11. Do Controle Social
A redemocratização do país ocorreu no momento de valorização dos movimentos sociais oriundos da abertura política que antecedeu o fim do Regime Militar. Experiências como o movimento da Anistia (final dos anos 70) e Diretas Já (1984) prepararam a alma do brasileiro para a politização em massa após anos de silêncio. Não por acaso, a Carta Política de 1988 mereceu de um de seus defensores a alcunha de Constituição Cidadã. Nunca o cidadão comum obteve tamanho espaço para exercício de poder em defesa de interesses individuais, coletivos ou transindividuais oponíveis em face do Estado como previsto na Constituição de 1988. A própria sistemática de elaboração do texto constitucional, que permitiu emendas populares, deu sinais evidentes de uma democracia mais direta e menos representativa.
Ao definir o modelo democrático brasileiro, cuja recente lembrança da tirania ainda o supliciava, quis o legislador dignificar a cidadania, inserindo no texto constitucional ferramentas para defesa do indivíduo ante a fúria leviatã do Estado.
Preceitua o artigo 1º que a cidadania é um dos fundamentos da República (inciso II), estabelecendo no parágrafo único:
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
O exercício do poder de forma direta, inclusive como limitador do Poder Estatal, é o objeto de nossa discussão neste tópico. Sobre os mecanismos de controle através de provocação ao Poder Judiciário, já os delineamos em outra oportunidade.
No elenco de garantias individuais do art. 5°, a Constituição Federal prevê que todo o cidadão tem o direito à informação e de petição perante os órgãos públicos. Tal permissivo emerge como mecanismo de controle do ato administrativo para defesa de direito ou esclarecimento de situações individuais ou coletivas e, especialmente, em defesa de direito ou contra ilegalidade e abuso de poder.
Art. 5°:
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
Difere o instrumento de Controle Social do exercício da soberania popular anunciado no artigo 14 da CF e seus incisos (voto secreto e universal, plebiscito, referendo e proposição de lei de iniciativa popular). A própria Constituição, na concepção do Estado meramente garantidor de direito sociais, estabelece mecanismos e oportunidades de participação, definição e controle social de políticas públicas.
Já o artigo 29, XII preceitua:
XII - cooperação das associações representativas no planejamento municipal;
Na sequência, o parágrafo 3º do artigo 31 estende aos munícipes a função fiscalizadora dos atos dos seus mandatários:
§ 3º - As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
O artigo 49 da LRF, por sua vez, ampliou o alcance deste instrumento de controle ao dispor sobre obrigatoriedade de acesso livre às contas dos Chefes do Poder Executivo:
Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, concebida para disciplinar o alcance do artigo 163, I, da CF, nas suas definições preliminares conceitua a administração pública como ação planejada e transparente (art. 1º, § 1o: A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente (...)).
A transparência, inicialmente atrelada ao princípio constitucional da publicidade, não se basta, todavia, apenas no seu cumprimento. Por definição legal, o alcance da transparência evidencia a efetiva participação do cidadão contribuinte na discussão, formulação e implementação das políticas públicas e na decodificação, para linguajar popular, dos termos técnicos adotados na gestão financeira do Estado. Assim, prescreve a Lei de Responsabilidade Fiscal, merecendo destaque os incisos I e II do parágrafo único do artigo 48, transcrito abaixo com nossos grifos:
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos;
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público;
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.
Na definição, implantação e controle das políticas públicas para as quais a participação social é essencial, na forma prevista na Constituição, o efetivo controle social se dá pelos Conselhos comunitários, ferramentas de gestão participativa, como define o Portal da Transparência do Governo Federal:
O controle social pode ser feito individualmente, por qualquer cidadão, ou por um grupo de pessoas. Os conselhos gestores de políticas públicas são canais efetivos de participação, que permitem estabelecer uma sociedade na qual a cidadania deixe de ser apenas um direito, mas uma realidade. A importância dos conselhos está no seu papel de fortalecimento da participação democrática da população na formulação e implementação de políticas públicas.
Os conselhos são espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Os conselhos são o principal canal de participação popular encontrada nas três instâncias de governo (federal, estadual e municipal).
O Controle Social, a despeito dos demais mecanismos de controle, apresenta-se de maneira propositiva, como parceiro efetivo na formulação e definição de políticas públicas, em um ativismo democrático capaz de compartilhar de maneira harmoniosa o exercício do poder político com os agentes públicos eletivos em uma modalidade de “controle cooperativo”.
Os conselhos comunitários, ainda que careçam de aprimoramento em nosso sistema político-administrativo, seja por comprometimento e preparo dos seus agentes, seja pela abertura e transparência dos mandatários, em alguns municípios têm se transformado em espaços de democracia participativa, reunindo valiosas contribuições para melhoria da qualidade dos serviços públicos.
Como fórum permanente de discussões, os Conselhos se revelam valiosos mecanismos de controle preventivo, propositivo e aglutinador. Tal atuação tem possibilitado o aprimoramento e a maior transparência do processo decisório na viabilidade, formulação e implementação das políticas públicas, bem como na efetividade dos resultados.
12. Considerações finais
É indiscutível a necessidade do controle quando se tem por horizonte a probidade e a eficiência administrativa. Contudo, não se pode aceitar que o controle emperre a administração de maneira a inviabilizar a ação governamental. Nesse sentido, torna-se, pois, imperioso criar uma consciência administrativa proba, gestão responsável e efetivamente planejada, compartilhada com o cidadão comum, que mais de perto pode acompanhar as políticas públicas que se desenvolvem no seu microcosmo. No mesmo diapasão, os sistemas de controle devem simplificar procedimentos na medida em que se qualifica o quadro técnico dos entes de Estado.
Referências
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Notas
[1] Israel Quirino, advogado, mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, especialista em Administração Pública, professor da Faculdade Presidente Antonio Carlos de Mariana – MG.
[2] O direito à boa administração foi positivado no artigo 41 da Carta de Nice - Declaração dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em Dezembro de 2000.
[3] A Sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público de sua administração. (Tradução nossa.)
[4] A grafia do texto legal transcrito está de acordo com a época.
[5] Constituição da República de 1891: Art. 89 - É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso.
[6] Frederick August von Hayek (1899/1992), economista austríaco, é considerado o pai do Neoliberalismo.
[7] Art. 77. A verificação da legalidade dos atos de execução orçamentária será prévia, concomitante e subsequente.
[8] Constituição da República 1967: Art.71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo e dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos por lei.
[9] Veja, por exemplo, os julgados 041749.91.2011.8.13.0000 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (disponível em tjmg.jus.br); REsp 900458 STJ DJ 13/08/2007 e REsp 1218800 DJE 15.04.2011
[10] Sobre o tema veja os recentes julgados: 0081449.60.2011.83.13.0000; 3943120.89.2009.8.13.0672; 0431421.72.2009.8.13.0071 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, dispon[iveis em tjmg.jus.br.