CONCLUSÃO
O Estado Moderno, nas palavras de THIERRY MAULINIER, foi o "reino dos cidadãos teoricamente livres e materialmente escravos".
O ideal de igualdade econômica exsurge como o argumento de maior relevância dentro do princípio da isonomia, sendo ele o responsável pela transição do regime liberalista absoluto para o regime social-democrata do welfare state.
Muito há a realizar, nada obstante.
O fornecimento de crédito está na base do desenvolvimento das economias contemporâneas. Nesse cenário, os bancos assumem papel de relevo para o atendimento das necessidades dos consumidores. Isso porque, em uma sociedade desigual como a brasileira, por exemplo, o fornecimento de crédito revela-se indispensável até mesmo para a satisfação de necessidades primárias para a larga maioria da população, representando o meio de acesso à aquisição de bens ou à contratação de serviços.
Desta forma, no que pese os benefícios que possa oferecer à economia, como um todo, o fornecimento de crédito provoca abusos decorrentes, sobretudo, da desigualdade de poder entre as instituições financeiras e os consumidores.
A "escravidão", hoje, tem novas feições.
CARLOS ALBERTO BITTAR [10], sensível a essa nova perspectiva, assinala:
"Na ânsia de prover a exigências pessoais ou familiares – portanto, sobre a pressão da necessidade – os consumidores têm sua vontade desprezada, ou obscurecida, pela capacidade de imposição de contratação e, mesmo, de regras para a sua celebração, de que dispõem as grandes empresas, face à força de seu poder negocial, decorrente de suas condições econômicas, técnicas e políticas. A vontade individual fica comprimida; evidencia-se um descompasso entre a vontade real e a declaração emitida, limitando-se esta à aceitação, pura e simples, em bloco, do negócio (contrato de simples adesão)".
Não há como se deixar de reconhecer a importância alcançada pelos contratos celebrados pelas instituições acima referidas no mundo contemporâneo. Tais contratos popularizaram-se, sendo acessíveis a qualquer cidadão, por menor renda de que disponha, o que demonstra a dimensão coletiva assumida por tais relações jurídicas.
São negócios jurídicos de adesão por excelência, com condições gerais impostas pelas instituições fornecedoras, em termos quase inacessíveis à larga maioria dos consumidores.
A Carta da República de 1988 está impregnada do espírito do Welfare State. Seus princípios e disposições revelam a preocupação do constituinte com o bem-estar social, sinalizando um intervencionismo estatal que busca assegurar a proteção das classes economicamente mais fracas e, ao mesmo tempo, a contenção dos abusos econômicos.
Eis a origem e a base da legislação consumeira. A Constituição garante a aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor a todos os segmentos da economia nacional e, dessa forma, não se pode admitir que justamente as instituições que realizem negócios bancários, de financiamento, de fornecimento de crédito e securitários (bancos, financeiras, administradoras de cartões de crédito e seguradoras) fiquem desobrigados de aplicá-lo em suas atividades.
Relembra-se que coibir abusos é, exatamente, um dos objetivos do Direito Econômico, harmonizando-se os interesses dos sujeitos da atividade econômica ocorrente no mercado com os próprios princípios constitucionais, mormente os insculpidos nos artigos 5º, XXXII (do direito e garantia fundamental à defesa dos interesses dos consumidores), 170, IV e V (da defesa do consumidor como princípio geral da ordem econômica), 173, §4º (a repressão ao abuso do poder econômico).
Sendo o consumidor visto e assumido como a parte vulnerável e economicamente mais fraca da relação jurídica assim constituída, deve ter os seus interesses tutelados, protegidos e amparados pelo Poder Público, fato impossível de implementar-se com o auxílio exclusivo do Direito Privado.
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor surge, repita-se, em atenção à disposição constitucional expressa, contida no artigo 48, dos ADCT, e para dar efetividade aos princípios já mencionados.
Nenhuma política econômica, por mais efêmera e transitória, pode colocar-se em confronto com a legislação consumeira porque, assim o fazendo, estará em rota de colisão com a própria Constituição, seus princípios e objetivos.
Relembra-se que as regras de Direito Econômico inspiram-se, como afirmamos antes, na ideologia constitucionalmente adota e exprimem-se por meio das medidas de política econômica traçada. Funcionam, em conseqüência, como fonte subsidiária para a concretização dos direitos assegurados constitucionalmente, dentre eles, os Direitos e Garantias Fundamentais, de onde destacamos, realce-se à exaustão, a proteção e a defesa dos interesses dos consumidores (artigo 5º, XXXII).
Pode-se aferir o grau de civilidade de uma determinada nação pela análise do tratamento e da proteção que confere aos seus consumidores.
Recorda-se ROBESPIERRE que, no final do século XVIII, se manifestou no sentido de que "não se faz uma revolução sem uma revolução" e foi exatamente isso o que fez a Lei nº 8.078/90 – operar uma verdadeira revolução no sistema jurídico pátrio, muito embora dela não se tenham extraídos, ainda, todas as conseqüências e benefícios que poderiam advir.
Em derradeiro arremate, não há que se cogitar do afastamento das instituições financeiras à incidência do Código de Defesa do Consumidor – o que romperia, entre outros, com o princípio da igualdade estabelecido na Constituição – mas, ao revés, de se buscar e perseguir a concretização de políticas econômicas que, cumprindo as finalidades do Direito Econômico e do Direito Constitucional Econômico, estejam adequadas ao instituto consumeirista, para que se alcance uma sociedade mais justa e economicamente mais igualitária.
Atentar contra isso é atentar contra a Constituição.
Notas
1...SILVEIRA, Cláudia Maria Toledo. Direito Econômico e Cidadania. In: Jus Navigandi, n. 20 [Internet]. Texto consultado em jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=80, em 14.12.2001.
2...A nova Constituição Argentina de 1994, em seu artigo 42, igualmente incorpora a tendência de atribuir a proteção ao consumidor status constitucional.
3...Constituição Espanhola de 1978, artigo 51: "os poderes públicos garantirão a defesa dos consumidores e usuários protegendo, mediante procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses econômicos dos mesmos".
4...Constituição Portuguesa de 1982, revisada em 1989, artigo 102: "a proteção dos consumidores é um dos objetivos da política comercial", in: Canotilho, J.J. e Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 2ª ed., vol. 1. Coimbra, 1984, p. 475.
5...SÉRGIO CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 359; HÉLIO ZAGHETTO GAMA, op. cit.,p.24.
6...SÉRGIO CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 359
7...O professor JAMES MARINS, op. cit., lembra que a Constituição da República de 1988 tem uma base antropológica especialmente expressiva, já que calçada sobre valores fundamentais indiscutíveis e que sedimenta seus alicerces estruturantes na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, objetivando construir uma sociedade livre, justa e solidária, que possa garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, de modo a promover o bem de todos. Lembra, ademais, que das finalidades e garantias magnas, expressas no artigo 5º, CR/88, não está excluída a atividade econômica, que está fundada "na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa", tendo por finalidade "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social".
8.Interpretação dos contratos regulados pelo Código de Proteção ao Consumidor, apud SERGIO CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 361
9...MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 197.
10..BITTAR, Carlos Alberto. Direito do Consumidor. 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991, p. 02.