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Qual o verdadeiro problema da segurança pública no Brasil?

Agenda 14/03/2014 às 07:31

A Polícia Judiciária carece das mesmas autonomias financeira, administrativa e funcional de que é dotado o Ministério Público, sem as quais fica à mercê das contingências governamentais.

Passados 25 anos da nova ordem constitucional inaugurada pela Carta de 1988, o Brasil ainda não se desincumbiu do dever de promover adequadamente a Segurança Pública, notadamente no que tange à relevante função de apuração das infrações penais.

O momento exige soluções concretas e inadiáveis para um problema grave – os altos índices de criminalidade em contraste aos baixos índices de apurações de crimes e de condenações pelo Poder Judiciário.

A esse propósito, muito se tem discutido sobre quem deve promover as investigações criminais no Brasil, questão deveras menor, pois apenas tergiversa o problema e não busca solucionar a constatação da irrisória repressão e punição à prática de infrações penais.

Não obstante, apenas ad argumentandum, ainda que o Ministério Público venha a ter permissão legal para investigar crimes, os índices de criminalidade fatalmente permaneceriam sem grandes alterações, pois representaria um número quase insignificante de investigações no universo de crimes ocorridos diariamente em todo o país. Soma-se a isso, a ausência de obrigatoriedade para que investigue, ficando a cargo do próprio membro do Ministério Público decidir se quer ou não fazê-lo, selecionando os casos em que gostaria de atuar, de modo que o encargo sempre recairá sobre as Polícias Judiciárias, até mesmo por ser esta a sua finalidade, que age de ofício, sem escolha, no dever apurar o desumano número de crimes praticados no Brasil.

De todo debate travado, foi inegável a colaboração do Ministério Público no sentido de deixar irrefutavelmente demonstrado que os fatores (i) garantias funcionais de seus membros e (ii) prerrogativas institucionais de que são dotados são instrumentos imprescindíveis também à Polícia Judiciária para o exercício da investigação criminal.

Como muito bem demonstrado, a Polícia Judiciária carece das mesmas autonomias financeira, administrativa e funcional de que é dotado o Ministério Público, sem as quais fica à mercê das contingências governamentais.

Com razão também quando sustentam que os delegados de polícia não possuem independência funcional e as garantias como vitaliciedade e inamovibilidade dos membros do Parquet, deixando que aqueles se sujeitem a pressões e perseguições, situações das quais membros do Ministério Público e da magistratura estão resguardados.

Isso mostra que um dos problemas da investigação criminal no Brasil não está relacionado a quem investiga, mas à existência dos meios necessários para que a Polícia Judiciária realize sua principal função.

O outro problema é a política da hiperostensividade policial, ou seja, o inchaço do policiamento ostensivo como política na área de segurança pública, especialmente nos Estados, fundada na ideia de que a saturação evitaria o cometimento de crimes e reduziria a criminalidade.

A esse propósito, estudos têm demonstrado a limitação desse modelo, pois a redução da criminalidade baseada preponderantemente no policiamento ostensivo não gera efeitos concretos na redução de forma efetiva e perene.

Essa constatação se baseia principalmente no fato de que a presença da polícia ostensiva apenas evita a prática do crime momentaneamente, pois resulta apenas no deslocamento da criminalidade, não evitando que o crime seja praticado.

Por outro lado, um sistema de justiça criminal forte e aparelhado, que começa na Polícia Judiciária e fecha o ciclo com o julgamento pelo Poder Judiciário, é a melhor resposta para se reduzir o número de crimes, pois apenas o criminoso preso ou que tenha a certeza de que o será deixa de praticar novos delitos.

Não se pode dizer isso do delinquente solto, que ao sentir que basta mudar de local para reiterar sua prática criminosa sem repressão e sem punição ficará estimulado a delinquir impunemente.

Entretanto, a regra em muitos Estados ainda é a existência de grandes efetivos de policiais ostensivos e reduzidos números de policiais civis encarregados da investigação de crimes, gerando uma distorção grave, pois a evidente omissão com relação à polícia investigativa tem permitido que policiais que deveriam estar preservando a ordem pública, ostensivamente, passem a agir de forma velada, fora de suas atribuições legais, usurpando as funções da polícia judiciária, o que reforça a tese e as conclusões de que a hiperostensividade policial em detrimento da policia investigativa não coaduna com os problemas que reclamam solução,

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Tudo isso nos faz concluir que a redução da criminalidade depende essencialmente de investigação, de apuração dos crimes e dos autores, para que sejam levados a julgamento pelo Poder Judiciário, condição essencial para que sejam condenados.

Porém, na contramão da relevante e indispensável função que exerce no contexto social e jurídico, a Polícia Judiciária está em evidente declínio, à beira do colapso, gerando severas críticas de alguns “especialistas” ao modelo de investigação criminal existente no Brasil, conquanto esses mesmos críticos ainda não tenham sido capazes de responder afirmativamente às simples perguntas:

Passados vinte e cinco anos desde a promulgação da Constituição Cidadã, às polícias judiciárias foram dadas as condições mínimas para que exercessem dignamente suas funções? O problema é o modelo ou a absoluta falta de condições?

Evidente que não existe outra resposta senão a de que o atual modelo de total dependência e absoluta subordinação da Polícia Judiciária nunca permitiu a criação de um ambiente minimamente propício para se evoluir e alcançar, como consequência, índices satisfatórios de combate à alta criminalidade.

A realidade mostra que a situação da Polícia Judiciária em vários Estados, salvo raras exceções, é de abandono, havendo casos em que a Polícia Civil caminha para a extinção, ante a quase absoluta falta de recursos materiais e humanos.

Talvez isso interesse a alguém, menos à sociedade.

Diante disso, como reduzir a alta criminalidade se a instituição responsável pelo procedimento de apuração preliminar de condutas criminosas – e não são poucas as que cotidianamente são praticadas – não conta com recursos e garantias funcionais mínimos para consecução de suas finalidades institucionais?

A correção desses problemas só acontecerá com disposição política e compromisso em se melhorar o Brasil, promovendo as modificações legislativas necessárias, especialmente no âmbito do Poder Legislativo Federal, a quem compete promover a alteração da Constituição Federal e a edição das leis nacionais.

Para tanto, a primeira providência é a apresentação de projeto de emenda constitucional para se conferir às Polícias Judiciárias as autonomias funcional, administrativa e financeira, ao mesmo tempo em que deve conferir à carreira de delegado de polícia, membro da carreira jurídica de Estado, as mesmas garantias funcionais de juízes e promotores.

Essas medidas são o reconhecimento de que a Polícia Judiciária não existe para atender aos interesses de governos e mandatários, porquanto, tal como a magistratura, exerce função contramajoritária, subordinando-se exclusivamente ao império da lei e do Direito, investigando “sem olhar na cara”.

Bom que se diga, embora pareça óbvio, que a própria natureza e função exercida pela Polícia Judiciária a vincula ao Poder Judiciário, que é o seu referencial e o destinatário do procedimento inicial da persecução penal.

A despeito disso, a vinculação ao Poder Judiciário não foi a opção adotada pelo constituinte originário que, ao invés de dotá-la então de autonomia, optou pela mais inoportuna subordinação da Polícia Judiciária ao Poder Executivo, geralmente sob o teratológico controle do secretário ou ministro de Estado.

Fica evidente o equívoco desta escolha política, pois, historicamente, a função de apurar os crimes já foi tarefa de magistrados. Evidentemente, notou-se a inconveniência de um juiz atuar na investigação e no julgamento do processo criminal, violando o modelo processual penal acusatório, que no modelo do juízo de instrução impõe a participação de dois magistrados, um na investigação e outro no processo penal – modelo ainda adotado em alguns países.

No caso do Brasil, também em razão da grande extensão territorial, optou-se por “delegar” a outro agente público, dentro da própria instituição de polícia judiciária, com a mesma formação jurídica do magistrado, a presidência da fase preliminar.

Isso é marcante em nossa história, tanto que o art. 531 do atual Código de Processo Penal estabelecia que o processo sumário das contravenções penais se iniciava pelo auto de prisão em flagrante ou por portaria do delegado de polícia, dotando-o de verdadeiras atribuições jurisdicionais, próprias do Poder Judiciário, mas que fora revogado apenas em 2008 pela Lei. Nº 11.719.

Assim, percebe-se que adotamos um modelo semelhante ao do juízo de instrução, porém sob a presidência de um delegado de polícia, cujas algumas das funções é zelar pela legalidade dos atos de investigação criminal e pela observância dos direitos do investigado, exercendo, assim, atribuições semelhantes às exercidas pelas autoridades judiciárias (magistrados) ainda hoje nos países que adotam o modelo de juízos de instrução, ressalvadas obviamente as medidas sujeitas à reserva de jurisdição.

Exemplo dessa proximidade institucional é o fato de o delegado de polícia  – membro da carreira jurídica do Estado – ser a autoridade encarregada da lavratura dos autos de prisão em flagrante, formando a sua própria opinio delicti sobre os fatos no ato de indiciamento, com competência para conceder a liberdade do preso e arbitrar fiança, podendo ainda determinar a apreensão e a restituição de bens relacionados ao crime, situações em que atua, tal como o juiz, com o poder de impor, com base na lei, restrições sobre bens e até mesmo sobre o status libertatis do cidadão.

Está o delegado de polícia incumbido do relevante dever de resguardar direitos, seja os da vítima, para preservá-la de males ainda maiores do que os já suportados pelo crime, seja os do infrator, para preservar sua integridade física e moral e lhe garantir o exercício de seus direitos constitucionais, sendo chamado pela célebre frase do eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, de “o primeiro garantidor dos direitos do cidadão”.

Sem prejuízo de tudo isso, ainda é atribuição da autoridade de polícia judiciária representar ao Poder Judiciário pelas medidas cautelares necessárias à persecução penal.

Tudo isso demonstra a importância da função da Polícia Judiciária e do delegado de polícia, responsáveis pela depuração dos fatos na fase primeira da persecução penal, que serve não só para revelar o crime e seu autor, mas também para evitar imputações açodadas e desprovidas de fundamento.

É preciso reconhecer o valor das funções essenciais e exclusivas de Estado exercidas pela Polícia Judiciária, porquanto é a que tem – ou deveria ter – condições de efetivamente reduzir os índices de criminalidade no Brasil.

Também por essas razões, não é mais aconselhável a manutenção desse modelo de subordinação, possibilitando que a Polícia Judiciária possa atuar de fato e de direito com independência, isenção e imparcialidade, livres de influxos externos que maculam o interesse público inerente às suas funções.

Pois, do contrário, continuar-se-á a conviver com paradoxos como a constatação de que as instituições encarregadas da persecução penal e da aplicação da lei penal – Poder Judiciário e Ministério Público – gozam de autonomia e garantias funcionais para seus membros, enquanto a Polícia Judiciária, encarregada das investigações e descoberta dos mesmos fatos que serão submetidos ao crivo daquelas instituições, não goza de qualquer garantia.

Soa contraditório também o fato de que, dentre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado (Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) que não defendem interesse do próprio Estado, a Polícia Judiciária[1] seja a única sem autonomia financeira, administrativa e funcional.

Por essas e por outras razões é que o pleno exercício das funções da autoridade de polícia judiciária (delegado de polícia) impõe a existência das mesmas garantias funcionais dos membros da magistratura e do Ministério Público, haja vista que todos eles exercem seus relevantes deveres funcionais sobre parcela de todo o complexo procedimento de persecução penal.

Diante de tudo isso, se a Polícia Judiciária ainda hoje não conseguiu exercer satisfatoriamente sua função é que, ao lado da ausência de autonomia administrativa, funcional e de orçamento próprio, está ela dependente de políticas de governo, que investem mais ou menos de acordo com as contingências governamentais – como se segurança pública pudesse, de alguma forma, ser contingenciada, como se a preservação da vida fosse algo postergável.

Por tudo isso, a solução da alta criminalidade e da baixa efetividade na apuração de crimes e julgamento pelo Poder Judiciário passa necessariamente pela autonomia da Polícia Judiciária tanto funcional, administrativa como financeira, especialmente esta última, e pela previsão de independência funcional e garantias aos delegados de polícia para o exercício das funções de polícia judiciária.


Nota

[1] Lei nº 12.860/2013. Art. 2o  As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. 

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Thiago Frederico Souza. Qual o verdadeiro problema da segurança pública no Brasil?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3908, 14 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26882. Acesso em: 22 dez. 2024.

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