo o altero, o diferente, no que tange à sua escolha religiosa, nos quais as condutas de intolerância passaram de morais a físicas. Por terem essa visão libertadora, os indivíduos neopentecostais acabam por serem intolerantes com os membros adeptos de religiões de matriz africana por associarem à estes características de cunho demoníaco. O ataque às religiões de matriz africana é direto e desrespeitoso, uma vez que:

[...] a intolerância religiosa que a doutrina oficial da Igreja Universal do Reino de Deus empreende contra as religiões Afro-brasileiras parece constituir um mecanismo de concorrência entre duas visões de mundo, distintas – mas não necessariamente tão distintas, pois a IURD simultaneamente encerra contigüidades e descontiguidades com princípios das religiões afro-brasileiras.A utilização de elementos mágicos em seus rituais de exorcismos é emblemática dessa afirmação. (BRITO, 2008, p. 5)

Nos rituais de exorcismo promovidos pela IURD, objetiva-se expulsar do corpo do fiel um espírito possesor, responsável pela ruína do homem na terra. Segundo Jaçanã Ribeiro, em seu artigo O Simulacro da alteridade: uma análise discursiva do ritual de exorcismo da Igreja Universal do Reino de Deus, as entidades possuidoras "se identificam como sendo entidades afro, com objetivos malignos contra o fiel no qual estão encarnadas” (RIBEIRO, 2005, p. 31). Observa-se dessa forma, que a Universal coloca-se como o elo capaz de salvaguardar a paz, libertando os fiéis dos demônios cultuados por religiões como o candomblé.

Desse modo, a Universal opõe-se a universalidade da religião afro-brasileira a partir de uma idéia de combate entre Deus e o Diabo, cuja visão dicotômica da primeira diverge com a da segunda encerrada em uma prática religiosa marcada pelo politeísmo.


3. O papel do Estado e a intolerância

3.1 A liberdade religiosa violada por condutas de intolerância

“A liberdade religiosa é o coração dos direitos humanos. Cada pessoa deve seguir sempre de acordo com a sua consciência, quaisquer que sejam as circunstâncias, e não pode ser coagida a agir contra a sua vontade.” (Papa João Paulo II, 2009)

O Brasil, em face da sua diversidade cultural, configura-se como um país que caminha sempre para um cenário de pluralismo religioso. Devido a esta pluralidade, o Estado brasileiro deve se preocupar em proporcionar aos seus integrantes um ambiente de plena compreensão religiosa. Em decorrência de garantir o bem-estar social e o respeito a este pluralismo, o Estado vem em seu art. 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988 garantir que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Diante do exposto, pode-se constatar que todo e qualquer indivíduo tem o direito de adotar uma crença, de mudar de crença ou de não ter nenhuma. Para José Afonso da Silva a liberdade de crença, o livre exercício de cultos e a instauração de locais de cultos são nada mais que formas de expressão da liberdade religiosa. Pontes de Miranda consagra que "liberdade de religião é liberdade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade, inclusive de não se ter.". Já a liberdade de culto pode ser conceituada pelo mesmo ao reconhecer que “compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público [...]”.5

Para melhor entendimento do que vem a ser tal liberdade, faz-se pertinente o conceito das suas três formas de manifestação. Segundo José Afonso da Silva na liberdade de crença se encontram:

Na liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença [...]. 6

Por fim José Afonso da Silva vem conceituar a liberdade de instauração dos locais de culto ou liberdade de organização religiosa, ao consagrar que esta diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado.

Diante desta explanação, pode-se constatar a importância que se tem em proteger a liberdade religiosa. Esta proteção, contudo não se limita às religiões tradicionais, mas estende-se a toda forma de manifestação da espiritualidade.

Para o doutrinador Gilmar Mendes, “O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado”7. Com isso, pode-se dizer que o Estado brasileiro tutela a liberdade religiosa como reza o Supremo Tribunal Federal:

A Constituição Federal assegura o livre exercício do culto religioso, enquanto não forem contrários à ordem, tranqüilidade e sossego públicos, bem como compatíveis com os bons costumes. (Supremo Tribunal Federal — RTJ51/344)

O objetivo maior desta proteção é proporcionar uma convivência pacífica e igualitária a todos os brasileiros. Facultado assim, a cada um o seu culto e profissão de fé, sem que sejam instauradas coerções que ensejem ação contrária a sua vontade. É nesse sentido, no entanto, que o constitucionalista José Afonso da Silva entende que dentro dessa liberdade não está inserida a liberdade de embaraçar, restringir ou limitar a prática de qualquer religião ou qualquer crença.

Contudo, o que tem sido observado nos últimos anos pela população brasileira é justamente uma conduta embaraçosa que desrespeita o exercício da liberdade religiosa. Essa conduta, no entanto, vem a ser característica da intolerância religiosa que se manifesta pelo desejo de imposição de princípios religiosos diversos àqueles que pertencem a religiões diferentes. Esta conceitua-se como um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar as diferenças ou crenças religiosas de terceiros. A prática desse sentimento intolerante constitui o menosprezo, o desrespeito, o suprimento da crença daqueles que são vitimados. A intolerância religiosa causa desordem, rivalidade e concomitantemente fere direitos constitucionais tornando a sua prática passível de punição. Esta assume um cenário cada vez mais preocupante em um país que institui a liberdade religiosa como direito fundamental.

Este sentimento vem sendo manifestado no Brasil, de forma agressiva, através de humilhações e até mesmo com o emprego da violência física. Entretanto, dois segmentos religiosos vêm protagonizando esse cenário de forma constante, sendo eles os neopentencostais e os adeptos das religiões de matriz africana. Com o intuito de frear e combater os conflitos de intolerância religiosa, foi criada a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, formada por dezoito instituições religiosas diferentes. Esta, em relatório entregue a Martin Uhomoibai, presidente do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), coloca a igreja neopentencostal, Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), como sendo a maior responsável pela propagação da intolerância religiosa no Brasil e como prova disso demonstra as trinta e quatro ações judiciais instauradas contra esta somente no Estado do Rio de Janeiro. Entre as maiores vítimas desta intolerância estão as religiões de matriz africana que tem sido atacadas publicamente pelos líderes e fiéis desta instituição, através de discursos invasivos e carregados de humilhações8. As condutas realizadas pela IURD têm ultrapassado os limites da alteridade e causado lesões físicas e patrimoniais àqueles que não compartilham com a sua fé, ao ponto de causar a desordem social.

Diante de tais alegações, faz-se necessário explanar algumas dessas condutas repercutidas nos diversos meios de comunicação. Uma delas ocorreu no Estado da Bahia com a Mãe Gilda, dona de um terreiro de Candomblé da cidade de Salvador. Esta foi insultada em reportagem exibida no Jornal Folha Universal (edição nº 39 de 2009)9, onde a imagem da Mãe Gilda aparecia diante de termos pejorativos como macumbeira e charlatona que lesava o bolso e a vida dos clientes. Diante dessa atitude, os filhos de dona Gildásia Santos e Santos (Mãe Gilda), ajuizaram uma ação de danos morais contra a IURD alegando ter sido Mãe Gilda, vítima de intolerância religiosa.

Outro caso também demonstrando o desrespeito e intolerância desta instituição religiosa, foi a publicação do livro Orixás, Caboclos e Guias - Deuses ou Demônios? de autoria do Bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, o qual contém várias opiniões contrárias e ofensivas aos seguidores das religiões de matriz africana, ensejando assim que estes sejam combatidos e até mesmo devastados. Além de tais condutas, temos as exibições de programas televisivos produzidos também pela IURD, nos quais esta prossegue com insultos e ofensas, intitulando, absurdamente, que as religiões de matriz africana são as grandes responsáveis pelas mazelas da sociedade.

A partir disso, conclui-se que as condutas praticadas pelos membros desta instituição religiosa tem se configurado contrárias às garantias estabelecidas na Carta Magna. Ao invés do respeito à liberdade de crença, como reza o art. 5º, inciso VI da Constituição, o que tem ocorrido é a violação deste. Locke em seu livro Carta Acerca da Tolerância prescreve que:

[...] nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qualquer maneira a outrem nos seus bens civis porque professa outra religião ou forma de culto. Todos os direitos que lhe pertencem como indivíduo, ou como cidadão, são invioláveis e devem ser-lhe preservados. Estas não são as funções da religião. Deve-se evitar toda violência e injúria, seja ele cristão ou pagão. (LOCKE, p. 6)

A liberdade de expressão religiosa tem sido exercida de forma exacerbada no momento que atinge a esfera alheia, o que tem causado desequilíbrio na ordem social. Existe nesse caso, o desejo de impor a sua concepção de verdade e incutí-la de qualquer maneira mesmo que para isso seja necessário o emprego da violência física. Desse modo, temos o exercício de um direito fundamental de um atingindo o gozo desse mesmo direito para com o outro. A guerra espiritual, declarada pela Universal, entre Deus e o Diabo, tem deixado de pertencer ao campo sobrenatural e tem sido inserida no plano concreto, onde pessoas de diferentes crenças não se toleram e travam uma batalha física que não se pode prever as suas conseqüências. É a partir dessas condutas que se faz necessária a análise da reação do Estado Brasileiro, com o intuito de garantir o direito a liberdade religiosa não só como norma constitucional, mas como proteção no plano concreto.

3.2 A intervenção do Estado diante da intolerância religiosa

O atual Estado Brasileiro garante e regulamenta as liberdades de pensamento (que são expressões ligadas ao ser humano) nas suas mais diversas formas, através de sua Carta Magna. Dentre as garantias, há a liberdade religiosa, que engloba os mais variados cultos. A diversidade de culto que deveria ser respeitada por todos, infelizmente, tem sido motivo de conflitos intensos, que atinge até mesmo a seara penal. O Estado tem ido de encontro à resolução desses conflitos através de seus órgãos ? dentre eles o Ministério Público Federal e o Tribunal Regional Federal ? a partir do momento em que os preceitos legais são maculados.

O Brasil, por ser um Estado Democrático de Direito, está pautado em inúmeros princípios que asseguram aos cidadãos, dentre outras coisas, diversas liberdades. Essas liberdades visam garantir aquilo que é inerente ao homem, assim como manter a convivência harmônica e pacífica de seu povo. São perceptíveis tais afirmações na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual o Brasil reconhece, quando diz em seu artigo II :

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.10

De acordo com o pensamento de Sampaio Dona11, a liberdade de pensamento é o direito de exteriorizar, independente da maneira, o que se pensa em ciência, religião, arte e etc. A liberdade de pensamento se justifica como essencial, porque está atrelado ao desenvolvimento intelectual dos indivíduos. Desta forma, não cabe ao Estado ou a sociedade invadir esse espaço privativo do ser ou reduzi-lo de modo algum. Caso não fossem respeitadas essas limitações, se caracterizaria como servidão absoluta e extinções da pluralidade, das discordâncias e das contradições. Entretanto, tem de saber até onde essa liberdade de pensamento pode se exteriorizar sem invadir o espaço de outrem para que não haja confronto de direitos. Caso ocorra esse confronto, cabe ao Estado dirimir sua solução. Constitui-se em um dos desdobramentos da liberdade de pensamento a manifestação a liberdade religiosa que tem como base o direito de acreditar, de ter fé e professar qualquer crença de origem mística.

O Brasil sempre teve diversidade religiosa, graças ao seu sincretismo religioso. As discordâncias entre cultos ocorrem há séculos, no entanto a presente Carta Magna não apenas permite a variedade de religiões, como repudia intolerâncias e agressões cometidas contra quaisquer dos cultos venerados no país, tendo-se como exemplo os ocorridos entre as igrejas neopentencostais e as de matrizes africanas. Como anteriormente retratado, no presente há inúmeros incitamentos de rejeição da Igreja Universal contra o Candomblé. Desse desprezo, nascem investidas criminosas de uma religião contra outra por conta de mera divergência filosófica, além de ignorância e preconceito. Mediante esses conflitos religiosos, é corriqueiro presenciar no dia-a-dia ataques verbais, físicos e patrimoniais entre os fiéis destes cultos, e que muitas vezes, alguns deles se acham assegurados, para tais comportamentos, nas garantias constitucionais de liberdade religiosa, constado no art. 5º, incisos VI da Constituição Brasileira. É importante salientar, como assegura Dirley da Cunha Júnior12, que as garantias constitucionalmente acolhidas foram instituídas visando fins lícitos e morais, jamais para fins de vindita ou perseguição. No entanto, para os extremistas, seus atos são justificáveis e legítimos e com isso acreditam que devem permanecer intolerantes para expugnar tudo aquilo que é adverso de seus ideais.

Dentro dos direitos de expressão e pensamento, é permitida a utilização dos mais diversos meios para se propagar idéias, juízos e convicções, sendo que o Estado não pode interferir nesta esfera íntima do indivíduo. Contudo, o poder estatal pode impedir a prática injusta que determinadas pessoas vem cometendo a outras, por conta da intolerância religiosa. Pode-se citar como exemplo de remédios do Estado, o que consta no art. 208 do Código Penal:

Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.

Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Assim como para crimes de injúrias relativos à intolerância, o Código Penal em seu art. 140, § 3º, proclama:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

[...]

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena - reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

Além do Código Penal, há uma lei que garante, às vítimas de intolerância, proteção e asseguridade de seus direitos de liberdades, dentre elas a liberdade religiosa, como consta na Lei nº 7716/89, em seus artigos 1º e 20:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.13

Como anteriormente já comentado, pode-se trazer como exemplos reais, de maculação dos direitos religiosos garantidos no ordenamento, os casos de agressões à imagem sofridas pela Mãe de Santo Gildásia, na Bahia, bem como a publicação da obra Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios? de autoria do Bispo Edir Macedo. Tais fatos inquietaram o Ministério Publico Federal (MPF) e ascenderam discussões em diversos setores do Estado brasileiro, a exemplo da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. É de suma importância ressaltar a forma enérgica com que agiu a justiça brasileira, fomentada por denúncias movidas pelo MPF, em especial, nos dois casos citados. No caso da Mãe Gildásia, o Superior Tribunal de Justiça (STF) condenou a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) a pagar indenização à família da então falecida vítima por conta do uso de uma foto com contexto depreciativo e ofensivo à Mãe de Santo em um de seus periódicos14. Quanto ao caso relativo à obra de Edir Macedo, o Desembargador Federal Souza Prudente do Tribunal Regional Federal da 1º Região proferiu decisão determinando a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda, revenda em entrega gratuita da obra (seja em igrejas, templos, entrepostos, livrarias ou serviços de televendas – 0300, 0800 ou equivalente), bem como o recolhimento de todos os exemplares existentes em estoque, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de incursão de multa diária fixada no valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), em caso de descumprimento, além das sanções cíveis e criminais cabíveis15.

É importante lembrar também, que além do zelo físico, psicológico e moral que o Estado fornece aos cidadãos sofredores de intolerância, há também segurança nas liturgias e locais de cultos, diferente do que constava anteriormente na Carta Imperial de 1824, quando a liberdade de cultuar estava restrita às dependências dos templos católicos. Antes não havia uma separação do Estado com a Igreja, o que não permitia a diversidade religiosa. Buscando mudar esta situação, a Constituição de 1988 consagrou um Estado laico, com a separação do mesmo com a Igreja, instituindo no plano social e jurídico a isonomia de tratamento. Diferentemente do que outrora se verificava, é possível perceber a seguridade de liberdade entre Estado e Religião na atual Constituição em seu art. 19, I:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

O Estado e a sociedade brasileira passaram por muitas mudanças e conquistas durante os séculos, no que tange à garantia e preservação da liberdade do pensamento. É importante assegurar um meio social propício à manifestação lícita e livre (de pensamentos em qualquer lugar) daquilo que norteia a cultura humana. Contudo, essa manifestação deve respeitar o espaço e as convicções alheias. Quando isso não ocorre, cabe ao Estado interferir e punir os infratores que mancharam os preceitos constitucionais e penais, como é o caso das incursões promovidas pela Igreja Universal contra pessoas ligadas ao Candomblé. O posicionamento do Estado Brasileiro, nos casos abordados, serve como linha de reflexão acerca dos limites das condutas que exasperam o texto constitucional bem como as leis e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. É interessante pontuar positivamente as atitudes do Ministério Publico e da Justiça Federal, a fim de promoverem a ordem social e a vigilância dos preceitos fundamentais. Porém, o que deve ser questionado é o limite da liberdade de culto, para que uma crença não desvirtue outra, assim como deve-se debater até que ponto a liberdade de culto deixa de ser um direito garantido para se tornar uma conduta passível de punição.

Sobre os autores
André Matos

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Menu Hamburguer
Emily Farias

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Isadora Barros

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Tamiris Passos

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Paula Pires

Estudante de Direito da Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Jéssica Ferreira

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB . Licenciada e Bacharel em Língua Estrangeira Moderna pela Universidade Federal da Bahia - UFBA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, André; FARIAS, Emily et al. Intolerância religiosa entre a Igreja Universal do Reino de Deus e as religiões de matriz africana sob a perspectiva da intervenção estatal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3822, 18 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26182. Acesso em: 22 dez. 2024.

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