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Estado de exceção permanente e global

Se não há uma guerra civil “declarada”, por que treinamos nossos policiais como se fossem combatentes da pior espécie de nazismo?

Se não há uma guerra civil “declarada”, por que treinamos nossos policiais como se fossem combatentes da pior espécie de nazismo? Em todos os Estados da Federação, a Polícia Militar treina uma elite de policiais em táticas especiais, normalmente considerada a elite da tropa. O fato é que o Estado brasileiro não reconhece que vivemos em condição de guerra civil.

Aliás, nos vangloriamos de que o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) seja capaz de prestar treinamento especializado às forças policiais do mundo todo. Posto isso, se não houvesse guerra, ou se a guerra não fosse tão ferrenha, por que treinar policiais militares em táticas de comandos sedimentadas no curso da Segunda Guerra Mundial?

Na guerra, mesmo a utilização de elementos táticos especiais é uma exceção e não uma regra. Então, por que na Polícia Militar as tropas de elite são consideradas elementos táticos permanentes, especialmente se não há guerra civil? É importante lembrar que há diferenças profundas entre os conceitos de defesa e o de segurança pública.

Se assim houvesse diferença entre as atribuições de um policial e de um soldado, o armamento de porte de policiamento ostensivo do primeiro – originalmente, um revólver calibre 38 ou pistola que não passa de .40 – seria idêntico ao de dotação orgânica de um soldado do Exército Brasileiro – usualmente, um Fuzil Automático Leve (FAL), de calibre 7,62mm, ou seja, armamento e munição específicos para Teatros de Operação Terrestre nos mais diferentes domínios morfoclimáticos mundo afora.

A homogeneização dos perfis – táticos, logísticos, estratégicos e bélicos – das tropas de elite policiais[1] aponta para um cenário no qual a transformação da exceção em regra não seja mais considerada uma perturbação à ordem lógica dos fatos (ou ao menos à ordem à qual o povo esteja habituado por consenso ou por passividade da maioria), de modo que a regra acaba por ser subvertida pelo Estado de Exceção Permanente e Global.

Exemplo disso pode ser visto no caso paradigmático da Síria, que, desde março de 2011, sob o governo de Bashar al-Assad e em prol de interesses políticos profundamente difusos, ainda experimenta os danos de uma guerra civil. Aquele Estado, por ocasião do início da revolta popular, já havia exercido praticamente meio século de lei marcial, ou seja, estado de exceção sobre sua população – uma condição autoexplicativa e que subentende ações extremas por parte do Governo e das suas Forças Armadas diante de um cenário de crise excessivamente imbricado.

Há, no caso do Brasil, um ciclo de violência, como um círculo vicioso, que prende tanto as forças de segurança pública quanto a bandidagem capitaneada oficialmente pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), o que revela duas coisas básicas:

1) Rompeu-se o círculo moral virtuoso proposto pelo Estado de Direito e pela aplicação da Justiça, no qual o próprio crime organizado depositava suas garantias, pois sabia que não seriam eliminados fora dos presídios ou barbarizados dentro das prisões;

2) Indica uma dinâmica, aparentemente sem fim, de retaliação entre Polícia Militar (PM) e PCC, pois membros dos dois lados querem aplicar a lei do “olho por olho, dente por dente”.

Portanto, uma das hipóteses a ser considerada é que esse fenômeno teria sido iniciado como uma resposta à violência institucional – que é, até certo ponto, plausível haja vista a impessoalidade natural à violência legal e a incapacidade real do Estado em recuperar criminosos[2]. A onda de violência não seria uma reação dos criminosos a ações mais eficientes da polícia, mas sim uma resposta de sobrevivência às operações policiais violentas.

“A raiz (do problema) está na ingovernabilidade das polícias civil e militar, organizadas segundo parâmetros herdados da ditadura[3], associada à leniência com que autoridades da segurança pública – apoiadas por autoridades políticas – tacitamente autorizam a brutalidade policial letal em nome do rigor no combate ao crime (...) projetando o ciclo vicioso [sic.] da brutalidade letal contra os próprios policiais”, analisa o ex-secretário nacional da segurança pública, Luiz Eduardo Soares[4].

O que, por fim, revela que segue intocada uma verdadeira Epistemologia do Estado Penal. Nesses tópicos, é possível enumerar algumas das suas características mais presentes e reveladoras:

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a) Reverter o processo de humanização do direito, inaugurado no Iluminismo;

b) Privatizar o sistema prisional;

c) Criminalizar as relações sociais;

d) Confundir deliberadamente segurança pública e defesa nacional[5];

e) O recrudescimento das penas restritivas de liberdade;

f) Utilizar os meios de exceção;

g) Transformar o infrator em inimigo social;

h) Imiscuir o adversário político em inimigo de Estado;

i) Restringir os direitos fundamentais;

j) Alimentar um direito penal de exceção: direito penal do inimigo;

k) Elevar a presença/influência do direito penal, em desconsideração de outras formas de resolução de conflitos sociais;

l) Subverter o funcionalismo da sociologia criminal clássica, pois o direito penal aprimora-se mais do que o próprio “direito contratual”.

Como se vê, a solução institucional imediata do problema também tem dupla face: o custo moral para se recuperar o círculo virtuoso é muito maior do que a energia social empregada para romper o círculo vicioso do crime, isto é, mesmo que se debele a onda de morticínio, a recuperação da crença na Justiça (como expectativa de direito justo e legítimo) será muito longa.

Diante do exposto, os horizontes parecem não ser muito animadores no que tange a problemática da segurança pública, que abrange outros pontos – formação e remuneração policial; corrupção corporativa; infraestrutura adequada para operações; prisões e detenções; revisão do Código Penal, entre outros.


Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.


Notas

[1] Isso para simplificar a ideia, pois até as polícias civis de alguns estados, investigativas por natureza, já possuem tropas com características especiais, como o Grupo de Operações Especiais (GOE), de São Paulo, por exemplo, que se utilizam de técnicas e táticas equivalentes às utilizadas pelas unidades militares de Forças Especiais (FE) e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), do Exército Brasileiro.

[2] Hipótese que não exclui, de modo algum, a responsabilidade individual de cada criminoso pelos seus atos e posto que, em uma leitura hipócrita, ideológica e tendenciosa, pode-se inverter o ônus da culpa dos crimes para a sociedade civil e para os policiais que cumprem a lei tal como se dispõe. A questão da culpabilidade da sociedade dos crimes cometidos pelos seus componentes é tão polêmica o quanto possível, pois a própria sociedade aparentemente ainda não sedimentou seus valores morais/educacionais de modo homogêneo o suficiente para avaliar o quadro geral, identificar o problema e agir sobre esse de forma eficaz.

[3] O que é um contrassenso haja vista a profissão ideológica dos partidos políticos na atualidade, que em nada coadunam com a política exercida pelos militares entre 1964 e 1985. Em outras palavras, a esquerda (de todos os matizes) parece ter gostado do poder e das suas benesses tanto quanto à “extrema direita”, representada pelos militares e por uma parcela da população conservadora civil.

[4] Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/celular/noticias/2012/10/121015_pcc_ciclo_lk.shtml.

[5] O exemplo mais claro dessa confusão é a criação da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), através do Decreto nº 5.289, de 29 de novembro de 2004, e atualizações. Os indivíduos componentes dessa milícia são oriundos tanto das Polícias Militares quanto das Forças Armadas.

De acordo com a redação do art. 2º, do Decreto nº 7.318, de 28 de setembro de 2010, “A Força Nacional de Segurança Pública atuará em atividades destinadas à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, nas hipóteses previstas neste Decreto e no ato formal de adesão dos Estados e do Distrito Federal”. [grifo nosso]

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, explica no art. 142 que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. [grifo nosso]

Essa redundância ou conflito levou à publicação de um artigo: “A inconstitucionalidade da Força Nacional de Segurança Pública”, de Jorge César de Assis, disponível em www.jusmilitaris.com.br/novo/uploads/docs/inconstitucfnsp.pdf‎, e que pode esclarecer melhor o porquê dessa crítica.

Sobre os autores
Antenor Alves Silva

Agente Administrativo do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Aluno do curso de Direito (DCJ/UFRO). Doutorando em Geografia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Geografia pela UFRO. Especializado em Docência do Ensino Superior pela Universidade Castelo Branco (UCB). Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Antenor Alves; MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de exceção permanente e global. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3956, 1 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27688. Acesso em: 21 nov. 2024.

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