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A acumulação indevida de benefícios previdenciários

Elementos como boa-fé e decadência não são passíveis de impedir a revisão, pelo INSS, de benefícios percebidos conjuntamente por um segurado, nos casos de cumulação indevida.

1 INTRODUÇÃO

A Previdência Social, erigida constitucionalmente como um direito social, tem por finalidade assegurar aos seus beneficiários, mediante a respectiva contribuição, os meios indispensáveis para sua subsistência em infortúnios envolvendo incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. Assim dispõe o art. 1º da Lei nº 8.213/91, que rege os benefícios a cargo da Previdência Social.

Tal diploma legal elenca, por espécie de benefício, os requisitos para a obtenção de cada um deles. Nesse passo, em tese, atendendo-se às regras legalmente ditadas – mormente atinentes à qualidade de segurado, carência e tempo de contribuição – o segurado fará jus à espécie previdenciária requerida.


2 ACUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS

Não se olvide que alguns benefícios podem ser percebidos cumulativamente pelo mesmo segurado. É o caso, por exemplo, da possibilidade de acumulação de aposentadoria e pensão por morte, espécies advindas de fatos geradores distintos: a primeira decorre do preenchimento de requisitos pelo próprio titular, envolvendo, em regra, a filiação à Previdência Social, o alcance da faixa etária exigida e o cumprimento da carência e do tempo de contribuição, conforme o tipo de aposentadoria visado; já a pensão por morte exige do titular a qualidade de dependente em relação ao instituidor e deste último a filiação à Previdência Social que lhe garantisse a qualidade de segurado à época do óbito.

Outro exemplo de permissibilidade de recebimento conjunto de benefícios ocorre entre o auxílio-doença e a pensão por morte. Semelhantemente à situação acima explanada, também nesta hipótese a lei não veda essa cumulatividade.

É forçoso reconhecer, todavia, que a Lei nº 8.213/91 preconiza, ressalvados os casos de direito adquirido, diversas hipóteses de inacumulabilidade de benefícios previdenciários. Cumpre trazer à baila a literalidade do art. 124 do referido diploma, senão vejamos:

Art. 124 - Salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social:

I - aposentadoria e auxílio-doença;

II - mais de uma aposentadoria; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

III - aposentadoria e abono de permanência em serviço;

IV - salário-maternidade e auxílio-doença; (Incluído dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

V - mais de um auxílio-acidente; (Incluído dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

VI - mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, ressalvado o direito de opção pela mais vantajosa. (Incluído dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

Parágrafo único. É vedado o recebimento conjunto do seguro-desemprego com qualquer benefício de prestação continuada da Previdência Social, exceto pensão por morte ou auxílio-acidente.

É importante frisar, como bem previu a lei, que o direito adquirido não deixará de ser observado. Dessa forma, uma acumulação antes permitida não será impedida pela superveniência de lei proibitiva, desde que satisfeitos os requisitos à luz da legislação permissionária.

Pode-se citar, neste cenário, a possibilidade de acumulação de pensões por morte, pelo mesmo titular, deixadas por cônjuge ou companheiro. Em outros termos, desde que cumpridos os requisitos para a obtenção de tais benefícios precedentemente à entrada em vigor da Lei que impediu a acumulação desses benefícios – in casu, a Lei nº 9.032, publicada em 29 de abril de 1995 e vigorante a partir dessa data – o dependente fará jus à percepção conjunta dos mesmos.

Impende salientar, nesta hipótese específica, que os requisitos para a concessão da pensão por morte envolvem o óbito de segurado filiado à Previdência Social, a qualidade de segurado deste e a qualidade de dependente do pretenso beneficiário. Assim, se verificado o cumprimento de todas as exigências até a véspera da entrada em vigor da Lei nº 9.032/95, um dependente pode ser agraciado, ainda hoje, com a concessão de duas pensões instituídas por cônjuge e/ou companheiro.

Ressalvado, portanto o direito adquirido, não há que se falar em acumulação de benefícios previdenciários nas hipóteses listadas no art. 124 ora transcrito.

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3 ACUMULAÇÃO INDEVIDA E REVISÃO

Malgrado a atual informatização dos sistemas previdenciários e o relacionamento destes com outros bancos de dados públicos, ainda é constante a detecção de recebimento conjunto de espécies de benefícios inacumuláveis. Consistem, em sua maioria, em benefícios concedidos há décadas, num tempo em que não se dispunha de sistemas corporativos para aferir a existência, em nome daquele requerente, de benefício já em vigor que impossibilitasse a concessão de outra espécie de forma cumulada.

Diante da verificação da acumulação de benefícios que, aparentemente, não podem ser percebidos conjuntamente por um mesmo segurado, o INSS, em primeiro lugar, deve instaurar processo administrativo visando à apuração do indício de irregularidade. Fala-se em “indício” porque, a priori, não se tem certeza da ocorrência da irregularidade na percepção cumulada dos benefícios. Isso porque os mesmos podem estar albergados nas hipóteses legais de permissibilidade de acumulação ou, até mesmo, terem sido concedidos com lastro em decisão administrativa recursal de última instância ou em decisão judicial.

Ultrapassada essa etapa, passa-se à aferição da origem da acumulação indevida: fraude ou erro. Essa definição é fundamental, na medida em que a fraude pode ensejar, dentre outras providências, a cobrança dos valores referentes a todo o período em que se deu a acumulação indevida, retroagindo, portanto, à concessão do benefício inacumulável. Doutra banda, o erro administrativo, seja ele derivado de fato atribuível à Autarquia Previdenciária ou configurado em razão da falta de elementos caracterizadores de fraude, dolo ou má-fé do segurado nos autos, limita a cobrança do montante recebido indevidamente aos últimos cinco anos, face à prescrição quinquenal.

Impende salientar, contudo, que antes de promover qualquer suspensão e/ou cessação de benefício previdenciário irregularmente mantido, o INSS, em observância aos direitos constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, bem como em atenção ao disposto no art. 11 da Lei nº 10.666/2003 e no §1º do artigo 179 do Decreto nº 3.048/1999, faculta aos segurados o prazo de 10 (dez) dias para apresentação de defesa escrita, provas ou documentos que possam infirmar o entendimento da Autarquia.

É de bom alvitre citar que a instauração de ofício de processo colimando apurar indício de irregularidade em benefícios previdenciários tem arrimo no princípio da autotutela da Administração Pública, segundo o qual a mesma detém o poder-dever de proceder à anulação dos atos administrativos reconhecidamente praticados em desconformidade com a lei, já que à Administração só é cabível agir em plena consonância com os ditames legais, como anuncia o princípio da legalidade administrativa.

Em outros termos, a Previdência Social, ao promover de ofício a revisão dos benefícios em manutenção, exerce um direito regular, disciplinado em diversos instrumentos normativos do ordenamento jurídico brasileiro, em consonância com o princípio constitucional da legalidade da Administração Pública, haja vista que aos Poderes Públicos somente é facultado agir por imposição ou autorização legal.


4 ALEGAÇÕES DOS BENEFICIÁRIOS

Em sede de defesa, os segurados detentores de mais de um benefício previdenciário inacumulável apresentam os mais variados argumentos. É claro que alguns são válidos e justificam, em determinadas hipóteses, a manutenção das espécies em revisão. Entretanto, outros tantos apontamentos não merecem guarida, como os exemplos a seguir explanados.

4.1 Da boa-fé do segurado

A arguição do segurado no sentido de que teria agido de boa-fé perante a Previdência Social em todo o tempo em que percebeu concomitantemente dois ou mais benefícios inacumuláveis não é passível de obstar o INSS de promover a revisão de benefícios que vêm sendo pagos indevidamente, posto que, se a acumulação está em desacordo com a legislação previdenciária em vigor, sobressalente é a ilegalidade desse ato, e, como é cediço, um dos princípios basilares da Administração Pública é o princípio da legalidade, de modo que os atos administrativos devem primar pela estrita observância aos ditames legais.

Saliente-se que a Lei nº 8.213/1991 e o Decreto nº 3.048/1999 apontam o recebimento a maior de valores atinentes a benefícios previdenciários como sendo indevido, mesmo que o referido ato tenha se dado sob os auspícios da boa-fé. Do contrário, estar-se-ia admitindo o enriquecimento ilícito por parte do segurado.

Dessa forma, o fato de o segurado ter agido de boa-fé não impede que o INSS proceda à revisão dos benefícios irregularmente por ele percebidos, mormente porque não se pode albergar e tornar legítimo o enriquecimento ilícito experimentado por um beneficiário. A atitude calcada em boa-fé apenas tem o condão de afastar a fraude, dolo ou má-fé e, por conseguinte, restringir a cobrança dos valores recebidos indevidamente ao lapso temporal abarcado pela prescrição quinquenal.

Assim, em atenção aos princípios administrativos da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse público pela Administração, o recebimento de espécies previdenciárias inacumuláveis merece ser revisto, inclusive porque os valores que não mais serão pagos indevidamente serão reinvestidos na Previdência Social, permitindo o atendimento dos princípios constitucionais concernentes à Seguridade Social propugnados pela Carta Maior.

II – Da decadência

No tocante à alegação de ocorrência da decadência para o cancelamento dos benefícios e para a pretensão de restituição ao erário do quantum recebido indevidamente pelo segurado, notadamente suscitada quando os benefícios em revisão foram concedidos há mais de 10 (dez) anos, cumpre ressaltar que, consoante pacífica jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), não se originam direitos de atos eivados de vícios de ilegalidade, de acordo com o exposto na súmula nº 473 do STF, nos seguintes termos:

Súmula nº 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Observe-se que a Súmula em destaque ressalva a apreciação judicial. Em outros termos, havendo decisão judicial que determine que a Administração (in casu, o INSS) não proceda à revisão de seus atos maculados com vício, esse órgão público quedar-se-ia inerte; todavia, ante a ausência de provimento judicial impedido o INSS de prosseguir com a revisão de benefícios percebidos conjuntamente nas hipóteses de impossibilidade de acumulação, o ato revisional terá seguimento.

É oportuno lembrar que o art. 103-A da Lei nº 8.213/1991 assim dispõe, acerca do prazo decadencial aplicado à revisão de benefícios previdenciários: “Art. 103-A - O direito da Previdência Social de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

Não obstante o regramento supracitado, a revisão de benefícios mantidos indevidamente em decorrência da impossibilidade de acumulação não está restrita ao prazo decadencial decenal contado a partir de sua concessão, porquanto a irregularidade reside na manutenção de espécies incompatíveis.

Nesse sentido, cabe trazer a lume o teor do art. 444 da Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 06/08/2010:

não se aplica a decadência aos casos em que o ato concessório está correto mas a manutenção do benefício está irregular por falta de cessação do benefício ou cota parte, cuja causa esteja expressamente prevista em lei, podendo, neste caso, o benefício ou cota parte, ser cessado a qualquer tempo.

Sendo assim, a acumulação indevida de benefícios não consiste em irregularidade propriamente na concessão dos mesmos, os quais são deferidos isoladamente com base no atendimento aos requisitos exigidos em lei para cada espécie previdenciária requerida. A problemática reside, em verdade, na impossibilidade de recebimento conjunto de determinadas espécies previstas em lei, o que configura, por conseguinte, impropriedade na manutenção conjunta de tais benefícios pelo mesmo segurado/dependente.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esteio nos argumentos ora ventilados, é possível concluir que elementos como boa-fé e decadência não são passíveis de impedir a instauração de processo de revisão, pelo INSS, de benefícios percebidos conjuntamente por um segurado, cujas espécies são inacumuláveis perante a legislação vigorante à época de sua concessão. Primeiramente, porque a lei não impede a revisão de benefícios irregulares, ainda que comprovada a boa-fé do recebedor, apenas acarretando, nessa hipótese, a incidência da prescrição quinquenal quando da cobrança dos valores recebidos indevidamente. E, em segundo lugar, porque a questão da manutenção indevida, como a própria denominação permite inferir, não remonta à irregularidade na concessão.

O ato concessório irregular, de per si, pode ser atingido pela decadência decenal, impossibilitando a sua revisão. Já a manutenção irregular, por falta de cessação prevista em lei, pode e deve ser revista a qualquer tempo, evitando a perpetuação do prejuízo ao erário.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 09 de set. 2013.

______. Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm. Acesso em 20 de set. 2013.

______. Instituto Nacional do Seguro Social. Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 06 de agosto de 2010. Dispõe sobre a administração de informações dos segurados, o reconhecimento, a manutenção e a revisão de direitos dos beneficiários da Previdência Social e disciplina o processo administrativo previdenciário no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Disponível em http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/inss-pres/2010/45_1.htm. Acesso em 20 de set. 2013.

______. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em 09 de set. 2013.

Sobre a autora
Priscila Felipe Medeiros da Câmara Castro

Advogada Especialista em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Priscila Felipe Medeiros Câmara. A acumulação indevida de benefícios previdenciários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3948, 23 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27799. Acesso em: 24 nov. 2024.

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