Resumo: Busca-se com o presente estudo analisar os contratos internacionais e o impacto da autonomia da vontade na sua formulação. Qual a amplitude da autonomia da vontade nos contratos internacionais? Os contratos elaborados entre pessoas físicas e/ou jurídicas de distintos países de um mesmo bloco econômico são realmente internacionais ou poderiam ser entendidos como um terceiro tipo (nacionais, internacionais e interblocos)? Qual a eficácia dos contratos internacionais virtuais e qual a autonomia de vontade das partes existente nestes contratos? Essas são algumas das questões que foram analisadas no decorrer deste artigo.
Palavras-chave: Contratos internacionais; autonomia da vontade; contratos internacionais virtuais; contratos interblocos.
1 Introdução
Os contratos internacionais são definidos como todas as manifestações bi ou plurilaterais da vontade livre das partes, objetivando relações patrimoniais ou de serviços, cujos elementos sejam vinculantes de dois ou mais sistemas jurídicos extraterritoriais, pela força do domicílio, nacionalidade, sede principal dos negócios, lugar do contrato, lugar da execução, ou qualquer circunstância que exprima um liame indicativo de direito aplicável.
O Direito Internacional, no que se refere aos Contratos Internacionais, tem expandido sua importância em razão da globalização e do aumento dos negócios no mercado internacional. Os contratos internacionais têm uma regulamentação muito limitada no Brasil: o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) é o único dispositivo em nossa legislação que trata do tema.
Entende-se que os contratos internacionais necessitam de melhor regulamentação em decorrência do aumento das relações internacionais de comércio, atingindo inclusive o comércio eletrônico. Assim, a importância da criação de uma legislação mais completa e atual sobre os contratos internacionais no Brasil é imperiosa.
As partes precisam ser motivadas a valer-se do princípio da autonomia da vontade, sem medo de ofender a ordem pública ou as leis imperativas, pois têm tido uma aceitação cada vez maior dos Tribunais em todo mundo a vontade das partes como a principal regra do contrato.
Assim, o princípio da autonomia da vontade dos contratantes será analisado na prática, respondendo a questões como: Quais são os limites desta autonomia? Quais as regras e lei aplicável ao contrato internacional? Qual a forma de estabelecer a lei aplicável na ausência desta indicação?
2 Autonomia da vontade e liberdade contratual
João Grandino Rodas, no prefácio da obra “Contratos Internacionais: Autonomia da Vontade, Mercosul e Convenções Internacionais” de Nádia de Araújo, sustenta: “a autonomia da vontade, surgida e desenvolvida no direito internacional privado em sede contratual, é tema antigo e sempre atual na doutrina desse ramo jurídico”[1].
Na visão de Irineu Strenger, “a autonomia da vontade assumiu, em verdade, o sentido específico, que jamais perderá, do poder de regulamentação das próprias relações, ou dos próprios interesses, dentro das limitações maiores ou menores ditadas pela equação do bem individual com o bem comum”[2].
Segundo Esther Engelberg, o princípio da autonomia da vontade começou a ser citado pelo fato de vários autores entenderem que tudo se resumia em questão de fato, mais do que em qualquer questão de direito[3].
Citando Amílcar de Castro, a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais é explicada como a liberdade de pássaro na gaiola, isto é, “pode mover-se em certos limites, mas em qualquer direção encontra barreira intransponível”[4].
Diante disso, Esther Engelberg conclui que não há a suposta autonomia da vontade visto que o que há é a liberdade concedida e limitada pelo direito. No Direito Internacional Privado, o objeto da vontade das partes é a escolha do lugar a ser firmado o contrato e não o direito. Qualquer declaração das partes não pode invalidar uma disposição de direito internacional relativa à espécie[5].
A definição de Niboyet, mencionada no livro de Esther Engelberg, é que “a autonomia da vontade considerada como poder de escolha da lei competente não existe”[6].
Esther Engelberg afirma que o art. 9° da lei de Introdução ao Código Civil[7] tem caráter imperativo e não comporta a acolhida da doutrina da autonomia da vontade, admitindo como exceções os contratos de trabalho que obedecem aos dispositivos legais do lugar onde o trabalho for executado e os contratos de transferência de tecnologia, que são regulamentados pelo direito interno pátrio, sem levar em consideração o direito conflitual[8].
Pontes de Miranda, aludido por Esther Engelberg, conclui que a autonomia da vontade, como princípio ou teoria aceitável, inexiste no Direito Internacional[9].
“As partes, ao adotarem uma disposição legal considerada apropriada, fazem da lei adotada uma cláusula contratual, sendo que esta tem validade, pois as partes quiseram seu conteúdo”[10].
Esther Engelberg, mencionando João Grandino Rodas, diz que o traço diferenciador entre um contrato internacional e um outro não internacional, é justamente, estar o primeiro potencialmente vinculado a mais de um sistema jurídico. Com isso, a questão do direito aplicável é um problema inerente a qualquer contrato internacional: sendo que alguns defendem o sistema unitário, objetivando manter a unidade contratual e o espírito a ser aplicável, enquanto outros, mais realistas, aceitam que o contrato internacional seja regido por mais de um sistema jurídico[11].
Conforme a professora da PUC/SP, Ana Paula Martins Amaral, já ensinava Guido Fernando Silva Soares que, desde D’Argentre até a assombrosa construção de Savigny, sempre foi ponto pacífico no direito internacional privado que a vontade era elemento de conexão de maior relevância nos negócios internacionais, de tal forma que, em caso de ausência de escolha da lei aplicável, juízes e árbitros buscavam a vontade presumivelmente eleita pelas partes[12].
A lei interna nacional reguladora do Direito Internacional Privado é a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), de 1942. A Lei de Introdução não tem, perante a doutrina, interpretação pacífica no que se refere à consagração do princípio da autonomia da vontade. O artigo 9º, em seu caput, consagra o princípio da lex loci celebrationis (lei do local da constituição do contrato), não se podendo afirmar a existência da autonomia da vontade para a indicação da norma aplicável no Direito Internacional Privado, segundo entendimento doutrinário majoritário. A corrente doutrinária capitaneada pelo professor Haroldo Valladão entende estar encampada a liberdade de escolha da lei aplicável pelas partes no parágrafo segundo[13]. Segue a redação completa do dispositivo em questão:
Art.9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
§1º. Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos ao ato.
§2º. A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.
A controvérsia, como bem sintetizou a professora Nádia de Araújo, tem como pano de fundo a discussão acerca dos direitos subjetivos. A se entender que tais direitos são "conferidos aos indivíduos independentemente do que dispõe o direito positivo, ou seja, em tendo estes existência autônoma", consagrada estaria a tese da autonomia da vontade. Adotada, entretanto, "a teoria positivista, segundo a qual os direitos subjetivos somente decorrem de disposição legal", o princípio da lex loci celebrationis é inquestionável[14].
A professora Patrícia Galindo da Fonseca explica:
A lei do lugar da constituição da obrigação é, hoje, uma fórmula bastante criticada pelos estudiosos do Direito Internacional. O mesmo ocorre com a fórmula proposta por países vizinhos como Argentina, Uruguai e Paraguai, que utilizam em âmbito nacional o local da execução do contrato como critério de determinação da lei aplicável. Procura-se, hoje, no mais das vezes, identificar as normas do direito com o qual o contrato mantenha os vínculos mais estreitos para que as partes possam consagrá-lo. A liberdade de escolha da lei aplicável faz parte de grande número de tratados que compõe o cenário das relações internacionais. A compreensão da necessidade de ser dispensado um tratamento jurídico diferente aos contratos internacionais fez com que, atualmente, a tendência inexorável das convenções internacionais seja a adoção deste princípio. A aplicação da lei nacional deve restringir-se aos contratos de direito interno. Os direitos internos desconhecem, como tais, mecanismos jurídicos que assegurem à indispensável adequação jurídica conceitual própria dos contratos internacionais. À parte a controvérsia doutrinária reinante no direito internacional privado pátrio relativamente a gozarem ou não as partes contratuais da liberdade de escolha da lei aplicável, esta questão não mais requer a importância de tempos atrás, face à tendência generalizada adotada para a solução dos problemas relativos aos contratos internacionais. A internacionalização do mercado é fator preponderante para a participação ativa na economia globalizada através de ratificações várias de diversas convenções.
Os contratos internacionais exigem um entendimento jurídico que ultrapasse as fronteiras do jus-positivismo, característico do formalismo dos países que adotam o "civil-law system", exigindo, igualmente, um horizonte não tão pragmático como aquele caracterizador do sistema jurídico conhecido como "common law". A prática das relações internacionais de troca, isto é, o comércio internacional, vem provocando um contágio tal entre as duas famílias jurídicas que a sistematização harmônica dos princípios fundamentais regedores das transações internacionais constitui um processo jurídico evolutivo inevitável.[15]
Edgar Amorim afirma, em sua obra Direito Internacional Privado, que a autonomia da vontade teve seu apogeu na época do Liberalismo, sendo que essa consiste na faculdade de as partes escolherem a lei a ser aplicada nos contratos. Segundo Amorim, o Direito Internacional Privado Positivo sempre a reconheceu, porém, coube a Charles Dumoulin a iniciativa de criar, já no século XVI, a autonomia da vontade como elemento de conexão, assim, as partes podiam escolher a lei a ser aplicada no negócio pactuado.
A antiga Lei de Introdução ao Código Civil, no seu art. 13, permitia a escolha por parte dos interessados da lei que iria reger os contratos por ele firmados. No entanto, a lei proibiu que, em negócios realizados no Brasil, pudessem as partes contratantes escolher a norma que lhes aprouvesse. Mesmo assim, a doutrina e a jurisprudência têm admitido que, em se tratando de ato pactuado no exterior com indicação da lei brasileira a ser observada, não somente é válido como é plenamente aceitável.[16]
Segundo Rechsteiner, o princípio da autonomia da vontade das partes não é uma fonte de direito original, desvinculada da ordem jurídica estatal, assim como não é uma regra de direito costumeiro internacional, pois é a lei de cada país que decidirá se admite a autonomia da vontade das partes como elemento de conexão. Grande parte do mundo já reconhece tal princípio, porém, na América Latina, inclusive no Brasil, a questão ainda é controversa, não sendo a autonomia da vontade reconhecida ainda como elemento de conexão, juridicamente válido, que possa reger relações de direito privado com conexão internacional. Nos países do Mercosul, o princípio não é admitido pela jurisprudência[17].
Considerando que a legislação admita a autonomia da vontade, inicia-se outro impasse, como bem comenta Rechsteiner:
Na doutrina, contudo, é controvertido se as partes podem escolher qualquer direito como o aplicável ou se esta liberdade sofre certas restrições. Quando a própria lei estabelece limites à autonomia da vontade das partes, estas tão-somente podem escolher o direito aplicável em consonância com a lei. Uma escolha do direito aplicável que não respeite os limites da lei é juridicamente ineficaz, de modo que o direito aplicável será aquele consoante a vontade objetiva do legislador, subsidiariamente aplicável na ausência de escolha válida das partes. Quando a lei não estabelecer restrições expressas, entendemos que as partes poderão escolher qualquer ordem jurídica como direito aplicável, tendo em vista que todos os direitos são equivalentes.[18]
Nas palavras de Irineu Strenger, o sistema jurídico brasileiro, assim como alguns outros, do ponto de vista formal, estabelece restrições da autonomia contratual. Existem também os países que adotam restrições parciais: alguns limitam a escolha a uma lei que tenha inevitavelmente relações com as partes ou com a transação; outros, a lei da execução do contrato; há também os que limitam essa possibilidade à lei nacional ou domiciliar das partes. A hipótese totalmente liberal reconhece às partes a faculdade de exprimir escolha livre da lei aplicável, reconhecendo inclusive a possibilidade de escolher legislação neutra, ou Direito que melhor se adapte às circunstâncias do contrato. Por fim, Irineu Strenger ressalta que mesmo essa liberdade tem suas limitações, se ocorrer de as partes, fundadas nos pressupostos da lex mercatoria (da qual falaremos mais adiante), escolherem, para reger seus contratos, os princípios gerais do Direito que regem o comércio internacional, ou resolvem apoiar-se em sistemas jurídicos desaparecidos, como o Direito romano[19].
Ângela Bittencourt Brasil, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, destaca que a autonomia da vontade no Direito Internacional Privado não tem as mesmas formas daquela vontade exteriorizada nos contratos de Direito Civil, em que a faculdade privada é a tônica do acordo, fazendo lei entre as partes. Para o Direito Internacional Privado, o enfoque da teoria da vontade está ligado à faculdade de escolha entre os contratantes sobre a lei que vai imperar o contrato, se de um país ou de outro. Essa é a diferença entre esse tipo de contrato e aquele firmado internamente, onde não se pode escolher qual o sistema jurídico que irá dirimir as controvérsias. No Direito Internacional Privado opta-se por um sistema jurídico e no Direito Privado o sistema é o ditado pelas normas legislativas, sejam civis puramente, comerciais ou mesmo trabalhistas. No contrato internacional, por este estar disponibilizado em vários sistemas jurídicos é preciso saber qual será a lei aplicável; se doutrina ou lei de origem interna ou internacional e jurisprudência, ou mesmo um terceiro gênero considerado neutro pelas partes e que se adapte mais às circunstâncias do contrato[20].
Porém, Ângela Brasil ressalta que não devemos pensar que esta autonomia da vontade nos contratos internacionais vai dar às partes um poder quase legiferante, função específica do Estado. Escolher a lei que será usada como norteadora do contrato significa dizer que no acordo deve constar uma cláusula especificando-a, podendo ser no Direito Internacional Privado, expressa ou tácita[21].
Ângela Brasil explica a aplicação da autonomia da vontade pelo mundo:
Na Europa e outros países como os Estados Unidos, a autonomia da vontade está especificada na legislação interna e este fato se deu de fora para dentro, isto é, depois da codificação internacional, que foi incorporada às legislações internas, como ocorreu com a adoção da Convenção de Viena e a Convenção de Roma. Com isto, a autonomia da vontade nos contratos internacionais é uma regra universal, e o que antes era baseado em construções doutrinárias e jurisprudenciais, hoje é o caminho para que todos os países a adotem como norma taxativa. O Brasil, tem na Lei de Introdução do Código Civil em vigor, as regras que norteiam os contratos internacionais e é preciso ficar atento porque o país não consagrou a autonomia da vontade nos contratos internacionais e, mesmo os tribunais brasileiros não enfrentaram a questão nem adotaram a tese da autonomia da vontade como se faz nos contratos internacionais assinados em outros países. Atualmente, a escolha livre de uma lei para ser aplicada em determinado contrato internacional, não encontra amparo da legislação brasileira porque ali não se acha contemplada.[22]
Orlando Gomes, citado por Maria Luiza Machado Granziera, define a autonomia privada como o “poder de autorregularão dos interesses particulares exercido através do contato”[23]. O mesmo Orlando Gomes separava a autonomia da vontade em quatro principais tópicos, igualmente citados por Granziera[24]:
a) liberdade de contratar ou não contratar: o poder econômico muitas vezes direciona essa liberdade, sendo que a contratação ocorre de acordo com a necessidade, nos termos das possibilidades. Em virtude da escassez do dinheiro, em muitos casos os próprios órgãos financiadores determinam quais fornecedores ou transportadores contratar, estabelecendo as condições contratuais, nem sempre vantajosas ao contratante;
b) liberdade de negociar livremente sem se submeter à imposição da outra parte: nos casos dos contratos internacionais de longa duração, o autor entende ser quase impossível contratar sem se submeter, ao menos parcialmente, ao poder econômico dos países mais ricos ou das empresas multinacionais, especialmente quando uma das partes provém do Terceiro Mundo. A parte economicamente mais fraca tende a sofrer influências do poder econômico de seu cocontratante;
c) concluir contratos atípicos: é a autorização pelo sistema legal da criação de novas espécies contratuais, decorrente da necessidade do mundo dos negócios, que a lei ainda não tenha previsto em virtude da rápida evolução;
d) modificar o esquema legal, derrogando os artigos da lei que não sejam normas imperativas: é a adequação da lei aplicável às condições do contrato. Há três mecanismos de adaptação: ou o ordenamento jurídico admite e/ou regulamenta a forma de alteração, ou o mecanismo contratual vai além das disposições contratuais, ou ainda as partes criam, de acordo com suas próprias necessidades, as regras que nortearão a adaptação desejada.
O advogado Zulmar Neves, palestrando no V Congresso Nacional de Direito da Universidade de Caxias do Sul, salientou que a lei aplicável ao contrato será a do local da execução do mesmo, porém, admite que as partes tenham autonomia para escolher a legislação aplicável e em qual país seja julgado, apesar das restrições que ainda existem no Brasil[25].
Na mesma conferência, o especialista Gabriel Sachett sustentou que apesar da autonomia da vontade não estar regulada no Brasil, os juízes têm aceitado as cláusulas resultantes do uso de tal prerrogativa, no intuito de não prejudicarem os comerciantes brasileiros nos negócios internacionais em virtude dos entraves do nosso Judiciário. Explicou ainda, que se a lei escolhida para reger o contrato sofrer alteração, a mudança refletirá no contrato, pois vincula.