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A (esquecida) pergunta fundamental do Direito Tributário

Agenda 26/04/2014 às 11:30

Ninguém se incomoda com os tributos indiretos porque eles mantêm a população alienada sobre o quanto efetivamente paga e, ao mesmo tempo, sustentam a estrutura perversa do nosso sistema, baseado na regressividade.

A carga tributária brasileira é alta. Nosso sistema tributário é complexo e caótico. Nossa legislação tributária é um emaranhado incomensurável de textos normativos (leis, decretos, instruções normativas, portarias, etc.), nas três esferas do poder político, que impõem inumeráveis (e por vezes exageradas) obrigações aos contribuintes.

São três proposições que estão na base de toda discussão no direito tributário brasileiro. E, obviamente, ninguém parece disposto a negá-las. Contudo, são também os três principais pontos de partida para um discurso fácil, aquele discurso para agradar e inflamar a plateia. Não por acaso, nossa doutrina está geralmente concentrada nessas questões.

Evidentemente, não se pode negar a relevância de tais problemáticas. Entretanto, ao serem colocadas como elementos centrais na formulação das perguntas fundamentais do direito tributário brasileiro, resta obscurecida a questão que deveria ser, incontestavelmente, o ponto medular, basilar, o alicerce do nosso direito tributário, ou seja, a pergunta sobre como adequar a nossa tributação à nossa Constituição.

Poderíamos colocar tal pergunta nos seguintes termos: se a nossa constituição institui um Estado democrático social dirigente-compromissório, que tem a pretensão de transformação das relações sociais no sentido de se alcançar uma igualdade substancial entre os cidadãos brasileiros, como então fazer com que o nosso sistema tributário seja compatível com esse sentido da nossa Constituição?

Decerto, o que mais fortemente caracteriza nossa Constituição é seu núcleo de direitos sociais e todo o instrumental jurídico de efetivação desses direitos. É nesse sentido, aliás, que Luigi Ferrajoli (conforme texto publicado aqui no Conjur 1) afirma que a Constituição brasileira é uma das mais avançadas do mundo, pois, indo além daquilo que caracteriza as constituições modernas, ou seja, a elevação dos direitos sociais à condição de direitos constitucionais, a Carta de 1988 instituiu garantias de efetivação desses direitos sociais.

Nesse contexto, o artigo 3º é o ponto fulcral para o qual deve convergir toda a compreensão e aplicação do direito brasileiro. Erradicação da pobreza, diminuição das desigualdades sociais e regionais, promoção da justiça social, enfim, os objetivos fundamentais dispostos no artigo 3º não são, nem de longe, meros ideais ou mero discurso ideológico. Ao contrário, são, substancialmente, mandamentos constitucionais, ou podemos dizer, comandos normativos determinantes da própria função social do nosso direito.

Vale dizer, o texto da nossa Constituição clama por efetivação, numa expressiva ordem normativa de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I). Tais objetivos dispostos no art. 3º são, nas palavras do Lenio Streck, “princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade” 2.

Trata-se, enfim, de uma questão paradigmática da própria função do Direito, questão, aliás, magistralmente colocada por Streck, nos seguintes termos: “de um lado temos uma sociedade carente de realização de direitos e, de outro, uma Constituição Federal que garante estes direitos de forma mais ampla possível. Este é o contraponto. Daí, a necessária indagação: qual é o papel do Direito e da dogmática jurídica neste contexto?” 3. Daí, nessa mesma linha de raciocínio e no âmbito da discussão ora proposta, deveríamos então nos perguntar: qual o papel do direito tributário neste contexto?

Afinal, poderia o direito tributário estar imune a esses objetivos constitucionais? Poderia o direito tributário prescindir dessa caracterização de instrumento de promoção de justiça social? Poderia o direito tributário deixar de ter como diretriz fundante a efetivação dos objetivos dispostos no artigo 3º da Constituição?

É preciso considerar que, como disse o mestre Canotiho, “o texto constitucional pressupõe que a sua operacionalização prática se dê através de processos jurisdicionais, procedimentos legislativos e administrativos e iniciativas dos cidadãos” 4. Por certo, o direito tributário não pode estar alheio a essa operacionalização do texto constitucional, não pode continuar desvinculado dos pressupostos decorrentes dos objetivos fundamentais do artigo 3º.

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Então, porque não pensamos o direito tributário como uma condição de possibilidade para essa transformação social, claramente expressa no texto do artigo 3º?

Num Estado social, o tributo é o recurso para manter direitos sociais, para a concretização de toda uma estrutura normativa constitucional que se caracteriza, sobretudo, por uma clara pretensão de transformação social. Não se deve continuar a pensar o tributo como um mero instrumento de manutenção do ente estatal, ou simplesmente como “o custo do Estado”, como se pensava na velha doutrina do Estado, já há muito superada.

Mas, ao revés de uma transformação social, nossa doutrina continua presa a sua limitada compreensão do direito tributário como um instrumento regulador de uma relação Estado-Contribuinte, em que o Estado é o ente detentor de um poder e o contribuinte é a pessoa a ser protegida contra tal poder, restringindo o fundamento do direito tributário à limitação desse poder, ou, em seu aspecto teleológico, mas no mesmo sentido, à proteção do contribuinte.

Decerto, não se pode negar a importância dessa proteção do contribuinte contra tal poder e, principalmente, contra os abusos de poder do ente tributante, pois essa garantia decorre do próprio princípio da igualdade, entendimento como um direito fundamental de ser tratado com igual consideração e respeito (em termos dworkinianos). Mas, limitar os fundamentos do direito tributário a esse âmbito de proteção significa encobrir a necessidade de se pensar a tributação a partir dos princípios político-jurídicos expressos no artigo 3º.

É preciso, antes de tudo, como assevera Lenio Streck, pensar a Constituição como locus de compreensão do direito e como fonte principiológica elementar. Ademais, como afirma Streck, devemos partir da constatação de que o Estado Democrático de Direito pressupõe o Direito como um instrumento de transformação social. Mas, o que tem ocorrido em nosso país é uma nítida “desfuncionalidade do Direito e das Instituições encarregadas de aplicar a lei” 5.

Precisamos, enfim, atentar para o nosso lamentável contexto de desigualdades. Nosso país ainda está entre os de maiores índices de desigualdade social do mundo. Veja-se, por exemplo, a última pesquisa PNAD/IBGE 6, na qual se indica que, em 2011, enquanto a média do rendimento real mensal do trabalho (das pessoas de 16 anos ou mais de idade, ocupadas) foi de R$ 1.507,00 e o rendimento médio real dos 10% mais pobres foi de R$ 215,00, o rendimento médio do grupo dos 1% dos trabalhadores mais bem remunerados foi de R$ 18.889,00. E enquanto a renda média mensal familiar per capita dos 20% mais pobres foi de R$ 159,74, a dos 20% mais ricos foi de R$ 2.629,86. Ou seja, a diferença de renda entre as camadas econômicas da população brasileira ainda é abismal.

E mesmo diante deste triste quadro, ainda não efetivamos e nem sequer estamos tentando efetivar o princípio constitucional da capacidade contributiva, em seu sentido primordial da progressividade da tributação, isto é, fazer com que os mais favorecidos economicamente contribuam em percentual maior do que aqueles que têm menor poder econômico. Em suma, a regressividade tributária continua prevalecendo em nosso sistema tributário. Vale mencionar, por exemplo, o estudo realizado por Márcio Pochmann 7, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, que revela a baixa progressividade da tributação direta no Brasil e demonstra que “o peso da tributação indireta é muito maior do que o da tributação direta, tornando regressivo o efeito final do nosso sistema tributário”. O estudo indica que os 10% mais pobres da população brasileira “sofrem uma carga total equivalente a 32,8% da sua renda, enquanto o décimo mais rico, apenas 22,7%”.

Parece impressionante o fato de que em nosso país os mais pobres contribuam mais pesadamente (proporcionalmente a sua renda) do que os mais ricos. A razão, por incrível que pareça, é simples. De fato, nosso sistema tributário é regressivo por ser baseado em impostos indiretos, pois aqueles que têm renda mais baixa, em geral, empregam o total (ou quase total) de seus rendimentos no consumo de produtos e serviços, sobre os quais incidem os impostos indiretos, e assim contribuem com um percentual maior de sua renda, em razão do ônus desses impostos, os quais, ressalte-se, embora sejam cobrados (diretamente) das empresas, têm seu valor repassado para o preço dos produtos e serviços.

Oportuno, também, nesse sentido, mencionar a análise de Henrique Napoleão Alves 8 sobre os indicadores do perfil da tributação brasileira, na qual ele conclui que “o sistema tributário brasileiro, ao invés de se adequar às finalidades distributivas do Estado, funciona, ao revés, como um dos principais fatores de concentração da riqueza socialmente produzida”.

E o que é pior, não se vê interesse, nem do governo, nem da sociedade, no sentido de se implementar alguma mudança significativa quanto a essa questão da regressividade da tributação no Brasil. Um exemplo disso é que o imposto de renda pago por pessoas físicas (IRPF), que é, efetivamente, o único imposto progressivo no sistema brasileiro, representa, tão somente, cerca de 10% (dez por cento) da arrecadação nacional. E, por certo, nada se vislumbra no sentido de um aumento significativo dessa participação.

Há, evidentemente, forte resistência a transformações, sobretudo pelo fato de que tornar o sistema progressivo pressupõe uma maior participação dos impostos diretos (incidentes sobre renda e patrimônio) no total da arrecadação tributária brasileira. Ora, o principal imposto direto é o IRPF. Todavia, parece claro que ninguém quer, por exemplo, o aumento das alíquotas do IRPF. Aliás, tal proposta seria algo extremamente impopular.

Mas, por outro lado, todos parecem resignados com as alíquotas do ICMS, do IPI e da COFINS, dentre outros. Vale dizer, ninguém se incomoda com os tributos indiretos porque eles mantêm população alienada sobre o quanto efetivamente paga e, ao mesmo tempo, sustentam a estrutura perversa do nosso sistema, ou seja, a sua regressividade.

Parece evidente, e inegável, que, tanto pelo “senso comum” dos nossos juristas, quanto pelas “opiniões hegemônicas” em nossa sociedade (das classes dominantes), seria considerada como “injusta” uma tributação da renda em que as alíquotas chegassem a 50%. No entanto, ninguém parece considerar injusto o fato de que uma grande parte da população tenha de se contentar com um salário mínimo mensal, e tenham de pagar um terço dessa renda em impostos indiretos, e ainda lhes sejam negados os direitos sociais previstos na Constituição, enquanto uma pequena classe de pessoas economicamente privilegiadas, os “trabalhadores bem remunerados”, tenham rendimentos de cerca de 30 vezes o valor do salário mínimo, e mesmo assim se neguem a contribuir (efetivamente) com uma parte maior dos seus rendimentos, para que a tributação em nosso país fosse, de fato, mais isonômico.

Ao que tudo indica, afinal, o sistema baseado em impostos indiretos tem sido muito bom para as camadas economicamente mais favorecidas da nossa sociedade. O que não chega a ser surpreendente num país em que, apesar de toda a insuperável riqueza principiológica da Constituição, “as promessas da modernidade ainda não se realizaram” 9 para a grande maioria da população. Resta-nos, por fim, insistir na inconveniente pergunta: nosso sistema tributário permanecerá imune às exigências paradigmáticas dos objetivos fundamentais dispostos no artigo 3º do texto constitucional?


Notas

1Texto disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileira-avancadas-mundo-luigi-ferrajoli

2STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

3STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit.

4CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1127.

5STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit.

6Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE, 2012. Síntese dos indicadores sociais disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf

7POCHMANN, Márcio. Desigualdade e Justiça Tributária. Brasília, IPEA, 2008. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/05/197_1548-DesigualdadeJusticaTributaria-CDES.pdf

8ALVES, Henrique Napoleão. Tributação e injustiça social no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, n. 133, 2012. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/14965/9306

9STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit.

Sobre o autor
Luis Alberto da Costa

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Luis Alberto. A (esquecida) pergunta fundamental do Direito Tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3951, 26 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27933. Acesso em: 23 dez. 2024.

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