3 Limites da autonomia da vontade
Irineu Strenger destaca que se deve admitir a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais, porém, da mesma forma, deve-se ter cuidado com o “absolutismo invocado e sustentado por alguns autores”. Destaca entre os elementos limitadores, as leis imperativas internas do território no qual o contrato deve ser executado e as regras de ordem pública[26].
Segundo Maria Granziera, a autonomia da vontade “só tem existência jurídica quando exercida dentro dos limites e segundo as condições de uma determinada lei”[27].
Além da observância das leis imperativas e das regras de ordem pública, a fraude à lei também deve ser considerada como limitadora da autonomia da vontade na elaboração de um contrato internacional.
3.1 Ordem pública e lei imperativa
A ordem pública, conforme Esther Engelberg, é o “mais importante obstáculo à extraterritorialidade e à eficácia do direito alienígena no território dos Estados”. Porém, muita confusão ainda existe entre leis imperativas e leis de ordem pública. “As leis imperativas, isto é, aquelas que não podem ser afastadas pela vontade das partes, é que podem ser de duas categorias: umas visam os indivíduos, outras a sociedade, protegendo um interesse geral. Estas últimas são as leis de ordem pública”[28].
Ordem pública, conceituada por Irineu Strenger, é “o conjunto de normas e princípios que, em um momento histórico determinado, refletem o esquema de valores essenciais, cuja tutela atende de maneira especial cada ordenamento jurídico concreto”[29].
Assim, ordem pública é a moral básica de uma nação, medida pela sensibilidade média da sociedade. São os valores da sociedade como um todo em determinada época, levando em consideração, quando se trata de Direito Internacional Privado, a base social, política e jurídica, enquanto que para o Direito Interno considera apenas as questões jurídicas.
A ordem pública apresenta as seguintes características:
a) relatividade ou instabilidade: varia de acordo com a época, sendo que o que pode ser aceito pela moral da sociedade em uma determinada época, em outra pode ser totalmente descartado;
b) contemporaneidade: a ordem pública aplicada será a da data do julgamento e não a da data do fato;
c) fator exógeno: o ato ou sentença estrangeira que violar a ordem pública será barrado e repelido, não sendo aceito pelo ordenamento brasileiro.
Irineu Strenger explica o papel da ordem pública e sua aplicação nos contratos internacionais:
A ordem pública sempre desempenha importante papel, devendo-se, porém, distinguir a interna da externa, ou internacional. A primeira noção refere-se aos princípios de base, ou, como muitos chamam, ao Código moral e ético estabelecido e respeitado num sistema jurídico particular. A segunda noção refere-se a normas legais imperativas, que não podem ser evitadas nem excluídas pelo acordo das partes. No que concerne à ordem pública interna, devem-se levar em consideração somente a ordem pública do foro e a do lugar no qual o julgamento deve ser objeto de eventual execução. Menos força terão sempre a ordem pública do lugar da conclusão do contrato e a do lugar da arbitragem.[30]
Cada Estado estabelece sua ordem pública. As regras de ordem pública, expressamente qualificadas, pelo legislador são imperativas, mas “sempre é possível um tribunal considerar de ordem pública certa regra, mesmo que não o tenha sido assim declarada pelo legislador”[31].
As leis imperativas são as que atuam à medida que um dos elementos da relação contratual localiza-se dentro do território, mesmo com a submissão do contrato a uma lei estrangeira, por acordo de vontades. Exemplifica Irineu Strenger: cláusulas ligadas a disposições do Direito do Trabalho[32].
Rechsteiner cita em sua obra “Direito Internacional Privado: teoria e prática” a Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais, elaborada na Conferência Especializada Interamericana de Direito Internacional Privado em 1994. A Convenção faculta a modificação superveniente da lei escolhida, desde que não afete a validade formal do contrato, nem direitos de terceiros[33].
Em regra, as partes escolhem o direito aplicável, por ocasião da celebração do contrato ou de um outro negócio jurídico, perante o qual o direito internacional privada da lex fori admite a autonomia da vontade. Muitas legislações aceitam ainda a escolha do direito aplicável numa data posterior, inclusive durante o processo, desde que se trate de contratos internacionais. Ademais, é permitida a alteração da escolha do direito aplicável, já feita entre as partes, por várias legislações nos mesmos termos.[34]
Observa Esther Engelberg que no Brasil é permitida a incorporação de artigos de leis estrangeiras ou nacionais ao contrato internacional, sem prejuízo das regras de Direito Internacional Privado, que determinarão a lei aplicável, tais dispositivos figurarão como cláusulas contratuais desejadas pelos contratantes. Os limites da incorporação são traçados pelos preceitos de ordem pública. Assim, permite a invocação de tratados ou costumes internacionais. A incorporação pode se dar pela transcrição dos dispositivos ou pela simples invocação dos mesmos no contrato. As normas incorporadas não sofrerão quaisquer alterações que estes dispositivos originais venham a sofrer[35].
Segundo Ana Paula Martins Amaral, a ideia de se adotar a lex mercatoria (que será estudada na seção 1.3.1) como direito aplicável à regulamentação do contrato internacional encontra inúmeras barreiras, como a ofensa à ordem pública dos Estados envolvidos na relação. Aceitar que um direito, se é que assim podemos chamá-la, advindo da comunidade dos comerciantes, seja chamado para reger um negócio jurídico, seria considerado contrário aos princípios essenciais do Estado, ferindo a ordem jurídica vigente.
Segue a autora, dizendo que a lex mercatoria pode ser aceita nas decisões arbitrais, mas tais decisões encontrariam problemas quando necessitassem ser homologadas para então produzirem efeitos jurídicos num determinado Estado. A tese de que as decisões arbitrais não são dotadas de sanção, a não ser aquela advinda do poder estatal, não possuindo assim plena eficácia, é combatida pelos defensores da lex mercatoria, que argumentam estar a comunidade internacional munida de inúmeros meios para assegurar o cumprimento das sentenças sem recorrer ao poder estatal. Entre esses, destacam-se as sanções pecuniárias, morais e privativas, como fornecimento de caução para garantir as custas da arbitragem ou a execução da sentença, a publicidade da inexecução da sentença, a suspensão de qualidade ou o direito de membro, a interdição de utilizar no futuro as facilidades arbitrais do agrupamento e a interdição de acesso às bolsas ou mercados controlados pela instituição arbitral[36].
Rechsteiner esclarece que as regras do Direito Internacional Privado utilizam-se sempre nos casos perante os quais o direito aplicável é aquele decorrente da autonomia da vontade das partes. Sendo assim, a reserva da ordem pública interfere quando o direito escolhido pelas partes é um determinado direito estrangeiro que viola princípios fundamentais da lei do país[37].
Destaque-se que no Brasil, a declaração da ineficácia dos atos contrários à ordem pública está prevista no art. 17 da LICC:
Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terrão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Gabriel Sachett concorda que autonomia da vontade seja limitada pelas normas de ordem pública, não podendo prejudicar o hipossuficiente da relação (casos das relações de consumo), além de recordar da necessidade de observância à questão da fraude à lei[38], que será estudada em seguida.
3.2 Fraude à Lei
Registre-se inicialmente que regras de conexão são as normas estatuídas pelo Direito Internacional Privado que indicam o direito aplicável às diversas situações jurídicas conectadas a mais de um sistema legal, como é o caso dos contratos internacionais do comércio.
Segundo Jacob Dolinger, “dá-se a fraude à lei no Direito Internacional Privado quando o agente, artificiosamente, altera o elemento de conexão que indicaria a lei aplicável”[39].
Fraude à lei, portanto, é a fuga do indivíduo de um ordenamento jurídico para outro que lhe seja mais favorável.
A fraude à lei tem dois componentes, que se somam, abuso do direito e a ordem pública: o abuso de algum direito para se pôr sob a proteção de uma lei a fim de fugir à ordem pública da lei originalmente competente[40].
Toda fraude à lei é uma ofensa à ordem pública, porém o contrário nem sempre é aplicável.
A autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais é limitada pela fraude à lei, sendo que ela ocorre no caso de submissão de uma relação obrigacional à lei de um país com o qual o contrato não tem qualquer relação (lei neutra) e na submissão a uma lei estrangeira quando a relação jurídica é eminentemente interna (partes e objeto nacionais)[41].
Jacob Dolinger explica que o Direito Internacional Privado brasileiro concentrou sua preocupação em matéria de fraude à lei na questão do divórcio (art. 7°, §6° da LICC), enquanto na Argentina há disposições expressas com relação aos contratos: o art. 1.207 do Código Civil dispõe que os contratos realizados em país estrangeiro para violar as leis da República não têm valor algum ainda que não sejam proibidos no lugar em que se tenham celebrado, e no art. 1.208, figura a mesma regra para a hipótese contrária, que os contratos realizados na República para violar direitos e leis de uma nação estrangeira não terão efeito algum[42].
Forum Shopping é a procura por um ordenamento jurídico em que as partes (ou uma delas) pensam que lhes será feita mais justiça, ou onde terão mais probabilidade de êxito, por uma ou outra razão[43]. Enfim, ao invés de optar pela lei que deveria ser aplicada naquele contrato internacional, optam por outra mais “interessante” para os objetivos das partes.
O forum shopping insere-se no estudo da fraude à lei, pois muitas vezes, as partes se desviam de sua lei sem mudar de nacionalidade, sem trocar de domicílio, mas simplesmente recorrendo ao Judiciário de um outro país, que admite sua competência jurisdicional para todos que a ele recorrem. São chamados de “juízos facilitários”.
Francescakis, apud Jacob Dolinger, classifica tal situação de fraude indireta à lei aplicável. Considera que na fraude à lei, modifica o direito aplicável pela mudança da nacionalidade da parte, com o manifesto intuito de fugir da lei originariamente aplicável. Já no forum shopping ocorre uma violação. Não ocorre mudança no direito competente, mas a busca de outra jurisdição, recusando-se à aplicação da lei competente a aplicação de uma outra lei, incompetente[44].
Alguns países admitem o forum shopping em suas legislações. O Brasil nega tal possibilidade, sendo que o STJ não reconheceria uma sentença (judicial ou arbitral) relacionada a um contrato em que as partes tivessem se valido de tal prerrogativa.
4 Lei aplicável
Nicola Minervini apresenta o seguinte fluxograma quanto à competência de legislações para contratos[45]:
4.1 Lex Mercatoria
Ensina o advogado Frederico do Valle Magalhães Marques, que a lex mercatoria teve origem na Idade Média, em resposta aos direitos feudais, plenos de privilégios, que entravavam as relações de comércio. Surgida nas Feiras, como ordenamento a reger as relações entre os comerciantes, de modo uniforme, através da aplicação obrigatória dos usos e costumes comerciais. Em certo desuso quando das grandes codificações, a nova lex mercatoria emerge na atualidade como um corpo de normas jurídicas, escrito ou não, ainda incompleto, que visa à regência das relações internacionais do comércio, como um poder normativo independente do direito positivo dos Estados. Isso porque para o comércio internacional, a utilização do método conflitual como meio de solução dos litígios apresenta características de incerteza e imprevisibilidade inaceitáveis para a sua dinâmica. Desta forma, sua vocação universalista leva em conta as necessidades do comércio internacional, suas relações, e não as legislações estatais internas[46].
Ana Paula Martins Amaral elucida que os tribunais, antes da existência das legislações nacionais, ao julgarem litígios, não utilizavam a "Common Law" e sim a Lex Mercatoria, entendida como o costume dos comerciantes, o direito dos contratos, aplicado independentemente da lei do lugar e da lei pessoal das partes que agiam em pé de igualdade no processo. Na Inglaterra, do séc. XV, prevalecia a ideia de que os mercadores não eram obrigados pelas leis inglesas, mas deviam ser julgados de acordo com a lei natural, que alguns denominam lex mercatoria, que é universal no mundo.
Com a criação do Estado nacional, a lex mercatoria começou a perder forças, já que os costumes dos comerciantes foram integrados ao seu sistema jurídico. Porém, segundo Ana Paula Martins Amaral, a vontade continuou sendo elemento fundamental dos contratos mercantis. Segundo ela, “se se tornou defeso às partes a aplicação de uma lex mercatoria, a autonomia da vontade prevalecia, permitindo às partes a escolha de um estatuto que regulasse os atos entre comerciantes nos contratos internacionais”[47].
Irineu Strenger aponta em seus estudos, três tendências para a lex mercatoria:
A primeira, situando-a como uma ordem legal autônoma, criada espontaneamente pelas partes envolvidas nas relações econômicas internacionais e existindo independentemente dos sistemas nacionais; a segunda, imaginando-a como um corpo de regras suficiente para decidir uma disputa, operando como alternativa de uma diferente lei nacional aplicável; e a terceira, considerando-a como complemento de uma lei nacional aplicável, vista como nada mais que uma gradual consolidação dos usos e determinadas expectativas do comércio internacional.[48]
Simplificando, Ana Paula Amaral leciona as mesmas três correntes que tentam explicar a nova lex mercatoria[49]:
a) direito anacional ou ordem jurídica autônoma, criada espontaneamente pelos agentes do comércio internacional, cuja existência independe dos ordenamentos jurídicos estatais;
b) lex mercatoria seria uma alternativa para a ordem jurídica aplicável, por constituir um corpo suficiente de regras jurídicas que permitem decidir um litígio entre agentes do comércio internacional;
c) lex mercatoria se destinaria a complementar o direito nacional aplicável, constituindo-se numa consolidação dos usos e costumes do comércio internacional.
Irineu Strenger define lex mercatoria como "um conjunto de procedimentos que possibilita adequadas soluções para as expectativas do comércio internacional, sem conexões necessárias com os sistemas nacionais e de forma juridicamente eficaz"[50].
Citando Philippe Kahn, Esther Engelberg explica que são cinco as fontes formais da nova Lex Mercatoria[51]:
a) Contratos-tipo: associações nacionais e internacionais de um mesmo ramo profissional estabelecem uma regulamentação jurídica para reger o contrato de venda de determinados produtos e serviços e todos os contratos acessórios (seguro, transporte);
b) Condições Gerais de Compra e Venda: o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, através da Comissão Econômica para a Europa, estabeleceu algumas regras gerais aplicáveis a todos os contratos, só restando às partes regular em cada caso particular as questões relativas ao preço, prazo, modo de entrega e condições de pagamento, visto estas não poderem ser fixadas previamente;
c) Comecon (Conselho de Entreajuda Econômica que reúne a Rússia, Polônia, Tchecoslováquia, Bulgária, Romênia, Hungria, Albânia, Alemanha): criou condições gerais e consequentemente uma fórmula única para as relações comerciais entre esses países;
d) Incoterms: obra da Câmara de Comércio Internacional, editada pela primeira vez em 1936. Serão tratados em capítulo à parte;
e) Leis Uniformes: Trata-se de um projeto preparado pelo Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), sobre a venda internacional de bens móveis corporais.
Ana Paula Martins Amaral acrescenta como fontes da nova Lex Mercatoria, os princípios gerais do direito, os usos e costumes comerciais internacionais e a jurisprudência arbitral.
Para Batisffol, referido por Esther Engelberg, as partes podem estipular que o seu contrato não será submetido à lei alguma, ou ainda, isentar-se de sofrer os efeitos da eventual modificação da lei escolhida que seria declarada aplicável aos contratos em andamento[52].
Os princípios gerais do direito, geralmente ligados às relações contratuais, como o princípio da boa-fé, pacta sunt servanda, culpa in contrahendo, exceptio non adimplenti contractus, dever de limitar danos, entre outros. Tais princípios abrangem tanto o direito interno quanto o internacional e são extraídos do estudo do direito comparado de diversos ordenamentos nacionais e do raciocínio abstrato dos árbitros.
Os usos comerciais derivam da adoção voluntária e repetida dos mesmos procedimentos por parte da generalidade dos operadores comerciais econômicos. Tais conceitos não podem ser definidos com precisão e, na prática, são acolhidos com certa elasticidade.
Irineu Strenger destaca que, efetivamente, são fontes da lex mercatoria as regras emanadas das organizações internacionais e/ou entidades privadas com atuação representativa das comunidades comerciais, mas enfatiza que não basta uma entidade elaborar uma fórmula padrão de contrato ou editar regras, pretendendo que se incorporem à lex mercatoria, é indispensável que a comunidade comercial adote e aceite tais contratos ou regras nas suas relações diárias de negócios[53].
A jurisprudência arbitral é o ambiente em que a lex mercatoria se concretiza. De fato, estreita é a ligação entre lex mercatoria e a arbitragem. José Alexandre Tavares Guerreiro, citado por Ana Paula Martins Amaral, com muita propriedade, expõe a questão:
A lex mercatoria pressupõe a existência de uma comunidade de operadores do comércio internacional que possui interesses próprios e que encontra na arbitragem comercial internacional o mecanismo adequado para a aplicação de normas aptas a resolver as pendências instauradas quanto aos contratos celebrados, no âmbito dessa comunidade, pelas partes respectivas. A jurisprudência arbitral integra, por sua vez, o conteúdo da lex mercatoria, a qual, mesmo sem constituir ordem ou sistema, tende a se institucionalizar, cada vez mais superando a insuficiência do método de conflitos (de leis e de jurisdição) do direito internacional privado, para a disciplina dos contratos internacionais, já que o resultado da aplicação desse método é exatamente a determinação de uma lei nacional, o que já não mais se coaduna com as necessidades contemporâneas.[54]
Irineu Strenger acompanha tal entendimento quando expõe que “o regime arbitral é o que melhor exprime a independência do comércio internacional no que concerne à solução de seus problemas, residindo nos textos de suas decisões os melhores repositórios para justificar a lex mercatoria”[55].
A autonomia da vontade, princípio fundamental na realização dos contratos internacionais, permite às partes a escolha da lei para reger a obrigação. A lex mercatoria, entendida como um novo direito surgido da comunidade de comerciantes pode ser chamada, segundo alguns doutrinadores, a regular o contrato. Através da autonomia da vontade as partes encontrariam na lex mercatoria um veículo eficaz para regular suas negociações e governar seus negócios. Regras específicas para cada situação vivida no comércio internacional, criadas pela própria comunidade de comerciantes, seriam a resposta adequada para os novos desafios do mundo globalizado.[56]
A professora Ana Paula Martins Amaral ainda aclara que os componentes da lex mercatoria poderiam ser aceitos como parte integrante dos contratos internacionais, mas não poderiam figurar como um novo direito. Seriam eles considerados apenas usos e costumes do comércio internacional, que a exemplo dos Incoterms são utilizados nos contratos com base na autonomia da vontade. São com isso, aceitos pela justiça dos Estados, mas não se apresentam como parte de um novo direito considerado supranacional. A autonomia da vontade seria, assim, o acesso permitido aos usos e costumes internacionais para figurarem nos contratos, mas não os validariam como "direito" e sim como complemento do direito nacional aplicável ao caso concreto[57].
A Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais permite ao juiz aplicar sempre as regras da Lex Mercatoria ao contrato internacional, e isso independente do direito aplicável ao contrato[58].
Gabriel Sachett entende que a Lex Mercatoria, por ser um direito anacional e assim contrariar a ordem pública, e o Código Bustamante[59] não devem mais ser usados na elaboração de contratos internacionais[60]. A orientação para a não utilização do Código Bustamante deve-se ao fato de ter sido revogado tacitamente pela LICC de 1942 (lei posterior derroga o tratado anterior quando em conflito com esse). Porém, deve-se considerar que não é mais indicado seu uso porque suas regras não correspondem mais às tendências modernas do Direito Internacional Privado, além de ser muito abrangente, abordando assuntos não relacionados à área, e vago em alguns conteúdos. Seu campo de atuação também é limitado, em virtude do reduzido número de causas de Direito Privado com conexão internacional nos países vinculados juridicamente ao Código.
Na visão do Mestre Irineu Strenger, “a lex mercatoria é ainda um processo longe de seu fim, mas o que já existe de palpável e definido permite esperar pelo alargamento de seu domínio”[61].
Irineu Strenger conclui que “o comércio internacional encontra, na lex mercatoria, o amparo de que necessita, embora ainda tenha muitas conquistas a fazer nesse campo, cuja potencialidade é ilimitada, porque caminha pari passu com o progresso”[62].
Conclusivamente, é recomendado o uso da lex mercatoria, por ser um direito próprio dos comerciantes, com regras mais claras e próximas da realidade desses, especialmente quando a solução de eventuais conflitos estiver direcionada ao sistema arbitral.
4.2 Necessidade de lei específica e uniforme
As relações econômicas internacionais têm-se desenvolvido de forma tão grandiosa nas últimas décadas, especialmente depois da criação dos blocos econômicos, que as legislações existentes podem ser consideradas insuficientes ou mesmo inexistentes para regulamentar tais negócios. Daí, a necessidade de uma evolução normativa nesta área jurídica, especialmente para que o Brasil não seja prejudicado no comércio internacional em virtude dessa lacuna legislativa.
O professor Wagner Menezes apresenta sua crítica:
A bem verdade, a ausência de um conjunto de normas codificadas disciplinando a aplicação do direito ao conflito de normas no espaço, leva a uma grande confusão e ao desconhecimento da matéria. A despeito da sua importância, o Direito Internacional Privado tem seu fio condutor inserto na Lei de Introdução ao Código Civil, local de certa forma desconfortável para uma disciplina cujo objeto é outro do que aquele previsto pelo Código Civil.[63]
Irineu Strenger registra em sua obra a “inércia do legislador nacional para empreender a conquista de um direito mais abrangente e efetivo, capaz de exercer tutela válida dos interesses do comércio internacional”. Em face dessa inércia, “os praticantes do comércio internacional elaboram sistema que lhes é próprio, fundamentado na liberdade contratual”[64].
O Projeto de Lei do Senado n° 269, de 16/09/2004, do Senador Pedro Simon[65], dispõe sobre a aplicação das normas jurídicas, prevendo em seu artigo 12 (Capítulo III - Direito Internacional Privado; Seção I - Regras de Conexão):
Art. 12. Obrigações Contratuais - As obrigações contratuais são regidas pela lei escolhida pelas partes. Essa escolha será expressa ou tácita, sendo alterável a qualquer tempo, respeitados os direitos de terceiros.
§ 1º Caso não tenha havido escolha ou se a escolha for ineficaz, o contrato, assim como os atos jurídicos em geral, serão regidos pela lei do país com o qual mantenham os vínculos mais estreitos.
§ 2º Na hipótese do § 1º, se uma parte do contrato for separável do restante, e mantiver conexão mais estreita com a lei de outro país, poderá esta aplicar-se, a critério do Juiz, em caráter excepcional.
§ 3º A forma dos atos e contratos rege-se pela lei do lugar de sua celebração, permitida a adoção de outra forma aceita em direito.
§ 4º Os contratos realizados no exterior sobre bens situados no País, ou direitos a eles relativos, poderão ser efetuados na forma escolhida pelas partes, devendo ser registrados no Brasil de acordo com a legislação brasileira.
Justificativa: Relativamente ao art. 12 do projeto, "debateu-se no regime da LICC se os contratantes têm liberdade de escolher a lei aplicável para suas avenças, uma vez que o legislador não incluiu disposição expressa a respeito, como se vê em Irineu Strenger Autonomia da Vontade em Direito Internacional Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1968, principalmente às pp. 193 ss. Haroldo Valladão interpretava o § 2º do art. 9º (‘A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente’) como indicadora de que a regra se baseia em uma presunção, daí o termo reputa-se, do que deduzia que a presunção cessa se e quando as partes elegem lei aplicável ao contrato. Esta posição não conquistou unanimidade, mas pode-se afirmar que a tendência da moderna doutrina brasileira é no sentido de admitir a autonomia das partes contratantes para fixar a lei a ser aplicada.
No mundo contemporâneo, a liberdade das partes para fixar a lei aplicável está consagrada nas mais importantes convenções de direito internacional privado, - Convenção de Roma sobre Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, de 1980 (art. 3º), Convenção da Haia sobre a Lei Aplicável à Compra e Venda de Mercadoria, de 1986 (art. 7º), e Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável às Obrigações Contratuais, México, 1994 (art. 7º), esta assinada pelo Brasil. Mario Giuliano e Paul Lagarde, falando sobre o art. 3º da Convenção de Roma, assinalam que a norma consoante a qual o contrato é regido segundo a lei escolhida pelas partes constitui 'uma reafirmação da regra consagrada atualmente no direito internacional privado de todos os estados membros da Comunidade, bem assim da maioria dos direitos dos outros paises' (Journal Officiel des Communautés Européennes, 31.10.80, C 282, p. 15). Resolução do Institut de Droit International (Basiléia, 1991) acolheu a autonomia da vontade das partes em contratos internacionais firmados entre pessoas privadas (Revue Critique de Droit International Privé, 1992, p. 198).
O projeto seguiu basicamente a ideia contida na Convenção do México de 1994, assinada pelo Brasil, cujo art. 7º dispõe: 'o contrato rege-se pelo direito escolhido pelas partes. O acordo das partes sobre esta escolha deve ser expresso ou, em caso de inexistência de acordo expresso, depreender-se de forma evidente da conduta das partes e das cláusulas contratuais, consideradas em seu conjunto. Essa escolha poderá referir-se à totalidade do contrato, ou a uma parte do mesmo. A eleição de determinado foro pelas partes não implica necessariamente a escolha do direito aplicável.
Assim, dispõe o art. 12 do Projeto, no seu caput 'As obrigações contratuais são regidas pela lei escolhida pelas partes. Essa escolha será expressa ou tácita, sendo alterável a qualquer tempo, respeitando os direitos de terceiros'.
Também interessa reproduzir o art. 8º da mesma Convenção: 'As partes poderão, a qualquer momento, acordar que o contrato seja total ou parcialmente submetido a um direito distinto daquele pelo qual se regia anteriormente, tenha este sido ou não escolhido pelas partes. Não obstante, tal modificação não afetará a validade formal do contrato original nem os direitos de terceiros'.
Segue-se o mais importante em matéria de contratos internacionais - a lei aplicável na inexistência de escolha das partes. Novamente o projeto inspira-se na orientação das convenções internacionais já referidas, seguindo mais de perto a Convenção do México de 1994, mais clara e mais precisa que a Convenção de Roma.
O projeto formulou a regra contida no § 1º do seu art. 12, de forma mais concisa do que a redação constante no art. 9º da Convenção do México, mas o preceito de que o contrato se rege pela lei do país com o qual mantenha os vínculos mais estreitos reflete perfeitamente a regra mais detalhada da Convenção que se encontra assim redigida: 'Não tendo as partes escolhido o direito aplicável, ou se a escolha do mesmo resultar ineficaz, o contrato reger-se-á pelo direito do Estado com o qual mantenha os vínculos mais estreitos. O tribunal levará em consideração todos os elementos objetivos e subjetivos que se depreendam do contrato, para determinar o direito do Estado com o qual mantém os vínculos mais estreitos. Levar-se-á, também, em conta os princípios gerais do direito comercial internacional aceitos por organismos internacionais. Não obstante, se uma parte do contrato for separável do restante do contrato e mantiver conexão mais estreita com outro Estado, poder-se-á aplicar a esta parte do contrato, a título excepcional, a lei desse outro Estado.
Assim, o projeto integra-se no moderno direito internacional privado uniformizado, que, após muitos anos de incertezas, optou pela fórmula que manda aplicar a lei do país com o qual o contrato mantém os vínculos mais estreitos.
As outras soluções, i.e., a lei do país onde a obrigação se constituiu (LICC, art. 9º) ou a lei do país onde o contrato deva ter cumprido (solução do DIP francês), não são satisfatórias em todos os casos. A solução ora proposta deixa o julgador livre para escolher a lei com a qual o contrato esteja mais vinculado, quer entre as duas acima referidas, quer qualquer outra.
Ainda seguindo a orientação das já referidas convenções, o § 2º do art. 11 do projeto dispõe que, quando uma parte do contrato for separável do restante e mantiver conexão mais estreita com a lei de outro país, esta poderá ser aplicada em caráter excepcional, conforme conhecida doutrina de direito internacional privado que admite o dépeçage: aplicação e vários sistemas jurídicos aos contratos "plurilocalisés" na expressão de Batiffol e Lagarde (Droit International Privé, Paris, LGDJ, 1983, Tomo II, nº 574, p. 274).
O § 3º versa a forma dos atos e dos contratos, determinando sua regência pela lei do lugar de sua celebração, em obediência à secular regra locus regit actum. Também aqui, seguindo o princípio da lex voluntatis, admite-se a adoção pelas partes de outra forma aceita em direito.
A LICC prevê, no § 2º do art. 9º, que, 'destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo da forma essencial, será essa observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato'. A parte final do dispositivo aceita a regência da forma pela lei do local de celebração do ato, mas a primeira parte do preceito criou dúvidas e divergências, eis que jamais se conseguiu esclarecer exatamente a que 'formas essenciais' o legislador se refere.
Assim, se um imóvel situado no Brasil for vendido ou hipotecado no exterior por instrumento particular, há dúvida sobre se o documento poderá ser registrado, para valer contra terceiros no País. Divide-se a doutrina a este respeito: 'forma essencial' incluiria a obrigação legal de tais atos serem firmados por instrumento público (Amílcar de Castro, Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro, Forense, 1977, nº. 230, pp. 424-5), ou referir-se-ia à imprescindibilidade do registro, aceitando-se, todavia, que o documento a ser registrado se materializasse, no estrangeiro, pelas formas usuais no local onde firmado (Clovis Bevilaqua, ob. cit., p. 250).
O § 4º do art. 12 do projeto espanca a dúvida ao dispor que os contratos realizados no exterior sobre bens situados no País, ou direitos a eles relativos, poderão ser efetuados na forma escolhida pelas partes, devendo ser registrados no Brasil de acordo com a legislação brasileira.[66]
A Seção II explana sobre a Aplicação do Direito Estrangeiro:
Art. 15. Lei Estrangeira - A lei estrangeira indicada pelo Direito Internacional Privado brasileiro será aplicada de ofício; sua aplicação, prova e interpretação far-se-ão em conformidade com o direito estrangeiro.
Parágrafo único. O juiz poderá determinar à parte interessada que colabore na comprovação do texto, da vigência e do sentido da lei estrangeira aplicável.
Justificativa: O art. 15, ao tratar da aplicação do Direito Estrangeiro, leva em consideração que "a doutrina pátria aceita pacificamente que as regras de conexão indicadoras de aplicação de leis estrangeiras constituem direito positivo brasileiro a que o julgador está adstrito. Como diz Oscar Tenório (ob. cit., vol. I, p. 145): 'o juiz tem o dever de aplicar o direito estrangeiro em virtude de determinação da lex fori. No sistema anglo-americano, o direito estrangeiro é considerado como fato e não como lei. Consoante jurisprudência majoritária da Corte de Cassação francesa, o juiz tem a opção de aplicar ou não a lei estrangeira, quando as partes não a invocam. Como afirma Valladão, diverso é o sistema brasileiro: 'a lei estrangeira é lei, é direito e não fato, estando superada a antiga posição discriminatória, de sua inferioridade à lex fori, de que somente esta seria direito, seria lei. É o princípio da equiparação dos direitos, da igualdade entre o direito estrangeiro e o nacional...' (ob. cit., vol. I, p. 465).
No sistema interamericano, seguindo o art. 408 do Código Bustamante, a Convenção sobre normas Gerais de Direito Internacional Privado, Montevidéu, 1979, em seu art. 1º, estabeleceu a obrigatoriedade da aplicação da norma estrangeira determinada pela regra de conexão do direito conflitual. O projeto estabelece a mesma norma ao determinar a aplicação ex officio da lei estrangeira indicada pelas regras do Direito Internacional Privado.
A segunda parte do dispositivo consagra a orientação de que o direito estrangeiro deve ser aplicado, provado e interpretado como no país de origem, coincidindo com o disposto no Código Bustamante, arts. 409 a 411.
No parágrafo único, fica mantido o disposto no art. 14 da LICC e no art. 337 do Código de Processo Civil, que possibilita ao juiz obter colaboração das partes na comprovação do texto, vigência e sentido da Lei estrangeira".[67]
Art. 16. Reenvio - Se a lei estrangeira, indicada pelas regras de conexão da presente Lei, determinar a aplicação da lei brasileira, esta será aplicada.
§ 1º Se, porém, determinar a aplicação da lei de outro país, esta última prevalecerá caso também estabeleça sua competência.
§ 2º Se a lei do terceiro país não estabelecer sua competência, aplicar-se-á a lei estrangeira inicialmente indicada pelas regras de conexão da presente Lei.
Justificativa: Com relação, ainda, à aplicação do Direito Estrangeiro e estabelecendo, especificamente, a regra do reenvio, encontra-se o art. 16.
Até 1942, nossos tribunais aceitavam o reenvio que o direito internacional privado de outro país fizesse à nossa lei. Assim, quando o direito internacional privado brasileiro mandasse aplicar lei de outro país e o direito internacional privado desse outro país remetesse a aplicação às leis brasileiras, aceitava-se tal indicação.
A proibição do reenvio por parte do art. 16 da LICC não foi, em geral, bem recebida pelos jusprivatistas brasileiros. Tanto a doutrina (Haroldo Valladão), como a jurisprudência (Luiz Galotti) manifestaram severa crítica ao legislador. A doutrina nacional advoga, inclusive, a aceitação do reenvio feito pela lei indicada por nosso direito internacional privado à lei de um terceiro país - reenvio de segundo grau.
A melhor ilustração do reenvio de segundo grau é dada pela hipótese de Ferrer Correa. Pessoa de nacionalidade portuguesa, domiciliada na Espanha, é julgada no Brasil. Segundo o direito internacional privado brasileiro, deve ela ser julgada pela lei de seu domicílio - Espanha. O direito internacional privado espanhol indica a aplicação da lei da nacionalidade da pessoa - Portugal - com o que a lei conflitual portuguesa concorda. Dessa maneira, Portugal e Espanha querem aplicar a lei portuguesa, ao passo que o Brasil deseja a aplicação da lei espanhola. Não faz sentido que a vontade da lei do país do domicílio e do país da nacionalidade da pessoa sejam rejeitadas pela vontade da lex fori (Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, Universidade, 1963, pp. 577-8). Daí propugnar-se pela aceitação do reenvio, inclusive de segundo grau, como estabelecido no projeto.[68]
Art. 17. Qualificação - A qualificação destinada à determinação da lei aplicável será feita de acordo com a lei brasileira.
Justificativa: O art. 17 expressa que "a qualificação destinada à determinação da lei aplicável será feita de acordo com a lei brasileira". Justifica-se para tanto que "o processo de indicação da lei aplicável realiza-se na conformidade das regras e princípios do direito internacional privado brasileiro, daí submeter-se a qualificação dos elementos definidores da situação jurídica à nossa lei. Exceção somente foi aberta para os bens, art. 11, que são regidos e também qualificados pela lex rei sitae. Segue-se assim o Código Bustamante: regra geral sobre qualificação pela lex fori art. 6º e qualificação pela lex causae para os bens (arts. 110 e 112)".[69]
Art. 18. Fraude à Lei - Não será aplicada a lei de um país cuja conexão resultar de vínculo fraudulentamente estabelecido.
Justificativa: O art. 18 exprime a norma que se ocupa de coibir a fraude à lei. "Embora não conste na LICC dispositivo expresso sobre a fraude à lei, a antiga regra do § 6º do art. 7º, ineficácia do divórcio de brasileiros obtido no exterior - representava a sanção do legislador contra procedimento para fraudar a indissolubilidade matrimonial imposta pela lei brasileira de então".
A convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado, de 1979, dispõe, no art. 6º: 'Não se aplicará como direito estrangeiro o direito de um Estado Parte quando artificiosamente se tenham burlado os princípios fundamentais da lei de outro Estado Parte'. O projeto segue tal orientação.[70]
Art. 19. Direitos Adquiridos - Os direitos adquiridos na conformidade de sistema jurídico estrangeiro serão reconhecidos no Brasil com as ressalvas decorrentes dos artigos 17, 18 e 20.
Justificativa: O reconhecimento de direitos adquiridos no exterior é uma das principais conquistas do direito internacional privado e vem expresso no art. 19, "visando a evitar que situações já consolidadas na conformidade do direito estrangeiro aplicável, devam submeter-se ao direito do foro que, em sendo diferente, poderia negar validade e/ou eficácia ao que já foi corretamente adquirido alhures. Nisso, o projeto se afasta da orientação da já aludida Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado de 1979, cujo art. 7º reza o seguinte: 'As situações jurídicas validamente constituídas em um Estado Parte, de acordo com todas as leis com as quais tenham conexão no momento de sua constituição, serão reconhecidas nos demais Estados Partes...'. Exigir que a situação tenha sido validamente constituída de acordo com todas as leis com as quais tenha conexão no momento de sua constituição, não se conforma com o direito internacional privado brasileiro, que segue a orientação de Antoine Pillet, no sentido de que um direito regularmente adquirido em um país, de acordo com as leis lá vigentes, produzirá seus efeitos em outra jurisdição (Principes de Droit International Privé, Paris, Pedone, 1903, pp. 496 e ss.).
Assim, também na homologação das sentenças estrangeiras, a decisão da corte de outro país não precisa ter sido julgada em conformidade com o sistema jurídico que seria indicado pelas regras de conexão de nossa lei conflitual, pois cada jurisdição julga consoante as regras de conexão de seu sobredireito. Isso representa respeito internacional pelos direitos adquiridos. O projeto perfilha o consagrado no Código Bustamante e em várias Convenções da Haia".[71]
Art. 20. Ordem Pública - As leis, atos públicos e privados, bem como as sentenças de outro país, não terão eficácia no Brasil se forem contrários à ordem pública brasileira.
Justificativa: O art. 20 do projeto impede que as leis, atos públicos e privados, bem como as sentenças de outro país, tenham eficácia no Brasil, se forem contrários à ordem pública brasileira, visto que "o mais importante princípio do direito internacional privado, tanto nas fontes internas, como nos diplomas internacionais, é a ordem pública: regra de controle que impede a aplicação de leis, atos e sentenças estrangeiras, se ferirem a sensibilidade jurídica ou moral ou ainda os interesses econômicos do País. Qualquer lei que deva ser aplicada, qualquer sentença que deva ser homologada, qualquer ato jurídicos que deva ser reconhecido, deixarão de sê-lo se repugnarem os princípios fundamentais do direito, da moral e da economia do foro."[72]
A Seção IV fala sobre o Direito Processual e Cooperação Jurídica Internacional e traz em seu art. 23:
Art. 23. Escolha de Jurisdição - A escolha contratual de determinada jurisdição, nacional ou estrangeira, resultará em sua competência exclusiva.
Justificativa: No art. 23, o projeto veio permitir a escolha, pelas partes, de foro de sua preferência para julgar as controvérsias decorrentes do negócio jurídico, o que adéqua nossa lei às práticas correntes no comércio internacional e reitera posição consagrada na jurisprudência.[73]
Todavia, referido Projeto de Lei encontra-se com situação de “arquivado ao final da legislatura”, desde 07/01/2011[74], não havendo qualquer perspectiva de prosseguimento em sua tramitação.
A concorrência cada vez mais livre no contexto mundial faz com que se multipliquem as relações comerciais e contratuais a nível internacional. Gera-se o problema: de um lado, os contratos de compra e venda internacional necessitam de regras detalhadas; de outro, é normal que cada parte se empenhe em se sujeitar às regras de um sistema jurídico conhecido. A questão do foro competente é importantíssima, visto que este deve assegurar que eventuais litígios sejam resolvidos de maneira eficiente e previsível.
Robert Seybold entende que o Brasil seja favorável à aplicação da Convenção de Viena da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, através da aplicação da mesma como lei favorável ao contrato, pois face à nova lei de arbitragem, que garante a autonomia da vontade, não é mais possível aceitar que a Lei de Introdução ao Código Civil possa ser interpretada de forma a restringir tal liberdade fundamental[75].
Rechsteiner defende que o Brasil deveria introduzir o princípio da autonomia da vontade das partes na sua legislação, pois assim estará seguindo as tendências mais modernas, que aceitam amplamente tal princípio, de forma a facilitar o comércio internacional e garantir a certeza do direito nesse tipo de relações jurídicas[76].
Rechsteiner cita ainda a Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (CIDIP V), concluída em 1994 no México, que admite a autonomia da vontade das partes para escolha do direito aplicável a um contrato internacional. Tal escolha deverá ser expressa ou tácita, uma vez que o texto convencional permite que se depreenda essa escolha da conduta dos contratantes e das cláusulas contratuais[77].
João Lacê Kuhn, analisando a autonomia da vontade nos contratos do Mercosul, identifica a falta de uma legislação específica no bloco, observando que se tenta criar um bloco econômico, com ideias similares e objetivos únicos, mas não se abre mão de regras internas, que só servem para retardar o avanço da verdadeira unificação em busca de uma regra comum. Apesar de toda doutrina internacional apontar para o reconhecimento do princípio da autonomia da vontade, nos contratos realizados no âmbito do Mercosul não ocorre sua aplicação no que tange à escolha da lei aplicável. Regula-se sempre, imperativamente, pelas legislações nacionais envolvidas, pelo domicílio das partes, pela conclusão ou, ainda, pela execução dos contratos. “Restringe-se, destarte, no universo global, apenas à autonomia privada, ou seja, o poder de contratar vinculado à intervenção estatal dos países-membros na mitigação da autonomia da vontade”[78].
A lei específica que se está buscando pode originar-se de estudos e resultados de pesquisas e trabalhos realizados pela Organização Mundial do Comércio OMC, haja vista que essa organização busca facilitar a aplicação das regras de comércio internacional, já acordadas internacionalmente; e servir de foro para negociações de novas regras ou temas relacionados ao comércio[79].
Os comerciantes internacionais clamam por uma lei específica sobre contratos internacionais, pois só assim terão maior segurança jurídica em seus negócios externos.
4.3 Contratos Interblocos
O contrato interblocos tratar-se-ia de um terceiro tipo de contrato, bastante assemelhado a um contrato nacional quanto à clareza na forma de realização, cumprimento ou discussão no caso de descumprimento. Seria regulado por uma legislação aplicável em todo o bloco econômico e julgado por tribunais com competência territorial abrangendo igualmente todos os países do conjunto que o integra.
Pensando nesse contrato interblocos e na sua aplicabilidade, é preciso avaliar a situação do bloco econômico em que o Brasil está inserido e sua aceitabilidade: o Mercosul ainda é uma pretensão de chegar a um mercado comum, com integração aduaneira (ainda imperfeita, pois falta uma legislação aduaneira harmonizada – Código Aduaneiro do Mercosul), e livre circulação de bens (inexiste política comercial, gerando constantes impasses) e pessoas. Comparado à União Europeia, o Mercosul é um bloco em queda livre, enquanto aquele é um bloco estável e com vontade de progredir. Quando falamos em integração, remetemo-nos a um sistema monetário comum (na UE já concretizado com a moeda única – Euro), a uma união política, à unicidade normativa (universalização de normas), a existência de um Tribunal Supranacional, a um Parlamento que represente o bloco.
Na União Europeia já existe um Parlamento Europeu (que legisla pelo bloco) e os Tribunais de Justiça e de Contas Supranacionais, sendo que os Estados Partes delegaram parte de suas competências a esses órgãos supranacionais, que as cumprem conforme determinado. O surgimento de uma regulamentação quanto aos contratos nesse bloco econômico deve ser algo próximo (talvez até já haja algum projeto neste sentido) e com todas as possibilidades de ter perfeita aplicabilidade, retirando dos contratos realizados entre pessoas físicas ou jurídicas daqueles países as dificuldades pertinentes, especialmente quanto às contrariedades nos entendimentos, existentes nos contratos internacionais.
O contrato interblocos, entendemos, deverá estar regulamentado no Direito de Integração.
Direito de Integração é o ramo do direito que estuda os fenômenos produzidos no campo jurídico, que são fruto de um processo de integração econômica, social e comercial entre países soberanos, seja de forma mais aprofundada como na união monetária ou mais liberal como as zonas de livre comércio ou união aduaneira.
O Direito de Integração tem seu marco divisor com o Direito Internacional quando se estabelece um tratado com a finalidade de se promover uma integração regional econômica. A partir desse momento, com a dinamização das normas de aproximação legislativa e de aprofundamento do processo integracionista, as normas e regulamentos surgidos não mais interessam ao Direito Internacional e sim, ao Direito de Integração, que vai estudar e compreender esses processos.[80]
A professora Patrícia Galindo da Fonseca apontava, com boa perspectiva, poucos anos depois da criação do Mercosul:
A instituição de um novo bloco econômico no Cone Sul, composto por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, criado em 26 de março de 1991 pelo Tratado de Assunção e o posterior estabelecimento do Mercado Comum, em 17 de dezembro de 1994, com a celebração do Protocolo de Ouro Preto, implica em uma nova perspectiva de comércio internacional. O MERCOSUL, hoje, constitui-se em uma união aduaneira. A Tarifa Externa Comum, a TEC, é o instrumento viabilizador de tal realidade, através da cobrança de tarifas aduaneiras idênticas entre os Estados membros para as mercadorias originárias de terceiros países. A instituição da zona de livre comércio não esgota o tratado do MERCOSUL, sendo um dos seus objetivos. Experiências anteriores, como a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), constituída em 1960 pelo Tratado de Montevidéu e a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), que sucedeu a primeira, mostraram-se ineficazes. O Mercado Comum do Cone Sul, em seus pouco mais de dois anos de vida efetiva, dá sinais de vitalidade política distinta. É importante, entretanto, atentar que uma das razões do êxito deste primeiro período é estar ainda presente, entre os seus signatários, o espírito de cooperação e integração que inspirou sua criação. O processo evolutivo dos tratados internacionais implica em conflitos de maior alcance que não foram até o presente momento articulados no caso do MERCOSUL.
Vislumbrar conquistas ante o êxito da implantação do MERCOSUL é papel a ser exercido pelos protagonistas políticos. Atuando no cenário jurídico, a reflexão sobre o posicionamento do Brasil no cenário do mercado internacional exige uma dimensão diferente. O seu recente reingresso no Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) representa um passo significativo, traduzindo tendência inevitável de interação no palco das relações jurídicas internacionais. A sua efetiva integração no mercado internacional demanda procedimentos concretos.[81]
Irineu Strenger entende que os contratos internacionais, “pela sua natureza, normalmente não ficam subordinados a regimes unitários, a não ser os casos de uniformidade do direito, nem se submetem de forma espontânea e direta à normatividade de um único Estado”[82].
Aí está a importância da existência do conceito de contrato interblocos, pois não seriam contratos vinculados à legislação de um único Estado, mas de um conjunto de Estados, que, com um Parlamento unificado, conjuntamente convencionariam tais normas.
A necessidade da criação de um novo direito, de cunho regional, integrado ao Direito Internacional, regulamentando esta nova espécie de contratos, osinterblocos, decorre das já existentes políticas comerciais liberais, que permitem a circulação de bens e serviços sem restrições. De nada adianta um comércio livre se, na hora de contratar ou resolver um empecilho no contrato, as partes encontram imensas dificuldades, em virtude das discrepâncias e dúvidas de um contrato internacional. É preciso o bom senso dos países integrantes dos blocos econômicos, no sentido de cederam um pouco de sua soberania, com o intuito de conseguir-se adotar um modelo comunitário para reger as relações comerciais.