Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Pequeno ensaio em resenha crítica da “Civilização do espetáculo” de Vargas Llosa

Agenda 09/01/2014 às 09:57

Está em voga o que se poderia chamar de uma “cultura do entretenimento”, a qual substitui quase que totalmente tudo o que há aproximadamente cinquenta anos se compreendia por cultura.

Foi por meio da leitura de um precioso artigo de Lênio Streck divulgado na internet (“Os Dez Mandamentos do Rei do Camarote”) em que apresenta a obra intitulada “A Civilização do Espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura”, de autoria de Mario Vargas Llosa, que tive a inspiração para esmiuçar o texto referido e elaborar esse pequeno ensaio e resenha crítica, dada a ingente importância do trabalho ali desenvolvido por Llosa e tão sensível e inteligentemente conectado ao mundo jurídico por Streck.

Tomo a liberdade de escrever sem as amarras metodológicas clássicas das citações completas, notas etc. porque para além de científica esta é uma empreitada interdisciplinar de saberes que pretende exatamente superar o fosso do cientificismo reinante, bem como emergir dos buracos cada vez mais profundos e estreitos da especialização e do pragmatismo que matam a alta cultura em nossos tempos.

O único cuidado que será mantido será a indicação das fontes e seu destaque, especialmente nos trechos reproduzidos, isso tendo em vista a honestidade intelectual e os direitos de autor, exigências imprescindíveis moral e legalmente. O número das páginas somente será indicado quanto à obra de Vargas Llosa e não em relação aos demais trabalhos citados de passagem nesses comentários.

A obra de Llosa inicia com a constatação de um paradoxo, qual seja, a abundância contemporânea de trabalhos versando sobre o tema da cultura concomitantemente com o pleno declínio daquilo que tradicionalmente sempre foi reconhecido como o significado e o conteúdo dado a esse termo. Desde logo se deixa claro que não há pretensão nenhuma de engrossar as fileiras das multifárias interpretações do que seja cultura, mas sim de descrever um processo metamórfico pelo qual vem passando aquilo que se conhecia como “cultura”. Em resumo, demonstrar como o termo tem se desnaturado e se tornado “heteróclito”, excêntrico ou extravagante, sem que ninguém ou quase ninguém se dê conta ou faça qualquer objeção a respeito (p. 11).

A pulverização e a banalização do conceito de cultura produz o efeito de transformar o termo em algo amorfo, vazio, um vácuo que pode ser preenchido com qualquer coisa. Nesse ponto a previsão do poeta, dramaturgo e crítico literário inglês, T. S. Eliot torna-se praticamente uma profecia:

“E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura” (p. 12)

Michel Henry em “A Barbárie” indica que esta (a barbárie) se instala nitidamente com o fim da cultura ocidental e “suas formas de determinação dos valores, portanto sua moral e suas formas de determinação da verdade – portanto, sua epistemologia”.

Dentre algumas ilusões alardeadas aos quatro cantos encontra-se aquela da igualdade entre os homens. Ora, se igualdade realmente existisse não seria absolutamente necessário construir o princípio jurídico, social, teológico e filosófico de mesmo nome, simplesmente porque se trataria de um fato da natureza tão explícito que sequer necessitaria da descoberta e do reconhecimento humano. O chamado Princípio da Igualdade, se não se voltasse exatamente para a realidade natural da desigualdade, equivaleria à construção de um “Princípio do Líquido Molhado” ou um “Princípio do Fogo Quente”.

Dessa ilusão primordial surge a ideia equivocada bem apontada por Vargas Llosa sobre a possibilidade de estender a cultura (“alta cultura”) a toda a sociedade, sem qualquer exceção, por intermédio da educação. Na realidade, o efeito nefasto dessa “bela” utopia é a “destruição da ‘alta cultura’”, já que “a única maneira de conseguir essa democratização universal da cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial” (p. 13). Em suma, trata-se de um nivelamento por baixo, da distribuição de reconhecimentos sem o necessário mérito, de falar o que as pessoas querem ouvir para que tenham acesso a uma satisfação falsa, simplesmente desprezando a lição milenar de Sócrates quanto ao fato de que o “saber que não se sabe” é um primeiro e essencial passo para o verdadeiro e consistente crescimento pessoal. O autoengano somente produz a estagnação e a deterioração dos sujeitos que não somente se conformam com sua ignorância, mas a transmudam de vício em virtude. À indagação de John Stuart Mill sobre se seria preferível ser um Sócrates insatisfeito ou um porco satisfeito, resta clara na contemporaneidade a absurda escolha pela segunda opção.

Outro aspecto sintomático indicado com acerto por Llosa é que a transmissão da cultura se dá por meio da família, de forma que quando há uma decadência ou degeneração dessa importantíssima instituição, a consequência desastrosa é a “deterioração da cultura” (p. 13 – 14). Nada poderia ser mais certeiro do que essa constatação prodigiosa do autor. O que se verifica na atualidade é que muitos daqueles espaços, meios e manifestações considerados, num sentido amplíssimo, como “culturais” são exatamente instrumentos de demolição da instituição familiar e das tradições que conformam o ambiente ou o berço onde pode assentar-se a verdadeira cultura (veja-se no Brasil, por exemplo, as telenovelas, os filmes, a produção literária, o jornalismo etc.).

Outro pilar da cultura genuína é a Religião, mas como pode desenvolver-se ou mesmo manter-se a cultura num ambiente de ateísmo e agnosticismo militante, senão fanático, e antirreligiosidade irracional?  Não se trata aqui de um proselitismo da carolice, mas da simples constatação de que a Religião é parte imprescindível no molde das mais diversas culturas universais, seja ensejando a produção e atuação cultural no bojo da própria religiosidade, seja propiciando o pensamento crítico acerca da própria Religião. Ademais, esta se encontra impregnada na história da humanidade a tal ponto que qualquer passo em direção à antirreligiosidade exacerbada, como se vê na atualidade, tem o efeito nefasto de ocultar grande e significativa parcela de acontecimentos e fatos históricos que compõem as razões e as origens de inúmeras manifestações culturais na arte (música, pintura, escultura, arquitetura etc.), na filosofia, no direito, na economia, na linguagem, na literatura etc. O alijamento da Religião provoca, ele sim, a tão decantada “alienação” marxista – materialista na medida em que oculta ideologicamente a realidade. 

T.S. Eliot é novamente trazido à colação, dando destaque ao cristianismo no ocidente:

“Nossas artes desenvolveram-se dentro do cristianismo, as leis até há pouco enraizavam-se nele, e foi sobre o pano de fundo do cristianismo que se desenvolveu o pensamento europeu. Um europeu pode não crer que a fé cristã seja verdadeira, mas, mesmo assim, o que diz, aquilo em que acredita e o que faz provêm da fonte do legado cristão, e seu sentido depende dele. Só uma cultura cristã poderia ter produzido Voltaire ou Nietzche. Não acredito que a cultura da Europa sobrevivesse ao desaparecimento da fé cristã” (p. 14).

Pulula na contemporaneidade aquilo que pode ser realmente e de forma profunda chamado de “contra-cultura”, não num sentido de crítica producente, mas como exatamente o inverso da cultura, como um sinônimo da incultura que se dá ares de sapiência. Nessa incultura se disseminam informações equivocadas ou mesmo deliberadamente falseadas com relação, por exemplo, à história da Igreja Católica e da Ciência. Se oculta o fato de que no ocidente o clima da cristandade e o monoteísmo foram fatores essenciais para o desenvolvimento das ciências, razão pela qual nesse campo o oriente caminhou bem mais lentamente. Olvida-se (intencionalmente ou não) o contributo da Igreja Católica para as artes, os grandes nomes da ciência e da filosofia que eram sacerdotes ou crentes. Dessa forma um estado de ignorância soberba se difunde sob o véu de uma falsa erudição em que besteiras propagadas aos quatro ventos são tomadas como verdades absolutas, causando estranheza e susto quando são desmentidas. Certamente a melhor obra para aprofundar esse aspecto e desvencilhar-se de mentiras e meias verdades é o livro de Thomas E. Woods Jr., “O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica”.

Umas das provas de que a retirada da Religião do palco cultural e social é deletéria e até sanguinolenta, constituindo um grande golpe naquilo que se pode chamar de cultura, foi o resultado de toda uma postura iconoclasta com relação ao monoteísmo judaico – cristão produzido pelos filósofos do Iluminismo. Eles estavam convencidos de que

“com uma cultura laica e secularizada desapareceriam a violência e as matanças trazidas pelo fanatismo religioso, pelas práticas inquisitoriais e pelas guerras de religião. Mas a morte de Deus não significou o advento do paraíso na Terra e sim do inferno, já descrito no pesadelo dantesco da Commedia ou nos palácios e câmaras de prazer e tortura do marquês de Sade. O mundo, livre de Deus, foi sendo ao poucos dominado pelo diabo, pelo espírito do mal, pela crueldade e pela destruição, que atingirá seu paradigma com as carnificinas das conflagrações mundiais, os fornos crematórios nazistas e o Gulag soviético. Com este cataclismo acabou-se a cultura e começou a era da pós – cultura” (p. 17).

Justa, portanto, a constatação de Charles Dickens em seu “Um Conto de Duas Cidades”:

“Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte; a última, muito mais fácil de conceder do que as outras, ó Guillotine”!

O movimento iluminista que pregava uma fé tremenda na razão atuava com fulcro em um componente altamente irracional segundo o qual “nenhuma instituição existente poderia ser aceita, apenas pelo fato de ser existente” (Roger Scruton – Modern Culture – No original: “No existing institution should be accepted, therefore, just because it is existing”). E isso somente poderia levar ao banho de sangue irracional em que acabou redundando a Revolução Francesa por exemplo.

Não obstante, deve-se ter em conta que a só existência de uma alta cultura, seja no indivíduo, seja no seio de uma coletividade não é antídoto para a violência e a barbárie. Ela geralmente contribui para uma sociedade melhor, mas não impede desvirtuamentos nem é incompossível com desvios até mesmo patológicos:

“Em um indivíduo, assim como na sociedade, chegam às vezes a coexistir alta cultura, sensibilidade, inteligência e fanatismo de torturador assassino”. Heidegger não deixou de colaborar com o Nazismo e o próprio Hitler era, segundo consta, um bom admirador da música e das artes plásticas (p. 18).

Mas, seriam somente os fatores da diluição do conceito de cultura e da derrocada da família e da religião os motivos da deterioração cultural contemporânea?

Claro que não. A questão é muito mais complexa e passa necessariamente pelo novo dinamismo e pelos novos hábitos e costumes propiciados pela tecnologia que, ao mesmo tempo em que permite que eu digite mais eficaz e rapidamente este texto, pode ser prejudicial à saúde cultural.

Com fulcro em George Steiner e sua obra “No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura” (1971), Vargas Llosa destaca o fenômeno da chamada “retirada da palavra”, que significa uma alteração na tradição cultural que sempre foi sustentada no “discurso falado, lembrado e escrito”. No entanto, atualmente a palavra vai se subordinando cada vez mais à imagem. Inclusive na música, as letras vão se perdendo em meio aos sons envolventes, aos ritmos contagiantes e “vibrações estridentes”. Tudo isso oprime a reflexão, o estudo, a escrita, a memorização e até a comunicação verbal. A “musicalização de nossa cultura”, indaga Llosa, teria que efeitos (p. 19)? Quem sabe a deterioração da linguagem, que é um dos grandes sustentáculos não somente da cultura humana, mas do grande salto de “hominização” ou “exodarwinismo” preconizado por Michel Serres em sua obra “Hominescências”. Sem a comunicação, sem a linguagem, não há sociedade e, consequentemente, cultura. Afirma Serres: “A sociedade se constrói pela comunicação; pereceria sem ela”.

Vem à colação a obra de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, “A cultura – mundo. Resposta a uma sociedade desorientada”. Neste ponto há uma sutil retomada do tema da utopia da democratização da cultura, mediante a análise do argumento de Lipovetsky e Serroy quanto ao atual “enaltecimento de uma cultura global” (cultura – mundo), onde as fronteiras são obliteradas pela atuação dos mercados livres globalizados, pela revolução científica e tecnológica (especialmente no que diz respeito às comunicações). Tudo isso vem possibilitando a criação, pela primeira vez na história humana, de denominadores comuns culturais entre sociedades e pessoas de todos os cantos do mundo. Surge então uma equalização e aproximação que supera as divergências tradicionais, lingüísticas e de credo. A nova cultura global perde seu elitismo, erudição e exclusão e se converte em genuína “cultura de massas”. Novamente há uma ilusão de que isso possa ser bom. Na verdade a cultura de massas provoca a corrosão das “vanguardas herméticas e elitistas” que exigiam qualidade para a produção cultural. A cultura de massas é quantitativa e comercial, pretendendo ofertar “ao público mais amplo possível novidades acessíveis que sirvam de entretenimento à maior quantidade possível de consumidores”. O intento agora é a diversão e o prazer hedonista. Muito longe de buscar o objetivo de levar à reflexão e formação, a cultura massificada quer ensejar a “evasão fácil e acessível para todos, sem necessidade de formação alguma, sem referentes culturais concretos e eruditos”. A suposta cultura é transformada em meros “artigos de consumo de massas” (p. 23). Seu nascimento é marcado pela ascendência “da imagem e do som sobre a palavra”. O texto é substituído pela tela (p. 24).

Nesse quadro o agir humano se desvirtua num simples reagir imbecilizado, insano e determinado ou ao menos condicionado pela “cultura” predominante. Impera um processo mimético que intenta e parece ter sucesso em produzir um homem que corresponde à superada imagem behaviorista. Um homem gregário no sentido imitativo – instintivo que reage tal qual “os cães de Pavlov à campainha que anuncia comida” (p. 25). É a destruição de uma característica da condição humana tão cara a intelectuais como Hannah Arendt (“A Condição Humana”). O agir que difere do mero labor (atividade biológica do corpo humano que lhe sustenta a vida) e do trabalho (correspondente à produção de um mundo artificial de coisas pelo homem, que difere do ambiente natural). O agir consiste na atividade mais nobre do homem e que só se pode realizar entre os homens sem a mediação de coisas ou matéria. É a condição da pluralidade, a condição de que os homens habitam o mundo e não o homem ou um homem. Mas, para o agir é absolutamente necessário que as relações se desenvolvam entre homens que são os mesmos em termos de humanidade, mas não são iguais, sustentando a característica da unicidade irredutível, bem exposta por Santo Agostinho em “A Cidade de Deus”, quando afirma que o homem é criado “unum ac singulum” e os animais “plura simul iussit existere”. A singularidade da vida humana se manifesta no agir que se torna inoperante no seio da cultura – mundo hábil a converter a humanidade numa pasta homogênea.

É interessante anotar que Lipovetsky e Serroy dão ênfase à criação de um individualismo exacerbado pela chamada “cultura – mundo”, com o que Vargas Llosa não concorda, chamando a atenção para a massificação, a incapacitação do poder de julgamento, de independência, de crítica e até de gosto induzida pela mídia, conforme acima descrito (p. 24 – 25). Parece que há razão para crer que tanto o individualismo afastado por Llosa, quanto a massificação por ele demonstrada, embora pareçam elementos antagônicos e excludentes, convivem e são até complementares na cultura de massas contemporânea.

René Girard, em “Aquele por quem o escândalo vem” desenvolve a chamada “Teoria do Mimetismo”, a qual pode ser identificada hoje no fenômeno da violência que assola o mundo em meio a processos de individualismo exacerbado e massificação. A violência que nasce desse caldo é também produto de uma decadência cultural que conduz à desumanização. É interessante notar que essa progressão violenta se dê exatamente num momento em que a chamada “Globalização” procura homogeneizar as culturas, os povos, as pessoas. Exatamente quando um individualismo exacerbado e egocêntrico se mescla com uma massificação, uma identificação ou universalização potencial. Parece que a visibilidade e a possibilidade dessa imitação, dessa pretensão à igualdade com sua consequente proliferação de desejos e paixões miméticas, onde cada um quer ser e ter o que o outro é e tem, cria um campo sempre mais fértil para o ressentimento, a inveja, a disputa de oportunidades e espaços e, consequentemente, a violência. Violência essa que pode inclusive surgir na forma de uma pretensa busca de Justiça, seja laica ou sacralizada. Realmente essa pode ser uma das vias explicativas para a proliferação dos atos de terrorismo religioso ou político, quando povos ou grupos se sentem explorados ou oprimidos e querem se igualar aos eventuais exploradores ou opressores. Na mesma intensidade vêm as reações dos alvos do terrorismo que mimetizam os agressores e atuam de forma violenta, invasiva, destruidora e desrespeitadora dos Direitos Humanos mais fundamentais (v.g. Leis Norte – Americanas de combate ao terrorismo pós 11 de Setembro). Não devem ser olvidados os ataques a escolas e universidades com massacres de diversas pessoas e suicídio do agressor. O que deseja o agressor? Revidar humilhações e violências sofridas, enfim, mimetizar ou imitar seus algozes, inclusive no ato de sua autoeliminação que ele considera desejada pelos mesmos que agora agride. E neste momento, após o mais recente massacre escolar nos Estados Unidos, o líder da chamada “Sociedade do Rifle”, que defende a liberdade da posse de armas de fogo pelos americanos, vem a público para dizer que a solução para a violência escolar é a alocação de seguranças armados nas unidades de ensino! É mesmo a violência que se reproduz num processo imitativo sem limites. Trazendo a questão para a realidade nacional, já temos exemplos de massacres escolares (v.g. Caso Realengo) e mais recentemente a onda de violência homicida que assola do Estado de São Paulo, especialmente em sua Capital. Há nesse episódio um claro viés mimético em que a violência institucional (Policial) se retroalimenta da violência dos grupos criminosos e vice – versa. O criminoso imita o policial exterminador e este, por sua vez, mimetiza o criminoso assassino num ciclo monstruoso sem fim. Lembrando a passagem de Mellor em sua obra “La Tortura”: “no es pues, impunemente que el Estado emplea los procedimientos de los criminales para luchar contra el crimen; por uma imitación ineludible, los criminales imitarán, a su vez, al Estado”.

Não obstante a cultura verdadeira não seja o apanágio para o fim da violência e mesmo da crueldade, conforme já se deixou bem claro neste texto, é fato que num mundo de ignorantes orgulhosos e sedentos de equalização, há um campo muito fértil para a proliferação de conflitos, inclusive induzidos muito mais facilmente por quem quer que os pretenda criar.

Em outro ponto Llosa aponta uma falha no raciocínio desenvolvido por Lipovetsky e Serroy. Estes autores alegam que ainda há espaço para a alta cultura, tendo em vista que milhões de turistas ainda visitam o Museu do Louvre, a Acrópole e os Anfiteatros gregos da Sicília. Isso seria um indicativo de que “a cultura não perdeu valor em nosso tempo e ainda goza ‘de elevada legitimidade’”. Mas, Llosa é certeiro ao demonstrar o quanto eles se enganam porque, na verdade, a visita multitudinária a esses locais não significa de modo algum, salvo raras exceções, real interesse pela “alta cultura”. O que, na grande maioria dos casos, incita essas visitas é o “mero esnobismo”, a futilidade de agir como o “perfeito turista pós – moderno”. Não é o interesse pela história e a arte clássica que os move, muito ao reverso, a visita e a vista de tudo, devidamente filmada ou fotografada e postada nos face books os libera do estudo e do conhecimento que exige esforço e dedicação. Há uma verdadeira desnaturação do significado e do fim desses museus e monumentos que se convertem em meros objetos de diversão e certa “obrigação do turista perfeito” (p. 25). Acresço aos argumentos muito bem postos por Llosa que entre essas visitas e uma viagem à Disney, na maioria dos casos, não há diferença alguma.

No seguimento o autor se refere à obra de Fréderic Martel (“Mainstream”) [1] que demonstra que hoje está em voga, na realidade, o que se poderia chamar de uma “cultura do entretenimento”, a qual substitui quase que totalmente tudo o que há aproximadamente cinquenta anos se compreendia por cultura (p. 25).

O seguinte trecho é esclarecedor:

“A imensa maioria do gênero humano não pratica, não consome nem produz hoje outra forma de cultura que não seja aquela que, antes, era considerada pelos setores cultos, de maneira depreciativa, mero passatempo popular, sem parentesco algum com as atividades intelectuais, artísticas, literárias que constituíam a cultura. Esta já morreu, embora sobreviva em pequenos nichos sociais, sem influência alguma sobre o mainstream. A diferença essencial entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, ao passo que os produtos deste são fabricados para serem consumidos no momento e desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann e ainda Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver a seus autores, continuar atraindo e fascinando leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os filmes de Hollywood, assim como os shows de Shakira,  não pretendem durar mais que o tempo da apresentação, desaparecendo para dar espaço a outros produtos igualmente  bem – sucedidos e efêmeros. Cultura é diversão, e o que não é divertido não é cultura” (p. 26 – 27).

E Martel vai fundo nessa transmutação do que se entende por cultura, a qual é capaz de moldar uma expressão contraditória como “cultura do entretenimento”. Ele demonstra que já se apagaram as distinções entre valor e preço. O segundo absorveu e anulou o primeiro. Hoje só há o critério do preço. O sucesso e a qualidade das coisas, das obras, dos espetáculos, de tudo enfim é medido pelas vendas. “O único valor é o comercial”. E a palavra valor aqui só pode estar empregada em um sentido deturpado. A derrocada da antiga cultura conduziu à aniquilação do “velho conceito de valor”. Agora este conceito é pervertidamente estabelecido pelo mercado (p. 27).

Aproveito o ensejo para mencionar um fenômeno do mundo jurídico no que se refere ao aspecto editorial atual. A avassaladora maioria das editoras somente trabalha com publicações de péssima qualidade, meros manuais para fins de concursos públicos, verdadeiras apostilas encadernadas. Qualquer obra que pretenda se aprofundar em temas jurídicos importantes encontra ingente dificuldade de aceitação editorial e de público.

Ora, mas tudo isso é sintomático de uma civilização que substitui a palavra pela imagem, o pensamento racional pela diversão vazia, o permanente pelo efêmero.

No item denominado “A civilização do espetáculo”, Llosa inicia com a narrativa de que durante a crise econômica de 2008 os tablóides de Nova York mobilizaram seus paparazzi a fim de que obtivessem uma foto de algum executivo se suicidando, saltando de algum prédio. O autor afirma, com razão, que não há imagem “que resuma melhor a civilização de que fazemos parte” (p. 29). Se é que isso pode ser chamado de “civilização”, a não ser numa forma deturpada como se fala hoje também da “cultura”.

É bem verdade que, como demonstra Foucault em seu livro “Vigiar e Punir”, a civilização sempre foi movida em menor ou maior proporção, por uma pulsão de morte, de sangue. As notícias violentas e as execuções bárbaras em praça pública sempre atraíram as multidões. Mas, há algumas diferenças fundamentais entre o passado histórico e o presente: uma primeira e essencial é que não se confundia esses espetáculos bárbaros com cultura. Aliás, desse “A República” de Platão, que se diferencia o “amante de espetáculos” do “amante do saber”. Para Platão o filósofo poderia até ser uma espécie de “amante de espetáculos”, mas de um espetáculo específico, qual seja, o “espetáculo do saber”, da “busca pela verdade”. Não de qualquer espetáculo. Não podia até então haver confusão entre eles. Agora, tudo já se misturou. Em decorrência dessa primeira diferença, vem o fato de que havia em muito maior número e grau pessoas que compreendiam essa divergência, o que já não mais se opera na atualidade, quando uma foto de um suicida divulgada no jornal pode ser tomada como uma espécie de manifestação da “cultura” contemporânea (sic), sem que haja muita reação crítica. Ademais, não havia a conformação e a satisfação com a mera transmissão dos fatos mediante imagens. Tudo havia que ser descrito pelas palavras. No próprio livro de Foucault, a execução de um sujeito de nome Damiens é descrita por meio de um texto detalhado (“O Corpo dos Condenados”). Não é um texto da lavra de Foucault, mas a transcrição de uma notícia. Dirão alguns que na época não havia os recursos da televisão e das fotos, mas o fato é que esses novos recursos podem ser úteis como uma adição à palavra e não como sua substituição. Ademais, lembremos que mesmo nos idos de 1757, quando se passa o episódio abordado por Foucault, já havia opções imagéticas como o desenho e a pintura. Não se pode chamar de cultura, a imagem de um suicida que cai de um prédio, apartada da análise profunda sob os pontos de vista político, social, econômico, ético e filosófico da questão.

A explicação para toda essa diferença qualitativa é dada pela definição do que seja civilização do espetáculo:

“O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal” (p. 29).

O autor retoma em seguida uma das grandes origens e causas dessa nova civilização do espetáculo, que é a pretensa “democratização da cultura”. Esse movimento nasce com boas intenções que se resumem na conclusão de que a cultura não devia ser privilégio de uma elite; de que em uma sociedade democrática e liberal haveria a obrigação de disponibilizar a cultura a todos igualitariamente. E o veículo para tanto seria a educação, assim como a promoção e a subvenção “das artes, das letras e das demais manifestações culturais”. Entretanto, essas belas intenções geraram o efeito da trivialização e mediocrização da “vida cultural”, já que se fazia necessário facilitar e tornar superficial o conteúdo dos produtos e atividades culturais, sob pena de que estes não chegassem realmente à maioria iletrada ou semi – letrada. Primou-se pela “quantidade em detrimento da qualidade”.  A partir da instalação desse estado de coisas, o populismo e a demagogia tratam de perpetuar o sistema, causando o desmantelamento da alta cultura e seu confinamento a nichos diminutos. A acepção da palavra “cultura” passa ser aquela preconizada pela antropologia que nivela todas as manifestações de uma comunidade qualquer, entendendo como preconceituosa qualquer escala valorativa ou hierárquica. No momento em que a ideia de cultura passa a abranger tanta coisa (usos, costumes, crenças primitivas, folclore, danças, remédios caseiros, roupas etc.) e a não fazer uma distinção entre níveis e valores, nada impede que se converta em mero entretenimento, um jeito agradável de passar o tempo. Note-se que não há problema algum em que a cultura também seja uma forma agradável de passar o tempo. Na verdade, somente sabendo apreciar, por exemplo, uma boa literatura é que se pode desfrutar do prazer que esta enseja. O problema está em tornar a cultura somente entretenimento ou passa – tempo. É o reducionismo cultural que paradoxalmente se produz com a ampliação do conceito de cultura que é problemático. Esse reducionismo e pulverização concomitantes depreciam e desnaturam a cultura. Dessa forma, “uma ópera de Verdi, a filosofia de Kant, um show dos Rolling Stones ou uma apresentação do Cirque Du Soleil se equivalem” (p. 30 - 31).

Somente em meio a essa algaravia inapreensível é que poderia ocorrer o fato narrado no Prefácio da segunda edição do livro “Modern Culture” de Roger Scruton, quando lhe são feitas críticas porque ao abordar a cultura moderna não aprofundou o estudo da fotografia, do cinema e da televisão, esta última apontada como “a mais importante invenção cultural de nossos tempos”. Ele então é obrigado a explicar e incluir uma passagem para deixar claro que seu livro se refere àquilo que “é” a cultura e àquilo que ela “significa”. Por isso não se aprofunda, por exemplo, na televisão, assim como não o faz com temas como “fast food”, carros customizados ou bonés de baseball. De qualquer forma é assustador que a crítica (se é que merece esse nome) vem para questionar um livro sobre “cultura”, apontando a falta da abordagem da televisão e pior, afirmando ser esta a mais relevante manifestação ou veículo de manifestação cultural da atualidade! Só faltou dizer que na televisão o mais relevante aspecto cultural seria o fenômeno dos “Reality Shows”!

Na verdade, com bem aduz Michel Henry (“A Barbárie”), a televisão é a manifestação por excelência da barbárie que conforma o reducionismo técnico de nossos dias. Ela simplesmente “afoga o espectador em um fluxo de imagens”, onde o tempo para a reflexão se esvai, é engolido pela sedução de cores e movimentos.

O pior é que isso conforma um círculo vicioso que não somente impede o surgimento de novos talentos culturais de envergadura devido ao ambiente deteriorado em que as pessoas já nascem e vivem, mas também desanima qualquer empreendimento mais sofisticado que alguém, por algum milagre, ainda tenha condições pessoais de levar adiante. Nas palavras de Vargas Llosa:

“Se em nossa época raramente são empreendidas aventuras literárias tão ousadas  como as de Joyce, Virginia Woolf, Rilke ou Borges, isso não se deve apenas aos escritores; deve-se também ao fato de que a cultura em que vivemos imersos não propicia, ao contrário,  desencoraja, esses esforços denodados que culminam em obras que exigem do leitor uma concentração intelectual quase tão intensa quanto a que as possibilitou. Os leitores de hoje querem livros fáceis, que distraiam, e essa demanda exerce uma pressão que se transforma em poderoso incentivo para os  criadores” (p. 32).

A produção e disseminação dessas obras superficiais criam uma geração de “bobos alegres”, de “ignorantes soberbos e arrogantes” dotados de uma nítida impressão, obviamente provocada por um autoengano, de que são cultos, revolucionários, modernos, de que estão na vanguarda do pensamento mais abalizado e agudo. E de que, para isso, não precisam de muito esforço intelectual. O resultado é um conformismo, uma complacência e uma autossatisfação capaz de paralisar cérebros e embotar espíritos (p. 32).

Releva transcrever o alerta de Llosa:

“Quanto uma cultura relega o exercício de pensar ao desvão das coisas fora de moda e substitui ideias por imagens, os produtos literários e artísticos são promovidos, aceitos ou rejeitados pelas técnicas publicitárias e pelos reflexos condicionados de um público que carece de defesas intelectuais e sensíveis para detectar os contrabandos e as extorsões de que é vítima” (p. 33 – 34).

Não passa despercebida a grande ênfase nos esportes que ocorre na mídia atual. Llosa lembra que na Grécia Antiga os esportes também eram valorizados, como devem ser mesmo, mas com a característica de um complemento à atividade intelectual (“mens sana in corpore sano”). Essa concepção correta não escapou à perspicácia de filósofos do calibre de Sócrates, Platão e Aristóteles, mediante a percepção de que as atividades físicas e mentais se enriqueciam e complementavam mutuamente.  O problema da época que vivenciamos é a sobreposição das práticas esportivas em relação à atividade intelectual. É possível aqui retomar o tema do mimetismo violento preconizado por René Girard e perceber que os esportes hoje se tornam um elemento de agregação imitativa, onde se possibilita a catarse e vazão de agressividade instintiva e exclusão do “outro”, onde se opera uma “conquista e aniquilação simbólica (e às vezes real) do adversário” (p. 35). Nada mais natural do que a conversão dos esportes a uma motivação para a agressão física e moral em nossos tempos, tendo em conta aquela sobreposição e separação da atividade espiritual e intelectual. O que resta neste quadro, a não ser a irracionalidade e a agressividade, a impossibilidade de uma relação humana racional? O que resta senão a animalidade pura e simples?

Até mesmo o uso de drogas se altera. Uma primeira alteração é a sua generalização, de forma que não se reduz mais a apenas certas camadas sociais. Também rarissimamente tem alguma ligação com a busca de novas experiências sensoriais e espirituais que motivavam as pessoas, muitas vezes inclusive com propósitos ligados à arte ou à ciência. Nada mais tem a ver com a manifestação de alguma rebeldia ou inconformismo relacionados com a pretensão de adoção de “formas alternativas de existência”. Não, nada disso. Hoje o consumo de drogas apenas retrata um hedonismo e uma fuga por meio da busca de prazeres passageiros que sejam capazes de construir uma barreira contra as preocupações, as responsabilidades e até mesmo o conhecimento de si. Assim como na busca pela atividade incessante, pelo ruído, o que se pretende é evitar a qualquer custo a “reflexão e a introspecção, atividades eminentemente intelectuais que parecem enfadonhas à cultura volúvel e lúdica”. As drogas hoje refletem o desejo incontido de

“fugir ao vazio e à angústia provocada pelo sentimento de ser livre e de ter a obrigação de tomar decisões, como o que fazer de si mesmo e do mundo ao redor – sobretudo se este estiver enfrentando desafios e dramas -, é o que suscita essa necessidade de distração, motor da civilização em que vivemos” (p. 36).

Embora o existencialismo não seja uma das correntes de pensamento filosófico que mais me atraem, parece que Sartre em sua peça “As Moscas” (1943), teve algum “insight” ao afirmar que “o homem é condenado a ser livre”. Essa afirmação demonstra o quanto há de responsabilidade no exercício da liberdade. Por isso a liberdade é fonte de angústia e dúvida, eis que nos força à escolha pessoal e solitária. Nem mesmo a omissão ou paralisia deixa de se conformar como uma espécie de escolha que, de forma paradoxal, nos torna livres e ao mesmo tempo obrigados a sempre escolher. É nesse contexto que as drogas podem ser um caminho fugidio, especialmente no seio de uma civilização de seres humanos que já não sabem pensar, refletir, mas vivem imersos num mundo de imagens, num caleidoscópio de cores e sem significância.

Dessa forma

“para milhões de pessoas hoje as drogas, assim como as religiões e a alta cultura ontem, servem para aplacar as dúvidas e as perplexidades sobre a condição humana, a vida, a morte, o além, o sentido ou a falta de sentido da existência. Na exaltação, na euforia ou no sossego artificiais que produzem, elas conferem a momentânea segurança de sentir-se a salvo, redimido e feliz. Trata-se de uma ficção, não benigna, mas maligna nesse caso, que isola o indivíduo e que só na aparência o livra de problemas, responsabilidades e angústias. Porque no final de tudo isso voltará a dominá-lo, exigindo doses cada vez maiores de aturdimento e superexcitação, que aprofundarão seu vazio espiritual” ( p. 36 – 37).

Esse quadro é extremamente adequado à superficialidade da “cultura” (sic) contemporânea, pois o alívio para as angústias e o desespero humano, como diria Sören Kierkegaard (“O Desespero Humano”) funciona como um mero paliativo ou analgésico, diversamente dos remédios em que consistiam a religião e a alta cultura. O encobrimento da patologia somente a faz agravar.

E falando em religião, logo advém a constatação de que o ateísmo e o agnosticismo somente ganharam terreno sobre as religiões e crenças na aparência. As religiões tradicionais ainda sobrevivem e crescem, embora seja constatável uma decadência dos ritos, do respeito, dos limites e da introspecção exigidos (um exemplo claro são os padres e pastores, cultos e missas convertidos em shows para atraírem milhares de crentes). A superficialidade invade também a religião e a religiosidade, mas não as suprime. E nos vãos deixados pelo desencantamento do mundo religioso tradicional, longe de se abrigar a predominância de uma postura estritamente laica, começam a proliferar

“seitas, cultos e todas as espécies de formas alternativas de prática da religião, desde o espiritualismo oriental em todas as suas escolas e divisões – budismo, budismo zen, tantrismo, ioga – até as igrejas evangélicas que agora pululam e se dividem e subdividem nos bairros periféricos, além de pitorescos sucedâneos como Quarto Caminho, Rosa Cruz, Igreja da Unificação – moonies -, cientologia, tão popular em Hollywood, e outras ainda mais exóticas e epidérmicas” (p. 37).

Nada mais natural num mundo e numa cultura onde se prima pela busca da facilidade, do descompromisso, da liberação de obrigações, de reflexão e de aprofundamento.

Essa situação com relação às religiões e à religiosidade é também diagnosticada por Jean – Claude Guillebaud em sua obra “A força da convicção – Em que podemos crer”? Ele afirma que

“a modernidade é, (...), portadora de perigosos reencantamentos. Poderíamos mesmo dizer que ela é habitada por inumeráveis e poderosos efeitos de crenças, introduzidos,  como que por contrabando, em um universo social que considerávamos dirigido pela razão”. (...). Pensávamos ter esvaziado o mar e descobrimos, com surpresa, que ele se encheu de novo. Pensávamos ter abolido a crença e vemo-nos desarmados diante da superstição. Pensávamos ter expulsado os deuses, e eis que  volta a viver entre nós...os ídolos”.

Mas, que razão leiga ou religiosa se poderia esperar de um mundo em que a “cultura” (sic) troca a palavra e a reflexão pela imagem e pelo ruído?

Não é possível ainda esperar muito de uma sociedade em que a Religião é superficializada quando não simplesmente substituída pela superstição, pelo folclore ou pelo esoterismo de xamãs e gurus. Isso porque, conforme bem percebe Llosa, para uma grande parte das pessoas a única via pela qual se compreende e obedece a uma ética é a da Religião (p. 38). Naturalmente que, nesse quadro, a decadência e superficialidade religiosa somente podem conduzir à decadência moral. E isso não é um prognóstico, mas um evidente diagnóstico comprovado empiricamente no dia a dia.

A cultura verdadeira não pode sobreviver numa sociedade em que a figura do intelectual que até alguns anos ainda tinha influência, é relegada a um espaço de ocultação criado por uma desolação ou cansaço provocados pela incompreensão reiterada. Nessa situação não é incomum que os intelectuais, espécie em extinção, se recolham a grupos isolados que em praticamente nada influenciam a sociedade em seu cotidiano. Impera uma ilustre ausência dos intelectuais na sociedade e um domínio total dos poderes políticos e administrativos. Os intelectuais fogem dos debates públicos porque serão de antemão incompreendidos e sabem muito bem disso. Muito poucos se aventuram e, quando o fazem, logo são convertidos em títeres da mídia no seio da qual somente o histrião pode prosperar (p. 39 - 40).

Já foi mais de uma vez consignado neste texto que a inteligência e a cultura, por si sós, não são capazes de evitar a violência e a crueldade. E talvez, como bem indica Llosa, um dos motivos para a perda de legitimação dos intelectuais seja seu envolvimento ao longo da história na produção direta ou indireta de regimes totalitários e genocidas (v.g. Heidegger, Nietzche, Hegel, Marx entre muitos outros). No entanto, a maior razão para essa perda de influência se deve diretamente ao “ínfimo valor que o pensamento tem na civilização do espetáculo”. Há um claro predomínio, tantas vezes destacado neste trabalho, “das imagens sobre as ideias”, possibilitando que “os meios audiovisuais, cinema, televisão e agora a internet” releguem os livros ao museu das coisas ultrapassadas (p. 40 – 41).

No seguimento Vargas Llosa passa a analisar a decadência da cultura no campo das artes plásticas a partir de quando foi engolfada pela “civilização do espetáculo”. Desse momento em diante a arte é admitida como um mero “jogo e farsa”. O autor apresenta alguns exemplos como o de um mictório apresentado como obra de arte, um tubarão em conserva em um vidro de formol vendido por 12 milhões e 500 mil euros. E tudo isso não é visto como estelionato intelectual ou gozação, mas como genialidade! Llosa deixa claro que essa situação não depõe contra os “artistas” (sic), mas contra o tempo em que vivemos:

“Tempos em que o descaramento e a bravata, o gesto provocador e desprovido de sentido, com a cumplicidade das máfias que controlam o mercado da arte e dos críticos cúmplices ou otários, bastam às vezes para coroar falsos prestígios, conferindo o estatuto de artistas a ilusionistas que ocultam sua indigência e seu vazio por trás do embuste da suposta insolência. Digo ‘suposta’ porque o mictório de Duchamp tinha pelo menos a virtude da provocação. Em nossos dias, em que o que se espera dos artistas não é talento nem destreza, mas pose e escândalo, seus atrevimentos não passam de máscaras de um novo conformismo. O que antes era revolucionário virou moda, passa – tempo, brincadeira,  ácido sutil que desnatura o fazer artístico e o transforma em representação de teatro Grand Guignol” (p. 42 – 43). [2]

Nas artes plásticas a noção estética se perde de forma assustadora ao ponto de ser impossível “discernir com certa objetividade o que é ter e o que é não ter talento, o que é belo e o que é feio, qual obra representa algo novo e duradouro e qual não passa de fogo de palha”. Reina uma confusão diabólica onde verdadeiros artistas se misturam indissoluvelmente com os embusteiros de plantão. Segundo o autor é nas artes plásticas que se pode ver a antecipação do que pode significar a perda do sentido do termo cultura e sua banalização. Certamente um dos exemplos mais chocantes é o do “artista” (sic) Fernando Pertuz, na Colômbia, o qual teria apresentado uma “performance”  numa “galeria de arte” (sic), simplesmente defecando diante do público e, em seguida, com grande “solenidade” teria passado a ingerir as próprias fezes! Isso é o que se chama de “arte” na “civilização do espetáculo” (p. 43).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

E o que dizer do público que “consome” essa espécie de barbaridade?

Há uma passagem do livro de Lobão (“Manifesto do Nada na Terra do Nunca”) que entendo bem apropriado:

  “Você é dependente de ideias pré – fabricadas, patrocinadas por um bando de salafrários autoindulgentes. Você é faminto de misérias embelezadas que se alimenta de migalhas, a você atiradas como um animal domesticado, abanando o rabo, agradecido e contente”.

Essa é a descrição mais genuína e perfeita do grande público da “civilização do espetáculo, porque se houvesse um mínimo de visão crítica, um olhar ao redor com alguma procura de consistência, seria o suficiente para que nada do que ocorre e se desenvolve no seio dessa civilização deturpada tivesse condição de sobreviver.

Vargas Llosa prossegue seu escrutínio com a música e apresenta o quadro ridículo do “músico e compositor” John Cage que se senta diante de um piano e fica parado durante 4 minutos e 33 segundos, deixando que os ruídos do auditório e da sala de apresentação sejam o “espetáculo”! O tal compositor alega que seu fim é desconstruir os “preconceitos que estabelecem distinções de valor entre o som e o barulho ou ruído” (p. 44). Isso só pode ser produto de uma civilização que soçobra ao léu, como uma embarcação sem rumo, ou melhor, rumo à derrocada inevitável.

E o sexo como fica nessa civilização incivilizada?

Ele é o que Llosa designa como “sexo light”, desprovido de amor, sem criatividade ou imaginação, reduzido aos instintos e à pura animalidade. Um desafogo biológico, fisiológico em nada diferente de comer ou defecar. O sexo não enriquece, mas empobrece hoje o sensível e o emocional, não aproxima e sim distancia as pessoas, pois somente tem o significado de um concurso carnal. Ele não alivia a solidão humana porque depois dele segue “uma sensação de fracasso e frustração” (p. 46). O “Eros” tipicamente humano morre e dá lugar ao instinto animalesco. 

Vale transcrever a análise de Roger Scruton em seu “Guia de Filosofia para pessoas inteligentes”, onde traça a linha entre o desejo sexual erótico humano e o mero apetite animalesco:

“As nossas emoções sexuais são fundadas em pensamentos individualizados: és tu quem eu quero e não outro. Esta intencionalidade individualizada não é simplesmente originada pelo fato de que são pessoas (por outras palavras, os indivíduos) quem desejamos. É originada pelo fato de que o outro é desejado como um sujeito corporizado, e não apenas como um corpo. Pode perceber-se o ponto traçando um contraste entre desejo e apetite (um contraste expressamente negado por Freud)”.

Pois então, Freud e outros naturalistas – materialistas são grandes contribuidores para a ereção dessa “civilização do espetáculo”, já que fazem questão de desencantar o mundo, de biologizar ou psicologizar a tudo e a todos. Como a cultura genuína pode sobreviver sem espírito?

Do sexo Llosa vai para a análise do Jornalismo. Talvez sem perceber o autor foi por demais oportuno, já que é no Jornalismo da atualidade onde se encontram efetivamente grandes doses de “sacanagem”, o que combina muito bem com a concepção paupérrima de sexo que predomina na “civilização do espetáculo”.

O autor demonstra como as divisas entre o Jornalismo sério e o sensacionalista vão se desvanecendo. É que a colocação da diversão e do entretenimento como valores supremos, provoca no âmbito da informação “uma perturbação subliminar das prioridades”:

“As notícias passam a ser importantes ou secundárias sobretudo, e às vezes exclusivamente, não tanto por sua significação econômica, política, cultural e social, quanto por seu caráter novidadeiro, surpreendente, insólito, escandaloso e espetacular” (p. 47).

Essa pode ser uma das explicações para que um escândalo sexual referente à prática de sexo oral pelo ex – presidente norte americano Bill Clinton com sua estagiária tenha sido muito mais divulgada na mídia em geral e, consequentemente conhecida pelo público, do que o fato de que há sérias suspeitas sobre a falsidade dos documentos pessoais do atual presidente Obama.

Quando a informação, que é inclusive no campo jurídico um direito fundamental do indivíduo, é convertida em entretenimento, passa-se a legitimar como Jornalismo tudo aquilo que somente poderia ser assim chamado de forma “marginal”, senão clandestina. Pululam nesse universo pervertido escândalos, deslealdades, bisbilhotices, invasões de privacidade e até mesmo mentiras, difamações, calúnias e toda espécie de informação sem fundamento (p. 49). Pelo esgoto, obviamente, vai a credibilidade daquilo que antes era chamado de Jornalismo e era considerado, ao menos a princípio, uma fonte fidedigna de obtenção de informação.

Mas, a culpa pode ser jogada somente nas costas dos jornalistas? Não. Simplesmente porque é o público que exige essa espécie de atividade e aquele “jornal ou programa”, aquele jornalista que não se curvar a essa exigência arrisca perder sua plataforma de manifestação ou, no máximo, ali permanecer “falando com fantasmas” ou com as paredes (p. 51).

No item seguinte de título “Breve discurso sobre a cultura”, Llosa procede a uma exposição sobre a variação dos significados da palavra “cultura” e do próprio conteúdo do conceito no decorrer da história. Expõe que durante vários séculos o conceito de cultura era inextricável da religião e da teologia. Rumando para a Grécia Antiga toma corpo na forma da filosofia. Em Roma no Direito e no Renascimento encastela-se nas artes e na literatura. Mais proximamente, a partir do Iluminismo, a cultura vai abrigar-se muito fortemente nas ciências e nas descobertas científicas. Como bem demonstra o autor, houve, ao longo dos séculos, muitas variantes desse conceito, mas algo permanecia intocado:

“cultura sempre significou uma soma de fatores e disciplinas que, segundo amplo consenso social, a constituíam e eram por ela implicados: reivindicação de um patrimônio de ideias, valores e obras de arte, de conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos em constante evolução, fomento da exploração de novas formas artísticas e literárias e da investigação em todos os campos do saber” (p. 59).

Pois é, mas agora o autor indica uma mudança radical que conduziu ao desvanecimento da noção ou do conceito de cultura. A questão é que a diluição, a banalização ou pulverização do que é considerado cultura levou a tal estado em que todos podem se julgar cultos, o que faz exatamente o efeito contrário, porque se todos são cultos, então ninguém é verdadeiramente culto (p. 60).

Esse fenômeno não é apanágio do conceito de cultura, mas de várias noções que somente podem ser bem compreendidas diante de seu contrário, como, por exemplo, claro/escuro; bem/mal; bonito/feio, capaz/incapaz etc. No caso da cultura há necessidade de trabalhar com presença e ausência (presença de cultura – culto; ausência de cultura – inculto). Na medida em que não existe mais essa distinção de presença/ausência, quando tudo se faz “presença”, então já não existe o conceito. Ele se torna inapreensível e até incompreensível.

Vargas Llosa é certeiro ao apontar como a origem remota dessa confusão diabólica no que diz respeito ao conceito de cultura a atuação de antropólogos que, no intuito de “respeitar e compreender” os grupos sociais primitivos por eles estudados fizeram uma tábula rasa ou equalização artificial de toda e qualquer manifestação, passando a afirmar que eventuais hierarquias seriam “preconceitos” (p. 60). A partir de então uma ópera teria o mesmo valor cultural e musical de uma dança e canto de uma tribo do Xingu!

Cultura passa então a ser quaisquer somas de “crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, indumentária, usos, sistemas de parentesco, em resumo, tudo o que um povo diz, faz, teme ou adora” (p. 60). A absurdidade pode ser bem representada pela seguinte constatação: uma poesia de Fernando Pessoa seria culturalmente equiparada a uma lista de palavrões que costumam ser usados em determinado grupo social! A verdade é que, sem se dar conta, a sociedade foi engolindo uma empulhação que a levou a um nível patológico de desorientação.

Note-se que a raiz dessa espécie de (des) orientação semântica e de conteúdo também tem como natural fonte pensamentos sofisticados do passado, tais como os de Hume (“Tratado da Natureza Humana” e “Investigação sobre o entendimento humano”) e Kant (“Crítica da Razão Pura”), na medida em que apregoam a impossibilidade de acesso ao “ser em si”, concebendo o mundo,coisas e pessoas como meros produtos do intelecto, senão como efetivamente inexistentes, simples ilusões sensoriais da nossa mente. Nesse quadro, na medida em que nada é o que é, mas apenas objeto de uma catalogação pessoal e idiossincrática do intelecto humano, é claro que distinguir o que seja ou não uma manifestação genuinamente cultural ou hierarquizar essas manifestações seria algo totalmente arbitrário. A grande questão seria sugerir a esses pensadores que vivessem de acordo com suas convicções filosóficas e não somente as colocassem no papel. Aliás, nem deveriam ter escrito nada porque suas teorias também seriam inexistentes ou, no máximo, não poderiam ser verdadeiras ou falsas, já que produtos de um intelecto apenas, sem existência efetiva por si. A eles deveria ser proposto entrarem numa jaula com um leão feroz, e pensarem que ele não existe ou que existe, mas não é um leão feroz, apenas se apresenta assim por força do intelecto. O resultado seria desastroso, assim como têm sido desastrosos os resultados dessas teorias em sua influência na sociedade.

Uma mistura de bom – mocismo e de consciência pesada do Ocidente em geral e da Europa em especial em relação às sociedades primitivas resultou na criação de um conceito pervertido de cultura que se disseminou pelo mundo afora, como geralmente acontece com tudo que é ruim.

Pascal Bruckner em “A Tirania da Penitência – Ensaio sobre o masoquismo ocidental”, chama a atenção para uma espécie de consciência pesada européia e ocidental em geral que conduz a essa espécie de perversão bem intencionada (e de boas intenções o inferno está cheio). Afirma com acerto o autor que “nada é mais ocidental do que a detestação do Ocidente, essa paixão de se maldizer, de se fustigar”. Ele destaca a diferença entre o arrependimento e o remorso, onde

“o primeiro reconhece o erro para melhor se separar dele, para provar a graça da convalescença, o segundo se apega a ele por necessidade doentia de experimentar as queimações que provoca”.

É essa espécie de remorso, como um arrependimento mal digerido, que impele a civilização ocidental a prostrar-se diante de sociedades primitivas, como num verdadeiro “mea culpa”, em busca do perdão por um passado remoto que não se apaga somente porque agora vamos bajular indevidamente certos grupos. 

Trata-se, em verdade de uma rebeldia às avessas como mais adiante descreve Bruckner:

“Antigamente o rebelde era um homem do povo que queria impressionar o burguês; agora é um burguês que quer impressionar o povo”.

Não há nada demais em reconhecer que cada grupo social, com seus costumes, conhecimentos, práticas etc. tem seu valor, pois que, de uma forma ou outra, contribui para a civilização de forma positiva.  Não obstante, outra coisa muito diversa é a crença de que todas as “culturas” se equivalem, legitimadas pela sua simples existência. Aqui atua a praga do politicamente correto, impondo a concepção de que seria arrogância, dogmatismo, colonialismo ou até mesmo racismo proceder a uma hierarquia entre culturas superiores e inferiores ou mesmo entre culturas “modernas e primitivas”.  No bojo da boçalidade do politicamente correto todas as “culturas” são “expressões equivalentes da maravilhosa diversidade humana” (p. 60 – 61). Vamos então embarcar nesse paraíso colorido e equiparar, por exemplo, o conceito da virtude da piedade, moldado no seio da filosofia, da religião e da ética ao longo de milênios, ao canibalismo de grupos primitivos. Afinal, é tudo a mesma coisa, dar de comer aos necessitados ou comê-los bem ou mal passados, não é?

Mas, não foi somente a antropologia que deu seu contributo à derrocada da “alta cultura”. Também os sociólogos no labor da crítica literária produzem uma espécie de “revolução semântica” semelhante e incorporam ao conceito de cultura, “a incultura” (!!!!), sob o codinome de “cultura popular”, que designaria uma forma de cultura com menos sofisticação, porém mais espontânea (p. 61). A espontaneidade externa ao ato passa a ser o critério, deixando-se de lado o seu conteúdo. É dentro desse contexto que realmente quando um suposto “artista” (sic) defeca numa galeria de “arte” (sic) e ingere as próprias fezes, isso pode ser considerado como uma manifestação cultural. Talvez até o ápice da “altíssima cultura” no seu conceito contemporâneo, já que maior espontaneidade que isso impossível! Uma criança de dois anos com as mãos sujas de tinta diante de uma tela pode certamente produzir uma obra – prima muito mais espontânea do que todo o acervo de um Michelangelo!

Roger Scruton, em “Modern Culture”, expõe o pensamento de Raymond Williams, crítico literário anti – elitista que construiu um conceito de cultura passível de abranger todas as formas de arte popular e entretenimento dos tempos modernos. A consequência disso foi a perda absoluta da especificidade do termo “cultura”, a tal ponto de se considerar como tal qualquer atividade ou artefato que se identifique como um produto de  interação social.

Esse é o efeito do domínio quase absoluto do “politicamente correto” que chega a fazer sumir do vocabulário geral, por temor de incidir em algum lapso condenável pelo tribunal inclemente da massa ignara e hipnotizada, as categorias e os limites que faziam a divisória entre o culto e o inculto, entre a cultura e a incultura. Não há mais ninguém desprovido de cultura, somos todos cultos de alguma forma, por mais hedionda que seja (aliás, hediondo sou eu ao dizer que é hedionda). Não, não há mais nada que seja inaceitável. É possível se falar “cultura da pedofilia” (pasmem), “cultura da maconha”, “cultura punk”, “cultura da estética nazista” e outras monstruosidades afins. Portanto, de uma forma ou de outra somos todos cultos, mesmo sem abrir sequer a página de um livro, sem visitar um museu, sem ir a uma exposição de pintura, assistir a um concerto, sem ter conhecimentos básicos de humanidades e nem mesmo conhecimentos científicos e tecnológicos do mundo atual (p. 62). Basta, por exemplo, fumar um “baseado” e já estamos inseridos numa “cultura” ou então usar vestimentas pretas e ornadas com metais e um corte moicano, pronto, estamos na “cultura punk”! Certamente não é impossível criar uma “cultura do analfabetismo”, o que tem isso? Qual o problema? Os hábitos dos analfabetos e suas táticas para decorar os ônibus certos devem ser uma espécie de cultura também tão elevada quanto aquela que se pode obter lendo Thomas Mann ou Dostoiévski!

A ciência também já foi um honroso parâmetro para a noção de cultura. Mas, na atualidade essa mesma ciência vai deixando de lado toda sua teorética e prática (no sentido aristotélico dos termos) para apoiar-se quase que exclusivamente numa poiética oca, num fazer automatizado. As universidades são inundadas pela pura poiética e tudo que seja mais profundo que isso é encarado como perfumaria com a qual não se pode perder tempo. Até os fundos governamentais para pesquisas dão preferência ou exigem que a pesquisa tenha uma aplicação pragmática direta, se possível com resultados financeiramente apreciáveis. Em suma, pode-se afirmar seguramente que as Universidades se converteram de centros de formação cultural genuína em meras instituições produtoras de mão de obra, identificando-se perfeitamente com a “cultura de massas”.  É perfeita a constatação de Llosa de que entre cultura e especialização há um abismo enorme (p. 63). É visível que podem existir homens altamente especializados, inteligentes e competentes em muitas áreas científicas, mas tremendamente incultos. Qualquer um que leia os livros de Richard Dawkins (competente biólogo) com seu ateísmo militante permeado de incultura teológica, filosófica, ética, histórica, artística e geral constata claramente essa miséria.

Como bem acentua Vargas Llosa:

“O especialista enxerga e vai longe em seu campo, mas não sabe o que ocorre ao seu redor e não perde tempo averiguando os estragos que seus êxitos poderiam causar em outros âmbitos da existência, alheios ao seu. Esse ser unidimensional pode ser, ao mesmo tempo, um grande especialista e uma pessoa inculta porque seus conhecimentos, em vez de conectá-lo com os outros, o isolam numa especialidade que é apenas uma célula diminuta do vasto campo do saber” (p. 64).

Só que a banalização da cultura operada na atualidade facilita a ação desses indivíduos, dos quais Dawkins acima citado é apenas um exemplo, e eles escrevem livros sobre tudo, opinam sobre tudo, se arvoram a ditar regras e “verdades” e, no seio da sociedade do espetáculo, ainda se destacam como se fossem realmente intelectuais de alto calibre. Mais que isso, suas superficialidades se transformam em “bestsellers” e disseminam ainda mais incultura e autoengano por toda a sociedade já doente. Fazem isso com o aval do posto de “cientistas” e a autoridade da “Ciência” que hoje paira praticamente absoluta. Ciência esta que também é uma palavra que sofreu uma metamorfose ao longo do tempo para ser entendida hoje como conhecimento seguro e intocável, quando sua natureza real e útil é exatamente a de um conhecimento precário, sujeito sempre à refutação. Mas, isso seria matéria para outro ensaio. De qualquer forma pode-se desde logo afirmar que essa mutação da forma de encarar o conhecimento científico se deve em grande parte também à decadência cultural da sociedade moderna, embora todo o processo tenha se iniciado mais fortemente já no século XIX com o Positivismo comteano. A diferença é que anteriormente ainda havia alguma parcela significativa e influente que tinha uma visão crítica dessa situação. Por isso é relevante a assertiva de Roger Scruton em seu “Guia de filosofia para pessoas inteligentes”:

“A minha esperança é usar a filosofia da melhor maneira, que é a de escorar o mundo humano para o manter em pé contra os mares corrosivos da pseudociência”.

Realmente é preciso acordar da letargia porque como bem destaca Michel Henry (“A Barbárie”), vivemos numa época marcada por um desenvolvimento ímpar do saber, o qual, porém, segue “lado a lado com o desmoronamento da cultura”.

No seguimento Henry assim se manifesta numa constatação chocante e realista:

“(...): a ciência não tendo qualquer relação com a cultura, o desenvolvimento da primeira nada tem a ver com o da segunda. Pode-se conceber, no limite, um hiperdesenvolvimento do saber científico, acompanhado de uma atrofia da cultura, com sua regressão em certos domínios ou em todos os domínios ao mesmo tempo e, ao final desse processo, sua aniquilação. Ora, semelhante figuração não é nem ideal nem abstrata, é a do mundo em que vivemos, mundo no qual acaba de surgir um novo tipo de barbárie, mais grave do que todas aquelas que a precederam, e em virtude da qual o homem corre o risco de perecer”.

Entretanto, por mais que a Ciência e até a pseudociência ganhem campo e cheguem a ocupar de forma exclusiva e indevida talvez o último resquício de algo que guarde alguma semelhança com o que se entendia por cultura, há outro aspecto que vem sofrendo uma alteração muito forte. É a questão da Autoridade. Esta, em sua acepção original, praticamente inexiste em decorrência de um pensamento revolucionário baseado em falácias de liberdade, igualdade e utopias. Autoridade torna-se hoje sinônimo de autoritarismo e é nisso que se convertem governos revolucionários que são construídos com base nessas falácias acima mencionadas.

Como esclarece Llosa, o sentido original do termo latino “auctoritas”, não como exercício de poder, mas enquanto “prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição por sua legitimidade ou por sua qualidade ou competência em alguma matéria”, simplesmente foi se diluindo até desaparecer (p. 75 – 76).

Em meio a toda essa caminhada rumo ao abismo da imbecilidade o relativismo em várias facetas vai dominando tudo (intelecto, moral, arte, direito etc.). Ao mesmo tempo grandes obras como as de Mário Ferreira dos Santos, um dos maiores filósofos brasileiros, vão mofando em sebos, legadas ao esquecimento. Uma breve leitura de sua “Filosofia Concreta” nos esclareceria que se a perfeição não existe para o homem não significa que o aperfeiçoamento não é possível. Que se a sabedoria plena é inalcançável, isso não impede o esforço desejoso e amoroso em direção a ela naquilo que o magistral autor denominou de “Tímese Parabólica”, representando geometricamente e esquematicamente esse esforço contínuo em uma prática filosófica como uma parábola que se estende em direção a uma reta e se aproxima, mas não a toca. É com base nesse esforço humano em busca da sabedoria que se pode reconhecer o valor do conhecimento, da busca incessante pela verdade e nesse processo, a autoridade daqueles que se dedicam com honestidade a essa árdua tarefa.

Similar diagnóstico faz Roger Scruton (“Guia de filosofia para pessoas inteligentes”) a respeito do império do relativismo na sociedade moderna:

“A condição pós – moderna sucede quando este tipo de narrativas deixou de ser crível (as que se fundam na legitimidade e autoridade universais de certos conceitos e princípios). A última réstia de esperança foi soprada e estamos no meio da ruína das nossas queridas ilusões, olhando para um mundo de legitimidade que pode ser incessantemente questionado, mas nunca confirmado. A reserva de afirmação secou por fim, e nada nos resta à exceção da escolha entre o desespero e a ironia” (interpolação minha).

Esse fenômeno foi uma catástrofe geral, mas no âmbito da educação teve certamente seu ápice destrutivo. O professor ou mestre passou a simbolizar um suposto sistema opressivo e sua Autoridade é interpretada como autoritarismo. Aquele que ensina não é mais um benemérito, mas um carcereiro cruel que deve ser combatido senão abatido em nome da “liberdade e dignidade” humanas. Esse mestre perde sua credibilidade não somente perante os alunos, mas também perante os pais e com isso não pode exercer eficazmente sua função de transmissão de “valores e conhecimentos”. Autores como Michel Foucault (“Vigiar e Punir”) que reduzem a sociedade a um aparato de sistemas de dominação para conter o “espírito crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes”, contribuem fortemente para a ereção dessa fantasia perniciosa (p. 76).

Por incrível que possa parecer essa concepção pervertida dominou quase que completamente os próprios profissionais e estudiosos da pedagogia. Então se operou uma verdadeira “satanização de si mesmos”, no seio da qual a reprovação de alunos incapazes ou relapsos seria uma aberração cruel. Mesmo a distinção por notas e conceitos seria uma espécie de preconceito que afetaria a sagrada “igualdade”, se é que não seria uma espécie de “racismo” (p. 76 – 77)!

Qual o resultado disso, senão uma isonomia da mediocridade? Não, mediocridade é dizer muito, uma isonomia da ignorância arrogante, do autoengano abissal.

Como acentua Llosa:

“Acreditando trabalhar para construir um mundo realmente livre, sem repressão, alienação e autoritarismo, os filósofos libertários como Michel Foucault e seus inconscientes discípulos atuaram com muito acerto para que, graças à grande revolução educacional que propiciaram, os pobres continuassem pobres, os ricos continuassem ricos, e os inveterados donos do poder, com o chicote nas mãos” (p. 77 – 78).

Quando se constata o paradoxo em que os próprios professores se marginalizam mediante as teorias pedagógicas por eles mesmos arquitetadas, isso pode parecer um absurdo inacreditável. Mas, na realidade, como bem aduz Scruton (“As vantagens do pessimismo”), trata-se do domínio de uma das falácias mais comuns daqueles que pretendem destruir a cultura tradicional e reconstruir sobre seus escombros uma suposta “nova cultura”, que nada mais é do que uma barbárie. A pseudociência da Pedagogia constitui em sua raiz a estratégia falaciosa denominada de “falsa perícia”. Essa estratégia consiste em “inventar peritos, apoiados por todo o aparelho da erudição, da investigação e da ‘crítica dos pares’, e dotados de conceitos e agendas que tornem praticamente impossível frustrar-lhes os intentos”. O mesmo fenômeno se repete na atualidade com certas áreas de “pesquisa” (sic), tais como: “estudos das mulheres, estudos de gênero, estudos gay e estudos da paz, os quais têm a finalidade real de impor conclusões pré – determinadas por intermédio de um amontoado de “pseudoerudição”. Mas, realmente a mais destacada e influente entre todas foi a disciplina da “educação” ou da pedagogia. Nela se opera a “invenção” de uma “disciplina acadêmica” com a finalidade de obtenção do prestígio para uma nova perspectiva da escola como espaço destinado não mais a “reproduzir saber” e o passar, mas para proporcionar “igualdade social”. O que deveria ser um simples efeito da instrução é convertido em seu único objetivo.

O grande problema dessas ideologias que se separam do mundo real para projetar um mundo futuro onde todos os problemas serão equacionados, segundo Roger Scruton (“As vantagens do pessimismo”) é que não são construídas a partir de simples equívocos pontuais de raciocínio. Elas são erigidas a partir daquilo que se pode chamar de um “molde mental” para o qual a verdade é algo irrelevante. E conformam aquilo que o filósofo húngaro, Aurel Kolnai (“The Utopian Mind and other essays”) denominou “mente utópica”, ou seja, uma mente moldada por uma moral particular e uma necessidade metafísica que leva à aceitação de absurdos não a despeito da sua absurdidade mas por causa dela”.

O futuro utópico e maravilhoso de bondade, paz e felicidade, justifica plenamente qualquer atrocidade cometida pelo caminho. Bem descreve a mente utópica também Michael Burleigh, em “Sacred Causes”:

“Sacrificando-se por uma ideia, não hesita em sacrificar também os outros por ela. Nos seus contemporâneos apenas sabe ver, ou meras vítimas dos males do mundo, que sonha erradicar, ou agentes desses males. (...). Esse sentimento de ódio pelos inimigos do povo constitui o fundamento psicológico, concreto e ativo, da sua vida. Assim, o enorme amor que tem pela humanidade do futuro faz nascer nele um ódio enorme pelas pessoas; a paixão que tem pela instituição de um paraíso terrestre transforma-se numa paixão pela destruição”.

Foucault é um exemplo pessoalmente trágico disso quando, motivado por sua paranóia denuncista de estruturas de dominação social, negou a existência da AIDS, apontando-a como mais um dos estratagemas dos dominadores em conluio com os cientistas arregimentados para espalhar terror e impor a repressão sexual de acordo com uma moral judaico – cristã. Pois é, Foucault morreu exatamente de AIDS e sem o devido tratamento (p. 78). Eis como uma pessoa de inteligência considerável e até bem acima da média é capaz de imbecilizar-se a si mesmo de forma tão profunda e produzir acólitos que reproduzem ferozmente essa imbecilização no seio da coletividade. Sua postura foi tão destrutiva que chegou à autodestruição.

Falando nisso vem a propósito o conceito sério e concomitantemente jocoso de Olavo de Carvalho em “O Imbecil Coletivo I”:

“O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de um certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou até mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras”.

Nessa tarefa de transformar doenças em supostos instrumentos ou pretextos de dominação social e exclusão, Foucault era mesmo um mestre da prestidigitação da realidade, como demonstra Roger Scruton (“As vantagens do pessimismo). Em 1961 vem a público com “História da Loucura na Idade Clássica”, onde afirma que o louco é somente alguém etiquetado e definido por aqueles que de alguma forma ameaça. Então é oprimido por suas leis e submetido à sua jurisdição. A loucura em si não existiria, seria uma categoria inventada com o propósito não de auxiliar o louco, tratá-lo, curá-lo ou ao menos tutelá-lo, mas de mantê-lo em rédeas, impondo-lhe ou reimpondo-lhe uma ordem moral que ele questiona e desafia. No seguimento propõe que a razão está com os loucos (note-se a incongruência disso) e que seu desafio da ordem é uma rebeldia sã. Sua suposta loucura é uma imposição heterônoma injustificada, de maneira que a única cura possível é a libertação de seus constrangimentos físicos e psíquicos, de tal forma que possa usufruir da liberdade primeva à qual deu correta e justamente ouvidos.

Qual foi o belo resultado de toda essa empulhação?  O resultado foi que prevaleceu a falácia do nascido livre e nasceu uma revolução antimanicomial exacerbada e irrealista que somente vem causando dor e sofrimento para pacientes e seus familiares, bem como diversos contratempos para a comunidade em geral (Scruton – “As vantagens do pessimismo”).

Ainda na área pedagógica, menos badalado do que Foucault, mas tão ou mais pernicioso que este, não poderia de deixar de ser citado Jacques Rancière com sua obra “O Mestre Ignorante”. Sob o pretexto aparentemente benéfico e produtivo de incentivar e indicar os caminhos para a “emancipação intelectual” das pessoas, o citado autor produz uma desconstrução terrível da relação entre mestre e discípulo, absolutamente impraticável e produtora não de “emancipação intelectual”, mas de simples aprofundamento na ignorância arrogante. Não se acha Rancière muito distante do aclamado brasileiro Paulo Freire e sua malfadada “Pedagogia do Oprimido” que ideologizou o ensino brasileiro e o conduziu ao que hoje é, não sendo à toa que foi recentemente laureado como o patrono da educação nacional! Efetivamente nome melhor não poderia surgir para a obra de desmantelamento produzida ao longo do tempo com base em suas teorias. Efetivamente, se o Brasil se encontra na situação lastimável em que está na área da educação não o mérito, mas a “culpa” pode ser realmente atribuída com toda a justiça do mundo e até divina ao Sr. Paulo Freire.

Como dito, Rancière não se distancia de nosso ícone nacional ao afirmar que “não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar”. Ele também se sustenta na falácia da igualdade dizendo que a questão do ensino não é um problema de método ou técnica, ou de saberes, de avaliação ou comunicação, mas “uma questão política” que se reduz a “saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser ‘reduzida’, ou uma igualdade a ser verificada”. Daí parte para a descoberta da suposta igualdade entre mestre e aluno, de forma que o ato de “explicar” algo a alguém se converte em pura maldade, desejo de poder e submissão. Em suas palavras:

 “Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia”. Daí surgiria o fenômeno do “embrutecimento” consistente na submissão de uma inteligência a outra inteligência. A missão do professor então é muito bem descrita numa frase cômica se não fosse trágica:

 “É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes”.

E a educação segue como instrumento de derrocada do conceito de cultura estudado neste trabalho quando o autor sob comento alega que o “embrutecimento” não deriva da falta de instrução, mas sim da “crença na inferioridade de sua inteligência”. Ora, Rancière e muitos outros, para dizer a verdade, a quase totalidade da suposta intelectualidade contemporânea, especialmente na área pedagógica, não se dá conta de que um dos atributos e caracteres da verdadeira inteligência, assim como da sanidade mental, é perceber seus limites, é dar-se conta de sua ignorância. Jamais arrogar-se a sapiência inata e igualitária por pura natureza, sem mérito, sem esforço e, principalmente, sem uma orientação inicial. É inviável que alguém se emancipe intelectualmente sem que tenha uma instrução inicial de outrem que esteja sim acima dessa pessoa em termos intelectuais. Da mesma forma é inviável a um ser humano aprender a falar ou andar sem a observação de outros que andam e falam, dominam essas atividades em relação de quantidade e qualidade muito superiores. Nesse caso a falsa emancipação, pregada nos termos de Rancière, faria com que a humanidade ficasse balbuciando sons ininteligíveis e engatinhando à disposição dos predadores até seu fim inevitável.

Como bem destaca Roger Scruton (“As vantagens do pessimismo”), a idolatria de uma igualdade inexistente e de uma ignorância arrogante, conduz à degradação das avaliações com o suposto fim de impedir que o sistema de educação se converta em produtor e reprodutor de “desigualdades”. Mas, nas palavras certeiras do autor:

“É fácil assegurar a igualdade no campo da educação: basta eliminar todas as oportunidades de progredir, de modo que nenhuma criança consiga alguma vez aprender alguma coisa”.  Foi dessa maneira que “um sistema que oferecia às crianças e famílias pobres uma oportunidade de progredir só pelo talento e pela aplicação foi destruído pela simples razão de que separava os êxitos dos fracassos”.  E isso, por exemplo, no Brasil, foi conseguido com absoluta maestria, aprofundando a crise cultural e educacional em níveis inimagináveis.

Não passa despercebido a Llosa esse esforço insano de moldagem da realidade pelas ideologias nas chamadas teorizações pós – modernas. Ele chama a atenção especialmente para o “desconstrucionismo” no seio do qual, por exemplo, Jacques Derrida faz a afirmação de que a linguagem não “expressa a realidade”. Cada palavra e seu conjunto concatenado expressariam apenas a si mesmos, ao próprio discurso que se sucederia em construções puramente subjetivas e não reveladoras de qualquer realidade (p. 79). Desde logo é bom observar que então o discurso de Derrida e outros desconstrucionistas não deveria ser digno de qualquer crédito, julgando-o por seus próprios pressupostos.

Afinal o desconstrucionismo acaba com qualquer confiança na existência de “verdades lógicas, éticas, culturais ou políticas”. Tudo seria apenas fruto de uma artificialidade produzida pela linguagem, a qual erige o mundo que pensamos conhecer, enquanto, na realidade, este se trata de “uma ficção fabricada pelas palavras” (menos o desconstrucionismo em si, é claro). A realidade não existe para os desconstrucionistas, ela não passa de um ilusionismo criado por “um emaranhado de discursos que, em vez de expressá-la, ocultam-na ou dissolvem-na num tecido escorregadio e inapreensível de contradições e versões que se relativisam e se negam reciprocamente”. Somente restam os discursos, que são a única coisa apreensível pela consciência humana. É claro que não poderia faltar a Foucault a interpretação desse estado de coisas, no qual o discurso se torna então o instrumento por excelência de controle da sociedade e de manutenção do “status quo” (p. 80).

Acontece que, para além do paradoxo já apontado de que o desconstrucionismo em si não passa de um discurso e que, portanto, também seria irreal, suas bases especialmente foucaultianas de expressão como instrumento de dominação vêm a ser desmentidas pela prática cotidiana. Isso porque sempre foi através do discurso que se manifestaram os inconformismos que questionam sem parar tudo quanto existe na sociedade. Sem o discurso a escravidão enquanto instituição social jamais seria abolida, sem ele o desastre do comunismo não teria podido ocorrer. Para o bem e para o mal o discurso, no mínimo, não pode ser reduzido a uma unilateralidade como pretende Foucault. Há discursos continuístas, há discursos conservadores, há discursos libertários, há discursos totalitários, há discursos revolucionários...Enfim o discurso não conforma a realidade, mas pretende influenciar nela, exatamente porque ela existe por si só, independente dele. Caso contrário, o próprio discurso perderia seu objeto. Como bem afirma Llosa:

“Se só fôssemos as linguagens impostas pelo poder, nunca teria nascido a liberdade e nem teria havido evolução histórica, nunca teria brotado a originalidade literária e artística” (p. 80).

Toda a atuação desconstrucionista é tão pueril e intrinsecamente contraditória e insustentável que a leitura de seus autores faz com que logo de início se diagnostique uma “estratégia hermética”, que consiste em tornar o texto o menos compreensível possível, de modo que, por meio de jargões ininteligíveis tornem-se imunes à crítica e façam parecerem seus detratores como pessoas que não compreenderam a mensagem passada. Realmente não compreenderam porque o texto é elaborado exatamente com essa finalidade. Então se torna “chic” afagar as incongruências, ocultá-las para estar no círculo hermético. Isso, é claro, para todos aqueles que são intelectualmente covardes, o que, infelizmente, constitui a maioria. Neste sentido as palavras de Roger Scruton são novamente esclarecedoras:

“Os professores de Humanidades aprenderam com os seus mentores franceses que há um modo de escrever que será sempre considerado ‘profundo’ com a única condição de ser a) subversivo e b) ininteligível. Desde que um texto se possa ler de algum modo como sendo contra o statu quo da cultura e da sociedade ocidentais, minando a sua reivindicação de autoridade ou verdade, não interessa que seja tagarelice. Pelo contrário, isso é simplesmente a prova de que seu argumento funciona a um nível de profundidade que o torna imune à crítica”.

O leitor pode ter uma visão direta dessa estratégia insana mediante a leitura de duas passagens exemplares selecionadas por Scruton, onde há aplicação do hermetismo acima descrito. Note-se que, na verdade os textos abaixo transcritos a título de exemplo, não contêm nada de significado a não ser um amontoado de jargões, mas são ambos considerados maravilhas (sic) da intelectualidade moderna:

“No âmbito da economia conflitual do discurso colonial que Edward Said descreve como a tensão entre a visão sincrônica pan – óptica da dominação – a exigência de identidade, de estase – e a compreensão da diacronia da História – mudança, diferença – o mimetismo representa um compromisso irônico. Se me é permitido adaptar a formulação de Samuel Weber da visão marginalizadora da castração (...).”

E outro:

“A recordação do ‘presente’ como espaço é possibilidade do imperativo utópico de nenhum – lugar (particular), o projeto metropolitano que pode complementar a tentativa pós – colonial da catexia impossível de história ligada ao local como o tempo perdido do observador (...)”

Perceba-se o quanto a coisa toda é medonha. Há um programa disponível na internet chamado “Gerador de Lero Lero” (www.lerolerro.com) capaz de produzir passagens muito similares às acima mencionadas onde um imbróglio de palavreado sem sentido passa a falsa impressão de erudição para que as pessoas que não compreendam o que está sendo dito sofram uma espécie de constrangimento em indagar ou criticar, pensando que é o autor do discurso que está num nível tão profundo de saber que não pode ser alcançado. Isso é estelionato intelectual ou, na melhor das hipóteses, um entretenimento engraçado. Mas, jamais pode ser filosofia ou ciência sérias. O “Gerador de Lero Lero” é o protótipo cibernético ou informático do intelectual desconstrucionista.

Permito-me uma pequena experiência: cliquei no “gerador de frases” do Lero Lero e obtive o seguinte:

“No entanto, não podemos esquecer que a consolidação das estruturas desafia a capacidade de equalização do sistema de participação geral”.

Qualquer semelhança com o besteirol pomposo anteriormente exemplificado de obras publicadas e de outras publicações do gênero não é de forma alguma mera coincidência!

Outro exemplo cômico – trágico desse estado de coisas foi a experiência feita por Alan Sokal ao publicar em 1996 na prestigiada revista “científica” de estudos culturais, “Social Text”, um artigo de título “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, o qual foi tomado com toda seriedade e ovacionado, quando se tratava de mera paródia, conglomerado abstruso de palavras e expressões pomposas que não transmitiam ideia alguma. Ele foi escrito dessa forma propositalmente por Sokal com o fim único de demonstrar a realidade da situação que é descrita neste texto. Em suas palavras, no posfácio do livro que escreve com Jean Bricmont, “Imposturas Intelectuais o abuso da ciência pelos filósofos pós – modernos”:

“Como o gênero que pretendia satirizar – uma miríade de exemplos podem ser encontrados na minha bibliografia – meu artigo é uma mistura de verdades, meias verdades, um quarto de verdades, falsidades, falácias e sentenças que, embora sintaticamente corretas, não têm, em absoluto, nenhum sentido”.

Na senda da escola, Llosa aborda em um texto complementar a questão da proibição do véu islâmico na França. O tema envolve os conceitos de laicismo, liberdade, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, liberdade de culto, liberdade de expressão e, enfim, dignidade da pessoa humana. O autor aponta o fato de que políticos e intelectuais catalogados, sabe-se lá com que critério, como de esquerda ou de direita, se dividem em opiniões. Isso demonstra, de acordo com Llosa, no que parece ter completa razão, a incapacidade dessas molduras pré – fabricadas (esquerda x direita) de abarcarem as complexidades do século XXI (p. 87).

Num primeiro relance o autor em destaque afirma que o mais natural, numa sociedade pluralista, democrática e liberal, seria deixar que as pessoas se vistam e se expressem da maneira que quiserem, inclusive no que tange à sua religiosidade (p. 88).

Inclusive alude ao correto conceito de laicismo a ser adotado numa democracia:

“Porque é um grande erro acreditar que o Estado neutro em matéria religiosa e a escola pública laica atentam contra a sobrevivência da religião na sociedade civil. A verdade é exatamente o contrário, e isso é demonstrado precisamente pela França, país onde a porcentagem de crentes e praticantes religiosos – cristãos na imensa maioria, claro – é uma das mais elevadas do mundo. O Estado laico não é inimigo da religião; é um Estado que, para resguardar a liberdade dos cidadãos, desviou a prática religiosa da esfera pública para o âmbito que lhe corresponde, que é o da vida privada. Porque quando a religião e o Estado se confundem, desaparece irremediavelmente a liberdade; ao contrário, quando se mantém separados, a religião tende, gradual e inevitavelmente, a democratizar-se, ou seja, cada igreja aprende  a coexistir com outras igrejas e com outras maneiras de crer, bem como a tolerar os agnósticos e ateus. Foi esse processo de secularização que possibilitou a democracia” (p. 89).

Dessa forma aduz Llosa que:

“Todas as culturas, crenças e costumes devem ter lugar numa sociedade aberta, desde que não colidam frontalmente com os direitos humanos e os princípios de tolerância e liberdade que constituem a essência da democracia” (p. 91).

Até este ponto, nada a opor. Acontece que o autor sob comento conclui que “o véu islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade”!?

É claro que essa afirmação não é feita sem mais nem menos. Llosa enxerga por detrás das indumentárias islâmicas não somente uma simples manifestação da religião e da religiosidade pessoais, intangíveis enquanto direitos individuais fundamentais. Mas, como uma marca de rebeldia aos valores ocidentais, especialmente no que se refere à condição da mulher e à liberdade dos demais componentes da sociedade plural. Descreve praticamente a visão de uma espécie de conspiração islâmica para imposição gradual de seus costumes e crenças, mediante o constrangimento das outras pessoas (p. 90 – 92).

Aqui há que discordar do autor, uma vez que defende a opressão a um segmento religioso, aviltando direitos humanos básicos como a liberdade de religião, expressão, culto, pensamento e manifestação com base naquilo que Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts - Tyteca chamam de “argumento de direção ou da ladeira escorregadia”, exemplo de argumento denominado “quase lógico” na arte da retórica (“Tratado da Argumentação: A Nova Retórica”). Ainda que houvesse alguma prova de que o uso do véu nas escolas públicas ou na rua fizesse parte de uma conspiração islâmica para imposição paulatina de seus costumes e crenças (o que não há, já que todos os indícios apontam para que se trate de uma prática natural nesse segmento, inclusive nos países já dominados totalmente pelo islã, de modo que ficaria inexplicado por que nesses países não se aboliria o véu, já que não precisam conquistar mais espaço algum). Ainda que fosse assim, em não se tratando de imposição violenta ou de constrangimento de terceiros, nada justifica obrigar uma pessoa a se vestir ou se exprimir de uma forma ou outra por imposição Estatal. Quanto à imposição do islã no ambiente laico francês, isso seria praticamente inviável, desde que realmente se assegure um ambiente de livre discussão e confronto de ideias, expressões e pensamentos. Nesse ambiente livre somente permanecerão as ideias que tiverem melhores fundamentos e a prova disso se dará exatamente pelo embate livre e não pela opressão de um grupo em detrimento de outro. Se em alguns aspectos o islã pode confrontar com valores ocidentais de liberdade, isonomia entre os sexos e outros aspectos, também há manifestações laicas e até antirreligiosas que provocam a mesma ou pior confrontação. Deveria, portanto, ser proibida a existência de um Partido Comunista, considerando o aviltamento das liberdades individuais e da dignidade humana que ocorreu em países que adotaram essa conformação política (v.g. China, União Soviética, Cuba etc.).

Como salienta Samantha Ribeiro Meyer – Pflug em “Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio”:

“A proteção ampla da liberdade de expressão, do regime democrático e do pluralismo implica garantia de manifestação de todos os envolvidos em determinado debate público. Por exemplo, se for uma discussão sobre a pena de morte, é necessário assegurar a manifestação de quem é a favor e de quem é contra. Do contrário não existirá um debate livre e imparcial e a democracia restará seriamente prejudicada. Dentro de um debate livre nenhum argumento deve ser descartado ou desconhecido, pois todas as opiniões devem ser consideradas.

Um Estado Constitucional deve se legitimar na opinião pública livre e no debate público plural, em um campo no qual seja aberta a discussão de todas as ideias.  O fato de se admitir, dentro de uma sociedade democrática, que qualquer ideia possa ser expressada sem censura, é fazer com que os indivíduos aprendam a exercer a sua autonomia e a escolher as ideias que devem ou não ser adotadas, por meio de uma discussão livre e aberta. É impossível falar em Estado Constitucional Democrático sem o reconhecimento das liberdades públicas, precipuamente, a liberdade de expressão”.

Seguindo em sua análise percuciente da derrocada cultural contemporânea, Llosa aborda o “desaparecimento do erotismo” e inicia seu estudo exatamente pela abordagem da chamada (na maioria das vezes erroneamente) “educação sexual” (deveria ser deseducação sexual). Um caso insólito é exposto. Em finais de 2009 o governo socialista espanhol teria organizado um “plano de educação sexual” para adolescentes a partir de 14 anos que incluía (pasmem) “oficinas de masturbação para meninos e meninas”. Tal campanha, cinicamente foi batizada como “O prazer está em suas mãos” (p. 93).

 Tomando a liberdade de usar o vocabulário contundente do texto original do autor, indago:

Será que “aulas de punheta nas escolas” é progresso (p. 94)? Será que a punhetologia pode contribuir para o desenvolvimento cultural da humanidade?

Obviamente que não. O sexo e o erotismo enquanto legítimas manifestações do humano (frise-se que o erotismo é unicamente humano, enquanto que o sexo pode ser também animal) somente podem contribuir para uma legítima cultura quando aliados e jamais banalizados. As “aulas” (sic) de masturbação não podem de forma alguma libertar os adolescentes das fantasias, mentiras, superstições e preconceitos que rodeiam o sexo. No entanto, podem sim trivializá-lo, deserotizá-lo, transmudando-o em uma atividade sem o atrativo do mistério, da descoberta, totalmente dissociada de qualquer sentimento, afeto ou paixão. Dessa forma o sexo e seu necessário componente humano do erotismo são reduzimos a uma atividade fisiológica, matando no ninho tudo aquilo que já foi tema de “imaginação e criatividade” nas mais diversas atividades humanas (pintura, fotografia, escultura, literatura etc.) (p. 94 – 95). Nas palavras de Llosa:

“A vacuidade e a vulgaridade que têm minado a cultura de certa forma também prejudicaram outra das mais importantes conquistas de nossa época nos países democráticos: a liberdade sexual, o eclipse de muitos tabus e preconceitos que cercavam a vida erótica. Porque assim como nos campos da arte e da literatura, o desaparecimento dos formalismos na vida sexual não significa progresso, mas sim retrocesso  que desnatura a liberdade e empobrece o sexo, rebaixando-o ao puramente instintivo e animal.

Masturbação não precisa ser ensinada, é descoberta na intimidade, é uma das atividades que fundamentam a vida privada. [3] (...). Tirar o sexo das alcovas para exibi-lo em praça pública é, paradoxalmente, não o libertar, mas fazê-lo regredir aos tempos da caverna, quando, assim como os macacos e os cães, os casais ainda não haviam aprendido a fazer amor, só a acasalar” (p. 95).

Nessa área opera-se uma insidiosa degradação do humano sob as vestes de uma falsa liberação. A nova “cultura” (sic) não se contenta em acolher de braços abertos o darwinismo e equiparar o humano ao animal, reconhecendo uma “evolução”. Não, parece que há uma necessidade premente de fazer o caminho reverso, um darwinismo invertido em que o homem se converte cada vez mais em hominídeo, em animal.

A expulsão do erotismo do campo sexual, conforme acima descrito, produz a animalização do sexo, exatamente na medida e proporção em que se pode definir o erotismo como a “desanimalização do amor físico”, com a superação de sua face de satisfação sumamente instintiva e sua transformação “em atividade criativa e compartilhada que prolonga e sublima o prazer físico, cercando-o de uma encenação e de refinamentos que o transformam em obra de arte” (p. 98). Mas, quando defecar em público é obra de arte, o que se pode esperar?

A verdade é que no sexo, com o componente erótico, houve o traço de uma fronteira muito nítida entre o humano e o animal. Essa humanização do sexo é produto cultural, decorrente de um longo desenvolvimento onde sobressaem conhecimentos científicos, ideias filosóficas, concepções religiosas e influência das artes e das letras. A vida sexual sempre foi material para a produção artística e literária, de forma que numa relação recíproca, “pintura, literatura, música, escultura, dança” e outras manifestações artísticas do imaginário humano deram seu contributo para “o enriquecimento do prazer através da prática sexual”. Llosa aduz, com razão, que não é exagero afirmar que o erotismo constitui uma elevação da civilização e é um de seus “componentes determinantes”. E acresce: “Para saber até que ponto é primitiva uma comunidade ou quanto ela avançou em seu processo civilizador nada é tão útil como perscrutar seus segredos de alcova e verificar como seus membros fazem amor” (p. 98). Será possível edificar uma literatura sobre o solipsismo da masturbação? A “punhetologia” será um dia alçada a ciência? Uma coisa é certa, no desvanecimento do conceito de cultura hoje operado é facilmente possível que se construa ou descubra uma “cultura dos punheteiros”, a qual seguramente não será melhor nem pior do que as “culturas” (sic) “do crack”, “da maconha”, “da pedofilia” e outras que tais.

Com absoluta acuidade Vargas Llosa aponta como único grande valor dos romances do Marquês de Sade, em meio a toda a monotonia que lhes é peculiar, a utilidade em demonstrar o potencial violento e até assassino do sexo, acaso praticado sem freios inibitórios de qualquer espécie. Isso porque é ele um “veículo privilegiado” por meio do qual “se manifestam os instintos mais destrutivos da personalidade” (p. 101).  

O prognóstico final apresentado no texto sob estudo é o de que iniciativas como as “oficinas de masturbação” espanholas e outras que se destinam a “dessacralizar a vida sexual, transformando-a em prática tão comum e corrente como comer, dormir e ir trabalhar”, terá como consequência a desilusão precoce das futuras gerações com relação à atividade sexual. Sem “mistério, paixão, fantasia e criatividade” resta a banalização de um exercício físico e mecânico. O prazer certamente então será procurado em outras fontes, tais como o álcool, as drogas e a violência (p. 102 – 103).

Pode-se afirmar que em parte isso já vem ocorrendo desde a liberação sexual nas décadas de 1960 e 1970 em diante, época inclusive em que se inicia a disseminação também do uso de drogas no ocidente. Mas, nada pode ser comparado ao que se opera na atualidade em termos de banalização e animalização do sexo e destruição do erotismo.  “Woodstock Music and Art Fair” (1969) foi apenas o pequeno germe das grandes “Raves” modernas.

As relações entre cultura, política e poder são também abordadas por Vargas Llosa em item específico.

O autor deixa claro que a cultura não depende da Política ou ao menos não devia depender porque isso pode perfeitamente acontecer em ditaduras, regimes totalitários de esquerda, de direita ou religiosos, onde há um policiamento da atividade cultural, procurando sempre acomodá-la ao molde político (p. 117). Nesses casos entendo que, tirante atividades culturais neutras, muito boa parte do que se denomina “cultura” acaba se convertendo em uma espécie de “propaganda” do sistema, o que desnatura terrivelmente aquilo que se possa chamar de “cultura”.

Não obstante numa sociedade aberta e democrática, embora a cultura se possa desenvolver de forma independente, faz-se necessário determinada interrelação entre esta e a política. Por um lado é uma das missões do Estado incentivar e apoiar as atividades culturais; por outro a cultura exerce grande influência na vida política, especialmente se exerce sua função crítica e valorativa a fim de impedir a degradação da sociedade e do Estado (p. 117).

Mas, na sociedade atual, no bojo da “civilização do espetáculo vai abandonando as ideias e ideais, as convicções intelectuais e os programas para atrelar-se quase que exclusivamente na publicidade e na aparência (imagem). O sucesso de um político em geral não está em sua capacidade e honestidade, mas no seu dom para a demagogia e a palhaçada. Na incisiva manifestação de Llosa:

“Assim, ocorre o curioso paradoxo de que, enquanto nas sociedades autoritárias é a política que corrompe e degrada a cultura, nas democracias modernas é a cultura – ou aquilo que usurpa seu nome - que corrompe e degrada a política e os políticos” (p. 118). [4]

A imagem do político é a pior possível, não somente em países marginais, mas em todo o mundo. As pessoas em geral consideram que a atividade política é adequada somente para malandros, aproveitadores, incompetentes, enfim, o desprestígio é total (p. 120 – 121). Atualmente nem se imagina a existência de pessoas do calibre de um Rui Barbosa ou de um Goffredo Telles Júnior na política como já aconteceu outrora.

Mas, o que nos conduziu a este estado de coisas? Llosa é certeiro:

“A que se deve o fato de o mundo inteiro ter chegado a pensar aquilo que todos os ditadores sempre quiseram inculcar nos povos que subjugam, ou seja, que a política é uma atividade vil?

É verdade que, em muito lugares, a política é ou se tornou de fato suja e vil. ‘Sempre foi’, dizem os pessimistas e cínicos. Não, não é verdade que sempre foi nem que seja agora em todos os lugares e da mesma maneira. Em muitos países e em muitas épocas, a atividade cívica alcançou o prestígio merecido porque atraía gente valorosa e porque seus aspectos negativos não pareciam prevalecer sobre o idealismo, a honradez e a responsabilidade da maioria da classe política. Em nossa época, esses aspectos negativos da vida política foram amplificados, frequentemente de maneira exagerada e irresponsável pelo jornalismo marrom, com o resultado de que a opinião pública chegou à convicção de que política é atividade de pessoas amorais, ineficientes e propensas à corrupção” (p. 121).

Essa imprensa sensacionalista, não somente na seara política, mas em todas as áreas, não é produtora de corrupção, ela já surge corrompida por uma suposta “cultura” (sic) que ao reverso de condenar as horrorosas invasões de privacidade, apresenta uma forte demanda para isso (p. 124).

Contudo, uma visão desconsoladora da política e dos políticos já existe há bastante tempo. Aproveitando a menção supra de Goffredo Telles Júnior, é oportuno recordar uma passagem de seu livro de memórias “A Folha Dobrada”. Nessa passagem a que me refiro Telles Júnior narra uma conversa com Brás Arruda, o “Arrudinha”, como era carinhosamente chamado o então Diretor da Faculdade de Direito da USP na década de 1950. Pessoa impoluta, idealista, cordial, dedicada, trabalhadora e competente, Brás Arruda, durante uma luta para conseguir verbas públicas junto a políticos da época, com a ajuda de Telles Júnior, a fim de custear reformas necessárias na Faculdade, assim se expressa:

“Não posso negar que existam, nas Câmaras, alguns elementos inegavelmente instruídos e até eruditos. Mas o que é difícil é encontrar elementos cultos. O difícil é encontrar elementos que tenham uma visão do todo, uma visão do Brasil, uma visão do futuro, dentro da qual cada parte, cada questão particular, é percebida como um componente, com lugar certo e função determinada, dentro do conjunto”. (...). A impressão que se tem do Congresso é a de que os parlamentares, em grande parte, não são capazes de uma visão alta e global do conjunto das coisas. São aves de voo curto e rasteiro, quando, pelo contrário, deveriam ter as asas e os olhos do condor”.   

No entanto, conforme bem observa Llosa, não são somente a mídia sensacionalista e a cultura imagética as responsáveis pela desmoralização da política e das funções públicas em geral, incluindo os funcionários públicos. Há outra razão pela qual as pessoas mais preparadas e com boas intenções se afastam da política e dos cargos públicos. Essa motivação são os baixos salários, pois em qualquer lugar do mundo um jovem bem capacitado consegue muito melhor remuneração na iniciativa privada. Inobstante, qualquer medida que contenha os salários de funcionários públicos é normalmente vista com bons olhos pelas pessoas, especialmente nesse ambiente de descrédito político e funcional. Acontece que o que ninguém ou muito poucos enxergam é que essa situação é um incentivo para a incompetência e a corrupção. Um Estado democrático não funciona corretamente sem “uma burocracia capaz e honesta”. Vargas Llosa dá os exemplos da França, da Inglaterra e do Japão, onde até pouco tempo todo servidor público tinha clara noção da sua importância e era reconhecido por isso. Eram bem remunerados, mas mesmo que alguns pudessem ganhar mais na iniciativa privada, havia um reconhecimento pessoal e popular da dignidade da função que exerciam, o que os motivava a prosseguir no serviço público. Atualmente essa respeitabilidade, essa Autoridade (no sentido romano de “auctoritas” já visitado neste texto), simplesmente desapareceu. Os funcionários públicos estão tão desmoralizados quanto os políticos e são vistos não como importantes para o progresso, mas como entraves, pesos – mortos que dilapidam o erário público. É bem verdade que a criação de cargos públicos para acordos políticos com o respectivo inchaço da folha de pagamento contribui para essa imagem, mas seria preciso uma reforma em que políticos e funcionários públicos recuperassem seus prestígios por mérito e se extinguissem cargos comissionados, de confiança, facilmente manipuláveis em negociatas inconfessáveis (p. 126 – 127). Acrescento que no Brasil há uma constante exploração do tema do nepotismo, criando-se leis para coibir a nomeação de parentes em cargos públicos por parte de políticos. Essas medidas e os escândalos de nomeações de parentes são comumente alardeados na mídia, como se o fato de retirar um parente de um cargo comissionado ou de confiança resolvesse alguma coisa. Dificilmente se vê alguém sequer parar para pensar (afinal, pensar na “civilização do espetáculo” é algo inusitado) que essas medidas de nada servem já que o cargo em si continua existindo e é ocupado por alguém que recebe valores do Estado. O que não deveria haver são cargos comissionados ou de confiança, ao menos na quantidade que existem. Porém, a população se farta com as leis que proíbem o nepotismo e não proíbem a criação a rodo de cargos públicos desnecessários, também se farta e felicita com a visão e as notícias dos escândalos de tempos em tempos. Assim vive a “civilização do espetáculo”, sempre na epiderme dos problemas.  

Nessa civilização perdida artistas e celebridades se confundem com intelectuais e a própria intelectualidade já não requer conteúdo, mas sim meros trejeitos e lugares comuns de um roteiro politicamente correto (p. 130).

Mais uma vez é oportuna a descrição de Olavo de Carvalho em “O Imbecil Coletivo I”:

“Tornar-se um ‘intelectual’, aí, não é adquirir certos conhecimentos e demonstrar capacidade em certos gêneros de investigação ou criação, mas ser aceito em determinados meios, falar num determinado tom, adquirir determinados trejeitos em que se reconheça a identidade da casta”.

É nesse contexto deplorável que de dois presos políticos cubanos um morre em greve de fome em protesto contra o regime autoritário e o outro definha aos poucos (Orlando Zapata e Guilhermo Fariñas, respectivamente), enquanto artistas e celebridades de cérebros vazios ou cheios de alguma coisa estranha assacam acusações de delinquência contra os dissidentes em defesa de uma ditadura cruel. Eles se arrogam em verdadeiros cientistas políticos! Não é a simples estupidez que está em jogo, mas a “frivolidade”, a leviandade e a irresponsabilidade. No entanto, não há nada a estranhar; essas pessoas agem da forma que podem agir, superficialmente, correspondendo ao politicamente correto de uma esquerda esnobe, agitando a mídia para aparecer a qualquer custo (p. 130). O que é dito não importa, o importante é ser visto e ouvido o tempo todo.  

Outro exemplo muito significativo nos tempos atuais é o seguinte: há uma disseminação enorme de denúncias de abusos sexuais perpetrados contra garotos de tenra idade por religiosos, especialmente padres da Igreja Católica. Sublinha-se repetidamente o fato de que são “padres”, que compõem a “Igreja Católica” e que praticam o que se convencionou chamar de “pedofilia” (termo este, aliás, usado erroneamente como se fosse jurídico, quando se refere a uma anomalia sexual). Bom, mas o que ninguém diz é que esses indivíduos, abusadores sexuais de garotinhos são, obviamente, homossexuais, gays. Ora, se têm atração por garotos e são homens, então somente podem ser homossexuais. Mas, ninguém menciona esse fato porque poderia isso ser tomado como preconceituoso. Entretanto, por que não é preconceituoso sublinhar a opção religiosa ou a atividade religiosa da pessoa e é preconceituoso destacar sua prática sexual? Ademais, se for preconceituoso dar destaque ou ênfase à prática sexual das pessoas por si só, então também será preconceito acusar alguém por “pedofilia”, afinal é apenas uma opção, talvez faça parte de sua “cultura”, do meio e dos costumes em que foi criado! A verdade é que não importa se o indivíduo abusador de crianças e adolescentes é padre, pastor, ateu, de esquerda, de direita, pobre, rico, gay, heterossexual ou o que seja. O que importa é que é um abusador de crianças e é isso que é imoral e ilegal. Mas, a moda é escrachar a Igreja Católica e preservar a qualquer custo os gays, então se fala do acidente (ser padre), mas não do acidente (ser gay) como se fosse determinante da conduta abusiva (isso sim o essencial). Na verdade nem uma nem outra coisa mereceria menção no contexto, mas apenas o fato do abuso, seja ele cometido por quem for. Mesmo porque não são somente abusos gays que ocorrem, há abusos heterossexuais. Também não são somente cléricos que cometem abusos sexuais contra menores. Aliás, estatisticamente se constata em pesquisas que os profissionais de educação física, por exemplo, superam as acusações (que não são sentença condenatória, frise-se) de abuso sexual de menores em uma proporção de aproximadamente cem vezes em relação numérica comparativa com os cléricos. Será que devemos então esculachar os professores de educação física? É óbvio que não! O que merece repulsa não é a profissão, atividade ou característica da prática sexual não abusiva da pessoa, mas sim seu ato perpetrado contra quem não pode se defender ou escolher com maturidade e informação adequadas. Acontece que tudo isso fica camuflado sob as distorções do politicamente correto. Chegam, no caso dos padres, a afirmar que é a questão do celibato que conduz à pedofilia. Ora, essa é uma das maiores absurdidades que é repetida aos quatro ventos, pelo simples motivo de que não são somente padres (aliás, são uma parcela diminuta) que são abusadores sexuais. Inclusive dentre os religiosos há abusadores sexuais de menores que são pastores, por exemplo, e este se casam normalmente. Além disso, então isso nos levaria à conclusão de que os indivíduos somente não se transformam em “pedófilos” porque se casam, namoram ou vivem maritalmente com alguém. Caso contrário, todos seriam pedófilos. O leitor agora pode fazer um teste consigo mesmo. Será que se você não tivesse uma namorada, não fosse casado ou qualquer coisa similar, sairia imediatamente ou dentro de certo período pelas ruas abusando sexualmente de crianças e adolescentes numa fúria incontrolada? Note-se a que cumes do absurdo podemos chegar mediante a imbecilização das pessoas pelo politicamente correto e pela análise epidérmica das mais variadas questões proporcionada pela “cultura da superficialidade” hoje imperante. Na realidade a única crítica sã e aceitável que leva em conta a atividade religiosa do indivíduo é aquela que diz respeito à inércia ou pretensão de abafamento de casos que tais por congregações religiosas. Isso porque, pela própria doutrina, deveriam ser as primeiras a denunciar e punir os infratores, claro que sempre mediante um devido procedimento legal, com direito de defesa e produção de provas porque acusações inverídicas são comuns não somente contra cléricos, mas podem acontecer com qualquer um.  

Como salienta Llosa, ninguém deve pretender que nas sociedades abertas e democráticas não haja críticas internas, senão, por definição, deixariam de ser exatamente abertas e democráticas. O grande problema é o posicionamento que revela o intento da desconstrução dessas sociedades que beneficiam os próprios críticos e a defesa de regimes totalitários tais como Venezuela e Cuba. Os pseudointelectuais e os artistas e celebridades cabeças ocas não estão traindo somente “princípios abstratos” de liberdade e democracia, mas “bilhões de pessoas de carne e osso que, nas ditaduras, resistem e lutam para alcançar a liberdade”. E tudo isso não por verdadeira convicção pessoal, ao menos na maioria dos casos, mas por conveniência e oportunismo profissional, para fazer pose, para ser progressista, revolucionário e atrevido de forma totalmente artificiosa, porque na realidade se trata de um conformismo com o politicamente correto ditado pela esquerda que domina a mídia. É só a vontade de aparecer e parecer de acordo com a moda do momento. A conclusão do autor é perfeita: “Muitos artistas e intelectuais de nosso tempo tornaram-se muito baratos” (p. 130 – 131). Em acordo com isso, aduz Michel Henry, em “A Barbárie”, que “a mídia corrompe tudo em que toca”. É um toque de Midas em que as coisas ao invés de serem convertidas em outro, são convertidas em merda cujo consumo não pode sustentar ninguém. Muito ao contrário, só faz contaminar e conduzir à inanição.

Outra característica triste da civilização lúdica é a atitude de desrespeito, desprezo e desdém pela lei e pela ordem social. Impera uma “anomia moral” que incita o indivíduo à transgressão e à burla, seja para seu benefício em detrimento de outrem ou de toda a coletividade, seja por simples exercício de zombaria, desprezo ou demonstração de incredulidade com relação às normas e instituições. Muitas pessoas veem hoje a infração legal como uma espécie de divertimento ou esporte radical (p. 132). Eis uma das explicações para o aumento da incidência de integrantes das classes média e alta em criminalidade violenta, tais como ações de roubos, extorsões, extorsões mediante sequestro, homicídios etc.

A verdade é que o excesso de liberdade autoatribuído, a criação de uma autonomia sem freios, é a maior ameaça à liberdade mesma. A falácia do “nascido livre”, tão alardeada por Jean Jacques Rousseau em “O Contrato Social” abriu uma imensa avenida para ilusões destrutivas como as que hoje corroem a sociedade por dentro e por baixo. Mister se faz ter em mente o alerta de Roger Scruton (“As vantagens do pessimismo”):

“O preço dessa liberdade é o preço da reciprocidade. Tenho que reconhecer os direitos e reivindicações dos outros para ter os meus próprios direitos e reivindicações. E como ser livre sou responsável perante os outros e posso ser chamado a justificar o que faço. Responsabilidade e reciprocidade informam todos os modos de sociedade humana e são as fundações sobre as quais se constrói  a paz e a felicidade. Uma vez que se reconheça isto, porém,  temos que reconhecer que as leis, os costumes, as instituições e as restrições convencionais residem na própria natureza da liberdade. São ambas subprodutos e canais dos nossos procedimentos recíprocos. Além disso,  não são arbitrárias nem infinitamente ajustáveis face aos nossos desejos mas têm  uma lógica e uma estrutura próprias. (...). A liberdade só é genuína quando limitada pelas leis e pelas instituições que nos tornam responsáveis uns perante os outros, que nos obrigam a reconhecer a liberdade dos outros e também a tratar os outros com respeito”.

Porém, na civilização do divertimento há o império da vontade e do capricho de eternas crianças e adolescentes. A maturidade para reconhecer o valor das instituições e normas vai escasseando. Cada vez mais as pessoas criam uma “cultura” de direitos despregados de deveres correlatos. Um dos autores que melhor descreve essa situação é Pascal Bruckner em sua obra “A Tentação da Inocência”. Demonstra que vivemos num mundo povoado em grande parte por marmanjos mimados, criados no gozo e no entretenimento, os quais desconhecem o valor do esforço e da responsabilidade. Bruckner descreve como “inocência” uma espécie de “doença do individualismo que consiste em querer escapar às consequências dos seus atos”, tentando “gozar dos benefícios da liberdade sem sofrer nenhum dos seus inconvenientes”, o que, inevitavelmente conduz a duas direções, quais sejam, “o infantilismo e a vitimização”. O indivíduo quer satisfação ilimitada de seus desejos, quer consumir e se divertir, em poucas palavras: não admite renunciar a nada.

Aqui cabe retomar o tema da educação e lembrar com Scruton (“As vantagens do pessimismo”) a revolução que se apoderou das escolas e ministérios da educação entre 1950 e 1960, com repercussões atuais. Foi com fulcro na suposta autoridade de pensadores que vêm de Rousseau e chegam a Dewey que se construiu a concepção tortuosa de que o ato de educar não tem ligação “com obediência e estudo, mas com autoexpressão e recreação”. O professor passa a ser visto como opressor e a sala de aula como ambiente por excelência dessa opressão. Então, sendo os jovens libertados desses supostos grilhões do programa tradicional de ensino, poderão exprimir livremente “suas capacidades criativas naturais, crescendo através da liberdade e adquirindo saber pela experiência e pela descoberta em vez de pela ‘aprendizagem repetitiva’” (sic). Mas, qual foi o resultado de tudo isso? Em poucas palavras: uma multidão de irresponsáveis autoindulgentes, arrogantes, ignorantes e analfabetos funcionais. Obviamente que essa multidão de ineptos tenderá, por sua própria (de) formação “educacional” (sic) a ser hostil às instituições e normas. Esse é um resultado natural.

Em “A Barbárie” Michel Henry também diagnostica essa situação relativa ao ensino na “civilização do espetáculo”:

“A aula, que constitui a essência de todo ensino autêntico, deve ceder lugar, na contemporaneidade, às ‘ciências da comunicação’, as quais, sob aparência de repensar questões específicas, asseguram, na verdade, a promoção geral da comunicação midiática: ‘A verdadeira pedagogia é a TV!’. E, com a comunicação midiática, a existência midiática.  As pesquisas, a opinião, aquilo de que se fala, os estereótipos de todo tipo, a vulgaridade geral, os quadrinhos, a ‘nova civilização da imagem’, tudo o que remete à banalidade e ao prosaísmo cotidiano e os expõe de maneira complacente, eis o que  são encarregados de ensinar professores subordinados à atualidade, ao dogma social, transformados em telespectadores, tornados  tão receptivos e fúteis como eles”.

O pior é que esse desrespeito pela lei e pelas instituições tende a alargar-se com o tempo para atingir até mesmo aqueles que estão diretamente ligados à lida com esse material, os juristas e os tribunais.

Em sua peça magistral intituladas “Os últimos dias da humanidade”, Karl Kraus bem retrata na ficção o absoluto desdém pela lei e suas trágicas consequências num mundo tomado pela barbárie:

CENA 17

Kragujevac. Tribunal Militar.

O Primeiro – Tenente Juiz – Militar (grita para fora): Que vá pro raio que os parta! (Para o Secretário) As três sentenças de morte já estão passadas a limpo? A dos três rapazes de Karlova que andavam armados?

O Secretário: Sim, meu tenente, mas (hesitante) eu...gostaria de chamar a atenção para uma coisa, é que...eu descobri...que eles só têm dezoito anos...

O Primeiro – Tenente Juiz – Militar: E depois? Que é que quer dizer com isso?

O Secretário: É que...sendo assim...de acordo com o Código Penal Militar eles não podem ser executados...a sentença tem...que passar para prisão maior...

O Primeiro – Tenente Juiz – Militar: Ora mostre cá! (Lê) Hum...Neste caso o que vamos mudar não é a sentença, mas a idade. Assim como assim, eles são uns autênticos latagões. (Molha a pena no tinteiro). Vamos então escrever em vez de dezoito, vinte e um. (Escreve). Pronto, agora podem enforcá-los à vontadinha”.

 Em seu gênio artístico, Karl Kraus produzia cultura genuína em sua época e criticava a sociedade submergida no caos da Grande Guerra Mundial, em especial na Alemanha e na Áustria. Ele vislumbrava já a decadência decorrente do desapego à lei e às instituições. Sua obra integra o que realmente se pode chamar de arte e de alta cultura, tanto é fato que se mantém atual em nossos dias.

No seio desse desapego à lei e às instituições que dão sustentação à sociedade, certos arroubos midiáticos irresponsáveis e que deveriam ser objeto da mais ampla reprovação, passam a impressão de ousadia, rebeldia justificada e justiceira. Llosa se refere especificamente a um artigo de Fernando Savater em que este critica, com absoluta correção, aqueles que comemoraram como um grande feito a divulgação de milhares de documentos secretos do Departamento de Estado dos Estados Unidos no episódio do chamado ”Wikileaks”. Segundo Llosa, Savater demonstra que a grande maioria dos documentos divulgados era sem qualquer importância, revelando tão somente um desejo de fama. Seus conteúdos em geral eram compostos por informações que já eram de conhecimento público ou ao menos dedutíveis por qualquer observador político mediano. O que a atitude de divulgação revela é tão somente o exercício da “bisbilhotice” e da “frivolidade” sob o manto artificial ou pretexto da “transparência” (palavra em moda) e do suposto “direito de todos a saber de tudo”. Quando, na verdade, esse direito não existe em parte alguma. O que existe sim são espaços de reserva da vida privada e também dos órgãos públicos no interesse individual e coletivo. Esse suposto “direito a saber de tudo” é um produto “da atual imbecilização social”. O desenvolvimento da tecnologia das comunicações facilitou em muito a informação e dificulta a vida de governos que querem manter seu povo na ignorância de certos fatos e realidades. Mas, isso não quer dizer que inexista um âmbito recôndito de reserva confidencial governamental, o qual é necessário no próprio interesse público. Colocar tudo no domínio público não é um tributo à liberdade de informação, mas, nas palavras do autor, um verdadeiro “liberticídio”, que pode atingir diretamente as bases da democracia e prejudicar a própria civilização global. Nenhuma democracia poderia ter um funcionamento a contento sem um âmbito de “confidencialidade das comunicações entre funcionários e autoridades”. Também seria impraticável qualquer atuação política “nos campos da diplomacia, da defesa, da segurança, da ordem pública e até da economia”. O que produz mais essa fanfarronice midiática (“Wikileaks”) é nada mais do que um pernicioso “exibicionismo informativo” que nada tem a ver com a liberdade de informação e expressão, mas sim com um claro e evidente abuso dessas mesmas liberdades, colocando em risco muitos interesses sociais. O que o “Wikileaks” produziu foi apenas e tão somente uma série de constrangimentos de funcionários e relações entre países e governos. Tudo isso com o fito de satisfazer uma “curiosidade mórbida” que permeia a civilização do espetáculo. O “Wikileaks” é apenas mais um exemplo de entretenimento disfarçado em informação e seu idealizador, Julian Assange, não é de forma alguma um batalhador libertário, mas nada mais que “um bem – sucedido entertainer ou animador, o Oprah Winfrey da informação”. E mais uma vez a irresponsabilidade dessa sede de entretenimento e de fama súbita coloca em cheque as bases sociais em que se sustentam as democracias, possibilitando pretextos e ambiente favorável para insurgências autoritárias (p. 137 – 140). Nas palavras indignadas de Llosa:

“Diante do fato de governos eleitos em eleições legítimas poderem ser derrubados por revoluções que querem trazer o paraíso para a terra (embora muitas vezes tragam o inferno), que fazer? Diante do surgimento de conflitos e até de guerras sanguinárias entre países que defendem religiões, ideologias ou ambições incompatíveis, que desgraça! Mas que semelhantes tragédias possam chegar a ocorrer porque nossos privilegiados contemporâneos se entediam e precisam de diversões fortes, e um internauta esperto como Julian Assange lhes dá o que pedem, não, não é possível nem aceitável” (p. 141).

No item de título “O ópio do povo” (p. 143 – 168) Llosa analisa os fanatismos religiosos que levam a atos de terrorismo e os escândalos envolvendo religiosos em atos de pedofilia. Esses acontecimentos e fenômenos não descrevem o papel da Religião, enquanto legítima manifestação cultural, no seio da sociedade. Esse papel seria de um último bastião da moral, onde se pode encontrar um conjunto de normas para a existência compartilhada e movida pela “generosidade, o altruísmo, a compaixão e o respeito ao próximo”, ao mesmo tempo em que se rechaça “a violência, o abuso, o roubo, a exploração”. É do reconhecimento de uma Lei Divina que se sobrepõe à Lei Humana, num modelo preconizado desde a medievalidade por Santo Agostinho (“A Cidade de Deus”), que podem derivar os fundamentos para o reconhecimento dos próprios direitos fundamentais e dos direitos humanos. Aliás, embora muito pouco divulgado, é fato que todos esses direitos têm sua raiz na mensagem do cristianismo.

Trata-se de uma visão ética do ser humano em seu relacionamento intersubjetivo, tal como descreve Roger Scruton (“Modern Culture”):

 “The ethical vision of man confers value on the human form, on the human face, the human deed and the human word. It permits the higher emotions, through which we ennoble our lives and the lives of those around us”.

É perfeito o reconhecimento do jurista lusitano, Jónatas E. M. Machado, em sua obra, “Estado Constitucional e Neutralidade Religiosa”, quanto ao fato de que toda fundamentação possível de direitos humanos e fundamentais do indivíduo somente pode ser baseada nos ensinamentos judaico – cristãos. Aliás, como já dito, essa foi a origem real de tudo, olvidada ou ocultada meticulosamente, por todos aqueles que, a exemplo do movimento Iluminista do século XVIII, se apropriaram desses valores como se fossem obra sua (neste sentido é interessante também a obra de Thomas E. Woods Jr., “O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica”).

No naturalismo materialista é impossível sustentar esses direitos. É possível sim construir regras morais e jurídicas idênticas e até mesmo acreditar nelas, mas sem qualquer fundamento. Isso porque o homem, na visão naturalista – materialista não passa de um conglomerado de células, um saco de pele, sangue, ossos e carne, tal qual os animais, o qual deambula e fala, mas mesmo seu pensamento e linguagem nada mais são do que o resultado de descargas elétricas e reações químicas produzidas num cérebro carnal. Ora, que valor intrínseco pode ter algo assim? O que impediria fundamentadamente o total abandono do conceito de dignidade humana, que foi construído com base específica na relação humano – divina, totalmente desconhecida no paganismo? O naturalismo – materialista entra em franca contradição interna quando pretende incluir em sua pauta direitos humanos fundamentais, já que em seu contexto somente podem derivar de uma crença infundada que emerge de um processo histórico cego. Do naturalismo materialista somente podem derivar racionalmente orientações que conduzem a um niilismo de matriz nietzschiana ou até mesmo na linha libertina do Marquês de Sade.

É imprescindível a transcrição do ensinamento de Jónatas E. M. Machado:

“(...), a recondução dos valores ao processo histórico e cultural não permite fundamentar racionalmente  a afirmação, feita na sequência do Tribunal de Nuremberg, da responsabilidade dos Estados, chefes de Estado, oficiais do exército e indivíduos em geral pela violação desses princípios universais, independentemente da respectiva positivação convencional, constitucional ou legal. Se as normas morais forem apenas um produto histórico e cultural de uma dada comunidade, não tem sentido exigir a subordinação dos Estados a normas externas (v.g. agressão, crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade) que não resultem das respectivas tradições e culturas. Semelhante exigência seria apenas  uma manifestação de prepotência política e imperialismo cultural.

Finalmente, ela coloca o Estado Constitucional exatamente no mesmo plano moral e normativo das cidades – estado gregas, da Alemanha Nazi, da Coreia do Norte ou da Jihad Islâmica. Se o critério de valoração for apenas a experiência histórica e cultural, todas essas realidades podem ser igualmente legitimadas. Se os processos históricos e culturais é que legitimam as normas jurídicas dentro de uma comunidade, então os valores da escravatura, da subordinação das  mulheres, do tráfico de mulheres, crianças e órgãos, do genocídio, do terrorismo suicida, do tráfico de drogas, da corrupção nos sistemas político, econômico e financeiro etc.m teriam que  ser considerados moralmente bons sempre que fossem o resultado do processo histórico, sendo  que os mesmos são sempre o resultado do processo histórico”.

É notável como o naturalismo – materialista e o relativismo cultural e moral formam uma teia densa e pegajosa da qual não se pode escapar. Quaisquer práticas podem ser justificadas nesse contexto de relativismo ético que, na magistral lição de Machado

“teria implicações absurdas e autocontraditórias. Por um lado, verifica-se que nas diferentes culturas coexistem a liberdade e a escravatura, a igualdade e a opressão, a verdade e a mentira, racionalidade e irracionalidade, a justiça e a injustiça. Se fossem legitimadas apenas pela experiência histórica e pela tradição cultural, todas essas práticas seriam igualmente boas e simultaneamente boas e más, violando o princípio lógico e racional da não contradição (já reconhecido há milênios por Aristóteles), segundo o qual uma afirmação e a sua contrária não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Por outro lado, ao mesmo tempo que pretende abster-se de avaliar o mérito absoluto e relativo das diferentes culturas  com base em critérios de valor universais, esse relativismo defende que todas as culturas, independentemente de seus valores, devem ser consideradas como iguais e tratadas de forma igual. Daqui resulta um paradoxo senão mesmo uma contradição interna. Apesar de rejeitar o universalismo, o pretenso relativismo moral mais não pretende do que  a universalização do princípio da igualdade, ainda que com um entendimento  particular. Por outras palavras, o pretenso relativismo pretende, afinal,  universalizar o tratamento igual a todas as pessoas, no respeito pela identidade que lhes advém da inserção em diferentes sociedades, culturas e concepções éticas. Esta modalidade de relativismo moral reflete, afinal, uma atitude de moralismo igualitarista universalista” (interpolações minhas). [5]

A realidade é que, como diz Llosa, com a derrocada do antídoto da Religião judaico – cristã e seus princípios morais

“a vida iria se tornando uma barafunda de selvageria, prepotência e excesso, em que os donos de qualquer forma de poder – político, econômico, militar etc. – se sentiriam livres para cometer todos os roubos concebíveis, dando vazão a seus instintos e apetites mais destrutivos” (p. 151 – 152).

A literatura de Dostoiévski, em “Os irmãos Karamazov” reflete exatamente esse pensamento logicamente decorrente do relativismo acoplado ao naturalismo – materialista, quando Ivan Karamazov publica um artigo no qual consta o seguinte conteúdo descrito por outro personagem:

“(...) em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural, mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situação”.

E não é fato que a derrocada cultural da Religião nas sociedades hodiernas recai no relativismo moral já descrito neste texto?

Pode-se opor o fato de que no seio da própria Religião barbaridades são e foram cometidas, assim como ocorre com qualquer instituição humana. Acontece que a questão é muito mais profunda do que essa epiderme. Os princípios morais da Religião permitem, mesmo quando ocorrem barbaridades em seu seio, mesmo quando suas regras são violadas de forma absoluta, a crítica e a retomada de rumo, como já ocorreu diversas vezes na história. Os desvios, longe de adquirirem “status” de legitimidade, são exatamente motivações e fundamentos para reforçar os princípios então violados e demonstrar sua real importância para a sociedade humana.  Já num relativismo acoplado a um materialismo – naturalista que conduz logicamente e consequentemente à amoralidade, opera-se uma total ausência de fundamento crítico. Os princípios morais básicos passam a ser meros objetos de vontade ou preferência, não há sustentação para qualquer espécie de revisão ou condenação que não seja considerada arbitrária e preconceituosa. E o pior é que dentro do pensamento relativista, naturalista e materialista isso é corretíssimo e coerente. O que exsurge incoerente é a pretensão de algum freio para quaisquer instintos humanos ou animalescos que se pretendam expressar.

  Imprescindível ilustrar esse pensamento com uma passagem literal de Llosa:

“Se esta vida é a única que temos, se não há nada depois dela e vamos nos extinguir para todo o sempre, por que não tentaríamos aproveitá-la da melhor maneira possível, ainda que isso significasse nossa própria ruína e semear ao nosso redor as vítimas de nossos instintos desbragados? Os homens se empenham em crer em Deus porque não confiam em si mesmos. E a história demonstra que não deixam de ter razão, pois até agora não demonstramos que somos confiáveis” (p. 152).

O grande problema a ser enfrentado é que não somente a Religião é hoje bombardeada pelo niilismo provocado pelo relativismo moral e o materialismo – naturalista, como é também contaminada pela civilização do espetáculo e da “pantomima”, onde as Igrejas são confundidas facilmente com circos ou casas de show (p. 155). Tudo o que deveria ser introspecção, reflexão e meditação espirituais profundas se transforma em entretenimento fútil. 

Essa perda é considerável, especialmente em relação ao cristianismo, eis que:

“O cristianismo propôs a fraternidade universal, combatendo os preconceitos e a discriminação entre raças, culturas e etnias e afirmando que todas elas, sem exceção, são filhas de Deus e bem – vindas na casa do Senhor. Embora tenham demorado para abrir caminho e traduzir-se em formas de conduta por parte de Estados e governos, essas ideias e pregações contribuíram para aliviar as formas mais brutais de exploração, discriminação e violência, humanizar a vida no mundo antigo e assentar as bases daquilo que, com o correr do tempo, seria o reconhecimento dos direitos humanos, a abolição da escravatura, a condenação do genocídio e da tortura. Em outras palavras, o cristianismo deu um impulso determinante ao nascimento da cultura democrática” (p. 156 – 157).

Antes que os papagaios repetidores de jargões esquerdistas politicamente corretos venham a contestar as afirmações de Llosa acima transcritas, mediante os batidos argumentos da Inquisição, da prática de tortura, das Cruzadas entre outras atuações efetivamente questionáveis da Igreja Católica Romana, é preciso esclarecer devidamente certos pontos que sempre são mantidos no escuro, seja propositalmente ou por pura ignorância. Como já dito linhas volvidas, as instituições religiosas podem efetivamente cometer erros e erros terríveis, mas detém toda uma série de conceitos e princípios éticos que lhes permitem, inclusive desde dentro, uma autocrítica e reformas radicais. Isso já não é viável com ideologias que se autolegitimam num mundo terreno, totalmente material e num futuro que justifica toda e qualquer barbaridade (meios sempre justificados pelos fins supostamente nobres). Outro aspecto diz respeito à besteira repetida mil vezes de que teria sido a Igreja Católica, via Inquisição, a grande criadora ou ao menos a grande disseminadora da tortura como meio de prova e prática diuturna de castigos corporais. Essa é uma das falácias mais absurdas que existem, pois que civilizações antiqüíssimas, muito antes de Cristo, já perpetravam atos de tortura contra inimigos ou para obter informações (v.g. as terríveis torturas orientais, especialmente na China; as civilizações antigas do continente americano que não só degolavam seus inimigos como jogavam algo semelhante ao futebol com suas cabeças etc.). Um exercício que torna tudo isso mais do que óbvio é a visão do próprio Cristo crucificado, o que é aquilo senão tortura? E havia Igreja Católica? Havia Inquisição? Havia sequer Cristianismo organizado? Não, claro que não e a imagem do Cristo crucificado é exatamente um alerta para a necessidade da não – violência, um apelo trágico contra a crueldade. A cronologia da questão a esclarece muito facilmente, pois, como descreve o historiador Paul Johnson, em seu livro “Jesus – uma biografia de Jesus Cristo para o século XXI”, “o primeiro local de adoração cristã data de aproximadamente 50 d.C.”. Então como é possível que a tortura, de que o próprio Cristo foi vítima, seja produto ou mesmo tenha sido disseminada pelo Cristianismo ou pela ainda posterior Igreja Católica? É o besteirol ideológico movido pela moda anticlerical e antirreligiosa. É chique falar besteira! É bonito expor teses e críticas que demonstram a incapacidade do interlocutor sequer de se posicionar na cronologia histórica, na sequência pura e simples dos fatos. Será que existe um GPS histórico para presentear para essa gente?  Na verdade, o que escapa por gosto ou por ignorância de boa parte das pessoas que repetem essas fórmulas equivocadas é que a própria Igreja Católica, no bojo da Inquisição, mesmo quando perpetrava torturas para obtenção de provas e confissões, não agia de modo diverso do que era praticado em seu redor, no contexto histórico em que estava inserida. Ou melhor, agia sim, porque o que as normas da Inquisição fizeram foi regular e impor limites para a prática da tortura. Antes esta era perpetrada sem qualquer limite ou regulamento. Ora, condenar a Igreja Católica e a Inquisição em especial como “criadoras” e disseminadoras da tortura institucionalizada, seria o mesmo que acusar o Marquês de Beccaria, iluminista do século XVIII, que defendeu o Princípio da Legalidade das Penas (obra “Dos Delitos e das Penas”), de criar todas as ilegitimidades da pena de prisão. Ele estabeleceu o princípio basilar do Direito Penal de que não pode existir pena sem prévia lei, então é justo culpá-lo pela existência de prisões? Porque muitas pessoas são presas? Note-se o absurdo de um raciocínio como este. Mas, não é “bonito”, não faz “pose de intelectual da moda” falar mal de Beccaria. Não dá aparência de inteligente. O bom é atirar pedras na Igreja Católica. Falando inclusive em pena de prisão, até pela origem etimológica de várias palavras como pena, penitenciária, cela é visível que a conversão paulatina das penas corporais (de morte, cruéis, de açoite etc.) em penas de prisão foi obra do Direito Canônico (penitenciária, vem de penitência; cela, é o quarto de um religioso onde este era recolhido para refletir por seus pecados e indisciplina etc.). E as cruzadas que são condenadas como uma guerra santa sanguinária sem precedentes, quando, na verdade, são uma reação tardia de aproximadamente 400 anos de invasão de territórios sagrados e morticínio de cristãos? Isso justifica novos morticínios pelas Cruzadas? É claro que não. Nem as adequa à mensagem do Cristo. Mas, deve levar as pessoas a considerarem um sentido de proporção e uma visão mais realista dos fatos. A instituição que foi responsável, em meio a erros inerentes a qualquer obra humana, pela humanização das penas é acusada de ser a grande repressora e disseminadora da crueldade pela humanidade afora. Mas, tudo isso só é possível em meio a uma sociedade tomada pela superficialidade, pela leitura epidérmica e unilateral dos fatos históricos, sem nenhum interesse de aprofundamento ou visão crítica. Uma sociedade onde lugares comuns e frases feitas são mais que suficientes para convencer qualquer um, inclusive os que se autointitulam “intelectuais”.

Toda uma herança cultural genuína e benfazeja é muitas vezes desprezada, criticada e até ridicularizada em nome de uma “secularização” pervertida que se entende como via de perseguição religiosa. Secularização não significa isso, mas tão somente a separação entre Estado e Religião, tal como, aliás, já indicava Jesus Cristo ao ensinar “daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, bem como ao afirmar claramente que seu reino não é deste mundo. O que a secularização não pode permitir e deve inclusive coibir é que a Religião se imiscua de forma arbitrária nas questões sociais, impondo pela força e em desobediência às leis, que são por definição gerais, seus preceitos (p. 159).  Como já visto neste texto o laicismo não se opõe à Religião, ele somente se opõe à conversão da Religião em óbice à prática da liberdade, do pluralismo e da diversidade típicos das “sociedades abertas” (p. 160).

É lapidar a lição de Vargas Llosa:

“Assim como tenho firme convicção de que o laicismo é insubstituível numa sociedade realmente livre, com não menos firmeza acredito que, para ser livre, é igualmente necessário que na sociedade prospere uma intensa vida espiritual – o que, para a grande maioria, significa vida religiosa - , pois, caso contrário, as leis e as instituições, por mais bem concebidas que sejam, não funcionam cabalmente e muitas vezes se deterioram ou corrompem. A cultura democrática não é feita apenas de instituições e leis que garantam equidade, igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades, mercados livres, justiça independente e eficaz, o que implica juízes probos e capazes, pluralismo político, liberdade de imprensa, sociedade civil forte, direitos humanos. É feita também e sobretudo da convicção arraigada entre os cidadãos de que esse sistema é o melhor possível e da vontade de fazê-lo funcionar.  Isso não pode ser  realidade sem valores e paradigmas cívicos e morais profundamente ancorados no corpo social, algo que, para a imensa maioria dos seres humanos,  é indistinguível das convicções religiosas” (p. 161).

Em consonância plena com o pensamento acima exposto, Jónatas E. M. Machado (“Estado Constitucional e Neutralidade Religiosa”) traz à baila a doutrina de Carl Schmitt que destaca o fato de que “a teoria política e o direito constitucional contemporâneos se alimentam da secularização de conceitos teológicos sedimentados ao longo dos séculos” (“Politische Theologie”). Dessa maneira, conclui com acerto Machado que é “fato indesmentível, embora nem sempre discernido e assumido”, que “os fundamentos do Estado Constitucional se encontram, em última análise, nas ideias fortes da matriz judaico – cristã que conformam a civilização ocidental”.

A não admissão e reconhecimento deste fato notório revelam ou má fé ou uma absoluta incultura disfarçada sob a pele de uma pseudointelectualidade marcada pela característica daqueles que, de acordo com o dito popular, “ouviram o galo cantar, mas não sabem onde”.

Como bem esclarece o grande historiador Paul Johnson (“Jesus – uma biografia de Jesus Cristo para o século XXI):

“De muitas formas – especialmente no âmbito cultural e moral – a vida de Jesus e a fé que ele criou são os acontecimentos centrais da história da humanidade, em torno dos quais tudo gira”.

A absoluta necessidade de uma base espiritual a sustentar a sociedade culturalmente é atestada por uma série de grandes pensadores arrolados por Llosa, tais como John Stuart Mill, Karl Popper, Adam Smith, Ludwig Von Mises, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin e Milton Friedman. Segundo esses autores essa é a melhor via para manter viva a distinção entre o mero preço e o valor das coisas e das pessoas (aliás, estas segundas não têm nunca preço, mas apenas valor intrínseco). É especificamente a falta dessa base espiritual invisível, mas influente, que faz desmoronar todo o sistema, propagando a anomia, a anarquia, a insegurança, a desconfiança e transformando política e economia em instrumentos de dominação e exploração cruéis. O Capitalismo se torna “selvagem” e brutal exatamente porque se desapega de conteúdos espirituais que o deveriam conter, como já antevia Max Weber em sua obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (p. 165).

Nessa mesma trilha Llosa chega à exata conclusão de que a abolição total do ensino religioso nas escolas públicas significaria formar uma geração de claudicantes culturais privados dos conhecimentos básicos para compreender a história, a tradição, para poder aproveitar a arte, a literatura e grande parte do pensamento ocidental, o qual se encontra prenhe de “ideias, crenças, imagens, festividades e costumes” de origem religiosa próxima ou remota. A mutilação intelectual de toda uma juventude criada na ilusão de que a Religião não existe ou é desimportante é mais um reforço para a conformação da “civilização do espetáculo”, marcada pela frivolidade, superficialidade, ignorância, curiosidade mórbida e péssimo gosto. O ensino religioso não deve ser proselitista nem constrangedor, mas deve ser capaz de demonstrar o relevante papel exercido pelo cristianismo na formação cultural do Ocidente. Isso não implica em “dourar a pílula”, mas em expor todos os aspectos positivos e negativos iluminados pela verdade e pela imparcialidade. O fato é que a influência religiosa na história, nas artes, na filosofia, na música, na arquitetura, na literatura e em muitos outros aspectos é tão ampla e relevante que seu desprezo ou ocultação só pode resultar num futuro coalhado de “analfabetos funcionais e especialistas ignorantes e insensíveis” (p. 166 – 167).

Em um texto complementar de título “Sinal da Cruz” (p. 169 – 173) Llosa parece entrar em contradição com suas próprias convicções até então expostas. Ele não percebe o excesso de suscetibilidade, senão a própria falta de sinceridade no episódio de um casal de discípulos do humanista Rudolf Steiner que, em meio a uma pequena aldeia da Baviera, ingressou com uma ação judicial alegando que “seus três filhinhos” estavam “traumatizados” com uma imagem do Cristo crucificado que eram constrangidos a ver, diuturnamente, ornamentando as paredes de uma escola pública em que estudavam. O tribunal acatou essa cristalina teatralização midiática e determinou a retirada dos crucifixos. Ninguém se deu conta que as “pobres crianças” certamente não se traumatizavam com jogos eletrônicos em que se mata e explode pessoas e somam-se pontos quanto mais sangue jorra. Mas Llosa considera a decisão correta e tece críticas à capacidade de influência da Igreja Católica e outras religiões na sociedade. Ora, mas este não é o mesmo autor que defende a liberdade de expressão e participação no discurso público de todo e qualquer cidadão ou instituição legalmente organizada, autorizado a expressar suas convicções e defendê-las, sejam elas religiosas, agnósticas, atéias ou o que forem? Chega a mencionar ao final de sua exposição, como um exemplo de intromissão indevida da Igreja Católica, suas manifestações contrárias à liberação do aborto. Há aqui um pressuposto ou até mesmo um preconceito (no sentido etimológico da palavra: pré – conceito), pois que já se considera o abortamento como um direito absoluto e reconhecido universalmente. Por que isso? Por que se na verdade o abortamento é considerado crime em várias legislações e inclusive em Pactos Internacionais que versam sobre Direitos Humanos (v.g. Pacto de São José da Costa Rica que tutela a vida desde a concepção)? A questão está solucionada, está consolidada a posição pró – aborto simplesmente porque é mais próxima do pensamento leigo? Não se pode mais discutir a questão? Onde está o autor que em trechos de sua obra afirma categoricamente, e com absoluta razão, que uma discussão democrática deve permitir a manifestação de todos os lados da questão, sob pena de sequer poder ser chamada de discussão ou debate? Seria debate a reunião de grupos com as mesmas ideias que se juntam para homologar pacificamente e sem nenhuma objeção tudo aquilo com que previamente concordam, opondo barreiras intransponíveis para qualquer questionamento? Isso é um debate ou uma troca de afagos autocomplacentes?

Em suas manifestações conclusivas Vargas Llosa retoma a comparação entre a cultura conhecida no passado e o atual conceito multifacetado de cultura. Ele esclarece com brilhantismo que a antiga cultura exerceu inúmeras vezes o papel relevantíssimo da criação de uma consciência que impedia as pessoas de desprezarem os problemas de sua época e terem uma visão crítica daquilo que as rodeava. Agora, ao reverso, a “cultura” ou aquilo que subverte o dito conceito, tem um papel de paliativo ou analgésico, senão anestésico, ensejando o ambiente e as condições propícias para que os problemas sociais sejam deixados de lado, para distrair as pessoas de tudo aquilo que é sério, seduzindo-as com imagens e divertimento. A “cultura do entretenimento” de hoje cria um enganador “paraíso artificial”, análogo à fuga propiciada pelo consumo de um cigarro de maconha ou uma carreira de cocaína. A “cultura do divertimento” se converte em “feriazinhas de irrealidade” ao invés de mergulhar o homem em seu tempo e sua realidade que dele dependem para o bem e para o mal (p. 183).

O movimento que já vem de longa data e se reforça dia a dia, conforme acima consignado, é muito forte e difícil de reverter, mas o autor em destaque comemora o fato de que a história não é fatal, de forma que ainda há tempo para retificações e correções de curso (p. 185). Aliás, todos aqueles que a exemplo de Francis Fukuyama e Hegel, prognosticaram o fim da História (“O fim da história” e “O fim da história e o último homem”) foram desmentidos pelos fatos.

No campo da literatura Llosa chama a atenção para a previsão do escritor latino – americano Jorge Volpi de que em pouco tempo o livro físico será substituído por seu correlato digital. Ao contrário de Volpi, Vargas Llosa não se entusiasma com a ideia, mas se angustia o que também ocorre com o autor dessas linhas. Desconfia Llosa, penso que com razão, que a mudança do livro físico em papel para o livro eletrônico não será somente formal, uma questão de apresentação ou invólucro. Entende o autor que poderá ocorrer uma deformação na própria escrita e nos fins almejados pelos escritores. Pensa que alguma coisa da virtualidade ou imaterialidade do livro eletrônico contaminará o conteúdo da literatura ali produzida e fixada, como já acontece com a literatura “canhestra, sem ordem nem sintaxe, feita de apócopes e gíria, às vezes indecifrável, que domina o mundo dos blogs, twitter, face book e outros sistemas de comunicação através da rede”. Prevê que o uso do simulacro digital para expressão venha a trazer um sentimento de liberação dos autores quanto a eventuais exigências formais da escrita, de forma que a gramática, a ortografia, a concordância e os princípios mais elementares da arte de escrever venham a ser simplesmente desprezados, o que seria uma decadência cultural incrível. Teme que o livro virtual siga o mesmo destino de banalização que a tela provocou com o advento da televisão, o que não é de se duvidar. Assim sendo, literatura, filosofia, história, crítica, poesia e outras manifestações culturais têm o potencial de se transformarem em entretenimento superficial e passageiro. E isso redundará numa geração de leitores incapazes de avaliar “certas obras exigentes de pensamento ou criação”, as quais lhes parecerão coisas de um passado arcaico, inapreensível e incompreensível (p. 187).

Neste caminho de percepção de que o formato em que o livro é apresentado pode influenciar em seu conteúdo, cita Marshall McLuhan, o qual há mais de quinhentos anos já avisava que “os meios não são nunca meros veículos de um conteúdo, que eles exercem uma influência subliminar sobre este, e que, no longo prazo, modificam nossa maneira de pensar e agir”.  Contemporaneamente aponta como exemplar sobre a questão a obra de Nicholas Carr que tem o título em português: “A geração superficial – o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”. E ainda menciona a conclusão de Van Ninwegem, que estuda profunda e eruditamente os efeitos da internet sobre nosso intelecto e costumes. Para este autor por último citado está comprovado que o abandono das soluções dos problemas aos computadores diminui sensivelmente “a capacidade do cérebro de construir estruturas estáveis de conhecimentos”. Trocando em miúdos, “quanto mais inteligente nosso computador, mais burros seremos” (p. 190 – 193). Emblemática a frase de Michel Henry (“A Barbárie”):

 “A era da informática será a era dos cretinos”.

O mesmo autor acima mencionado também destaca a conversão do desejo de permanência nas obras culturais em uma satisfação com a brevidade do passageiro e superficial na “cultura do entretenimento”, com a consequente decadência que vem a reboque:

“Se considerarmos as grandes obras da cultura sob o aspecto de sua transmissão, e assim como mídias, é preciso reconhecer que sua situação se modificou: porque tinham sido concebidas tendo em vista sua permanência e se elevavam propriamente nesta, era delas mesmas, seu ser – estável sempre presente e oferecido – que elas avançavam na comunicação, investindo aqueles que reproduziam para si o Sagrado de que elas formavam a substância.

Tal não é mais o caso hoje. Afogada no fluxo de produtos fabricados em série, de sua publicidade degradante, das imagens televisivas se sucedendo sem interrupção e destinadas ao desaparecimento imediato, ‘livros’  escritos não mais pelos escritores ou pensadores, cientistas ou artistas, mas por apresentadores de televisão, políticos, cantores, gângsteres, prostitutas, campeões de todos os esportes e aventureiros de todo gênero, a obra de arte não realiza mais sua própria promoção, ela deixou, precisamente, de ser o médium. Ela tem necessidade de novas mídias, do substituo audiovisual – que não obtém jamais. Porque as mídias são tributárias da esfera política, de um conformismo social cujo domínio e poder elas aumentaram indefinidamente, porque,  dessa maneira, elas se sujeitam às ideologias dominantes, às modas, ao materialismo ambiente, a essa corrupção que quer que, a comunicação tendo se tornado seu próprio conteúdo, as mídias falam principalmente das mídias, anunciando o que ocorrerá, descrevendo o que ocorreu, e, assim, aqueles que irão apresentá-las, os que acabam de se apresentar, os cantores, atrizes, políticos, aventureiros de todo tipo, campeões de todos os esportes – todos aqueles a quem estendemos os microfones: os novos cléricos, os verdadeiros pensadores de nossa época. E, com eles, a atualidade, o sempre novo e o sempre nulo, o sensacional e o insignificante, o materialismo ambiente, a vulgaridade, o direto, o pensamento reduzido a lugares – comuns e a linguagem das onomatopeias; a fala dada àqueles cujo discurso se tem certeza de ser entendido: aqueles que não sabem nada e nada têm a dizer. Pelo fato de a comunicação midiática, que define a existência midiática, invadir tudo, os valores são também, agora, os das mídias. A liberdade, a liberdade fundamental e essencial, ‘o arco – butante de todas as outras’, é a liberdade de imprensa, a liberdade de informação, isto é, na verdade, a liberdade das mídias e, desse modo, da própria existência midiática, a liberdade sem limites de emburrecer, de aviltar, de sujeitar” (griflos meus).

Nesse domínio praticamente absoluto da mídia epidérmica, comercial e fugaz. Em meio a esse vórtice incontido de imagens, sons e mensagens diretas e subliminares opera-se aquilo que Pascal Bruckner chama de “superinformação produtora de ignorância” (“A Tirania da Penitência – Ensaio sobre o masoquismo ocidental). Nesse contexto nenhuma cultura genuína pode se desenvolver, aflorar ou sobreviver.

Como anteriormente foi lembrado Hegel, não é despiciendo prever que assim como este inspirou Francis Fukuyama, possa também servir de base para aqueles que pretendam apontar que toda a argumentação desenvolvida neste texto no seguimento da linha de Vargas Llosa, seja o exercício ilegítimo de uma resistência ao inevitável “espírito do tempo” em que vivemos (“Zeitgeist”). Porque para Hegel cada época histórica era conformada por um desenvolvimento ou característica espiritual dos seres humanos que a compunham e que, então, a moldava de acordo com essa inspiração. É claro que esse argumento de matriz hegeliana já foi devidamente refutado e é hoje considerado uma chamada “falácia do espírito em movimento” (Roger Scruton – “As vantagens do pessimismo). 

Acontece que foi exatamente essa falácia que, nas mãos de pensadores bem menos competentes que Hegel, mas muito espertos, serviu como “arma retórica” para fundamentar a renovação desconstrutiva e até destrutiva em todos os campos e tornar racional uma hostilidade generalizada ao passado. Daí advém a crença cega na denominada “filosofia do progresso” que determina nossa forçosa adequação ao “espírito do tempo”. Assim todas as condutas passam a ser justificadas, não tendo em vista os argumentos positivos com que poderiam ser sustentadas pelos indivíduos ou grupos, mas tão somente em razão de uma espécie de arraste ocasionado pelo “espírito do tempo”, que força a todos e a tudo a uma atuação praticamente determinista. Esse tipo de visão limita a liberdade humana e, consequentemente, sua própria responsabilidade diante da história e dos fatos do dia a dia. Nesse passo estaríamos nos tornando cada vez mais incultos, ligados à cultura da imagem e do entretenimento, nos convertendo em “homo ludens” de forma absoluta, não por opção que pode ser alterada, mas por um caminhar histórico impulsionado por um espírito avassalador que nos controla e enreda sem saída possível. O pior é que isso aliado ao “mito do progresso”, que até pode ser verdadeiro na esfera científica, mas não no sentido humanístico, nos conduz não somente ao conformismo, mas também a uma sensação de satisfação e euforia (absolutamente infundada) com o “status quo”. Esse “molde mental” pode ter o poder de transferir o natural avanço da área científica que se caracteriza pelo acúmulo de conhecimentos e tecnologia de geração em geração, para campos onde isso é inaplicável como, por exemplo, na seara da moral, ou nos aspectos artísticos, culturais e espirituais. Todo esse autoengano torna corrente a ideia equivocada da entrada gloriosa em uma “nova era” moderna. Nessa “nova era” deveríamos nos conformar com o novo “espírito do tempo”, de forma que tudo que venha do passado, que seja tradicional, costumeiro, valores assentados, isso em todas as áreas, seriam meros resquícios “reacionários”. Essa atitude reacionária teria sua raiz na incompreensão das leis que governam o desenvolvimento histórico ocasionado pelo “espírito em movimento” da humanidade, ocasionando uma recusa irracional aos novos e alvissareiros tempos. Será que a crítica a Hegel serve para impedir os efeitos nefastos dessa espécie de argumentação e sua penetração na sociedade contemporânea? A resposta óbvia é não. Toda essa ilusão do “espírito do tempo” e do “mito do progresso” adquire sempre força, especialmente no bojo de um cientificismo materialista que domina a atualidade, criando e fundamentando as “panaceias dos utópicos”, a retórica da globalização e o “futurismo inescrupuloso dos transumanistas” (Roger Scruton – As vantagens do pessimismo).  Por isso é preciso ter prevenção quanto a esses argumentos tolos, porém extremamente envolventes.

Em meio a tanta miséria cultural que ameaça o destino da humanidade, Llosa com sensibilidade excepcional aposta na viabilidade e imprescindibilidade de manter a cultura democrática. Em seus termos:

“A melhor maneira que as nações livres têm de obter um planeta pacificado é promover a cultura democrática. Em outras palavras, combatendo os regimes despóticos, cuja simples existência é ameaça de conflito bélico, quando não de promoção e financiamento do terrorismo internacional. Por isso faço meu o chamamento de Wole Soyinka para que os governos do mundo desenvolvido apliquem sanções econômicas e diplomáticas contra os governos tirânicos, que violam os direitos humanos, em vez de ampará-los ou de fechar os olhos quando eles perpetram seus crimes, com a desculpa de que assim garantem os investimentos e a expansão de suas empresas. Essa política é imoral e também inviável, no médio prazo. Porque a segurança oferecida por regimes que assassinam seus dissidentes (como o do general Abacha, na Nigéria, ou a China que escraviza o Tibete, ou a tirania militar da Birmânia, ou o Gulag tropical cubano) é precária e pode desintegrar-se em anarquia ou violência como ocorreu com a União Soviética. A melhor garantia para o comércio, o investimento e a ordem econômica internacional é a expansão da legalidade e a liberdade por todo o mundo. Há quem  diga que as sanções  são ineficazes para impulsionar a democracia. Acaso não funcionaram na África do Sul, no Chile, no Haiti, para acelerar a derrubada da ditadura”? (p. 204).

É preciso lembrar que a “cultura democrática” é dependente diretamente da manutenção de uma “cultura genuína” porque sem uma classe ou grupo dotado de alta cultura (uma aristocracia) [6] a tendência é a derivação para a anarquia e para a tirania, o que já estava bem assentado na “República” de Platão. É que no seio de uma turba inculta e incapaz de pensar com maior profundidade é extremamente fácil semear a discórdia, o espírito de destruição que, num segundo passo, gera a anarquia, a qual vem a justificar a tirania de modelos governamentais autoritários e até totalitários sob o pretexto de manutenção da ordem pública. Isso porque se a incultura se dissemina de tal forma que já não existem mais pessoas cultas ou existem em número extremamente insignificante e sem representatividade política, não há freios intelectuais para qualquer manobra política que se pretenda. Há apenas uma multidão em trevas, sem pontos de luz para se guiar.

Enfim, talvez ainda se possa crer numa réstia de esperança, numa tomada de consciência quanto à realidade e numa guinada cultural que pode, quem sabe, ter por um dos instrumentos o próprio avanço tecnológico comunicacional, desde que bem utilizado. Afinal, é sempre bom lembrar o aforismo do poeta germânico Friedrich Hölderlin, segundo o qual “ali onde está o mal está também aquilo que salva”. 


Notas

[1] A palavra inglesa “Mainstream” que serve de título ao livro de Martel tem o significado de “corrente ou tendência principal”. É o que o autor descreve com relação à postura das pessoas em geral perante a cultura, abraçando a chamada “cultura do entretenimento”.

[2] Teatro situado em Paris, na região de Pigalle, o qual funcionou entre 1897 e 1962, apresentando shows de horror naturalista.

[3] Entretanto, não é de assustar que as oficinas de masturbação pareçam tão naturais num contexto em que defecar em público e ingerir as próprias fezes é considerada como uma manifestação artística de qualidade, conforme já se mencionou neste texto.

[4] No Brasil são paradigmáticos os exemplos das eleições do Deputado – Palhaço Tiririca e do Presidente  semi – letrado Lula, não pela simplicidade ou incultura dessas pessoas, mas pelo clima de louvor à incultura, ao sucesso desprovido de méritos a que todos podem chegar, o que degrada a população como um todo em termos potenciais de desenvolvimento cultural e de incentivo ao árduo trabalho de formação intelectual.

[5] As origens antropológicas desse relativismo moral e cultural já foram analisadas neste texto, inclusive com a exposição da crítica certeira de Vargas Llosa.

[6] Que jamais deve ser confundida com “Plutocracia” (poder dos ricos). A aristocracia aqui é empregada no sentido grego do termo, como “governo dos melhores”. Especificamente trata-se da necessidade de haver pessoas que efetivamente são dotadas de cultura genuína, a fim de compreenderem e apreenderem o valor da democracia e os meios adequados para sua manutenção. 

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Pequeno ensaio em resenha crítica da “Civilização do espetáculo” de Vargas Llosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3844, 9 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26314. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!