Para caracterizar aquilo que denomina “sociedade disciplinar”, Foucault inicia, naquela que é sua obra destinada a apresentar uma análise sobre o surgimento da prisão, por meio da contraposição entre as medidas empregadas na exclusão do leproso e inclusão do pestífero. Enquanto no caso do primeiro, verifica-se o desenvolvimento de um modelo que implicava a rejeição do leproso em uma massa indiferenciada, o pestilento desperta mecanismos disciplinares, sendo considerado “[...] num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos limitantes de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide” (p. 188).
O esquema de poder característico desse período recorta e fixa o espaço; baseia-se em uma vigilância constante a partir de um sistema de registro contínuo. Através dos relatórios emitidos pelas mais diversas autoridades, que vão dos médicos aos prefeitos, e pelas decisões por elas tomadas, a relação de cada pessoa com sua doença e com sua morte percorre as instâncias do poder. Contrapondo-se à mistura caótica da peste, a disciplina impõe seu poder de análise:
[...] prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece (p. 188).
Um e outro representam, cada qual à sua maneira, uma diferente utopia política: o exílio do leproso traz consigo o sonho de uma comunidade pura; a prisão do pestilento, o de uma sociedade disciplinar. Embora distintos tais projetos não são incompatíveis. O que o século XIX mostra, ao contrário, é a aplicação das técnicas de quadriculamento disciplinar aos espaços ocupados pelos leprosos reais, ou seja, mendigos, loucos, vagabundos e violentos. Os portadores de lepra, ao mesmo tempo em que são marcados como tais e sobre eles se faz funcionar todo um mecanismo de repúdio, são individualizados por meio da disciplina.
As relações sociais modernas têm para Foucault como característica a atuação de tal poder tríplice, exercido sobre os sujeitos por meio de vigilância individual, controle e correção. O Panopticon de Bentham é a representação arquitetônica típica de tal período: um edifício em forma de anel, dividido em pequenas celas, no qual tudo o que era feito pelo indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante, que ninguém poderia ver. Este tipo de poder pode receber o nome de panoptismo, que não repousa mais sobre o inquérito, mas sobre o exame. Dessa maneira, afirma o autor:
A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multidão enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada (p. 190-191)
O Panóptico automatiza o poder ao infundir naquele que é observado uma sensação consciente de uma vigilância permanente: arquitetura que cria e mantém uma relação de poder, portanto, que não mais depende daquele que o exerce; os vigiados são presos em um sistema no qual eles mesmos são portadores das relações que os submetem. Em outras palavras, aquele que “[...] está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; [...] torna-se o princípio de sua própria sujeição” (p. 192). O Panóptico dá ao poder a oportunidade de empreender novas experiências, modificar o comportamento de indivíduos, domesticá-los através de técnicas democraticamente controladas. A ampliação e organização do poder se faz visando ao recrudescimento das próprias forças sociais: aumento da produção, expansão da indústria, desenvolvimento da economia, potencialização da instrução.
O panoptismo coloca em funcionamento uma forma de disciplina diferente da chamada disciplina-bloco. Enquanto esta se baseia na instituição fechada, destinada à marginalização e à suspensão do tempo e do diálogo, a disciplina-mecanismo empreendida por essa nova técnica procura tornar o poder mais ágil, de atuação mais sutil, mais eficaz. Pode-se falar em uma verdadeira inversão funcional das disciplinas, segundo o próprio autor. Anteriormente assentados na tentativa de neutralizar os perigos fixando as populações agitadas, os mecanismos de poder procuram, cada vez mais, produzir indivíduos úteis. Ademais, a multiplicação da disciplina é correlata à sua desinstitucionalização, “[...] as disciplinas maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de controle, que se pode transferir e adaptar” (p. 199).
O espetáculo cede espaço à vigilância. Na verdade, esta última deve funcionar como uma forma de regulação inversa à primeira em uma sociedade na qual a comunidade e a vida pública perdem espaço e são substituídas pela prevalência do indivíduo privado, por um lado, e pelo Estado, por outro: “[...] sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração da troca, processa-se o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber [...]” (p. 205).
Publicado em 1949, o livro “1984” é por muitos considerado uma das mais importantes obras produzidas no século XX. De qualquer forma, a obra-prima de George Orwell foi responsável por criar a figura que, posteriormente com a popularização do reality show, entraria de vez no imaginário mundial, tornando-se símbolo de toda uma era: o Big Brother. Este é, no texto original, o nome dado a uma entidade onipresente que, através das horripilantes teletelas, consegue vigiar todos os habitantes da Oceânia; “O Big Brother está de olho em você” era a frase que estampava os cartazes e pinturas espalhados pelas cidades, logo abaixo do olhar inquisidor do líder do Partido. Descreve o autor: “Você era obrigado a viver – e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto – acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e [...] todo movimento examinado meticulosamente” (ORWELL, 2009, p. 13).
Na história, Winston Smith acaba por se rebelar contra a opressão da sociedade imaginada por Orwell, cometendo, assim, um delito gravíssimo: pensamento-crime, algo severamente perseguido pela Polícia das Ideias. Aquele que lê uma obra como “1984” se depara com a genialidade de um autor que pensou em cada detalhe da estrutura social de sua distopia: mecanismos de disciplina elevados ao grau paroxístico; um Estado que é capaz de controlar não apenas os corpos dos sujeitos, mas também, e principalmente, suas mentes; o desenvolvimento de uma linguagem específica (a Novafala), intimamente ligada às relações de poder e controle, funcionando como forma de expressão daquelas ideias de acordo com a doutrina dominante e ainda impedindo que pensamentos discordantes fossem até mesmo pensados, “Inúmeras palavras, como honra, justiça, moralidade [...] democracia [...] haviam simplesmente deixado de existir [...]” (ORWELL, 2009, p. 354).
Poucos são os autores que conseguem, partindo de seu contexto histórico-social, traçar características acerca do futuro e ainda acertar. As conferências de Foucault apresentadas nas páginas anteriores mostram e a análise que se seguirá tentará mostrar que Orwell se enquadra nesta reduzida categoria literária. Todos os textos que serão utilizados para embasar a leitura da obra são posteriores ao autor do livro analisado. Temas como a disciplina e o controle, a padronização nociva dos indivíduos e sua vigilância incessante já eram observados e discutidos literariamente por George Orwell, extremamente influenciado pelo período pós Segunda Grande Guerra Europeia.
Em um de seus devaneios por meio dos quais seus pensamentos tentavam se libertar das amarras impostas pela opressão absoluta, Winston decide, cautelosamente diante da teletela sempre à espreita, escrever um bilhete ao futuro incerto, ao nada. Na verdade, seria uma mensagem de desabafo, única alternativa em uma sociedade em que apenas o pensamento (de alguns, é claro) se encontrava livre. E assim assina: “Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento – saudações” (ORWELL, 2009, p. 40). As angústias do protagonista do romance serão, portanto, o fundamento desta análise. E mais: a assinatura de Smith, tomada como síntese da Oceânica, assumirá agora o papel principal.
Talvez seja aquela a frase, se não a mais importante, sem dúvida a mais filosófica do livro. Nela, todos os termos empregados guardam uma estreita relação entre si e remetem a teorias diversas. A figura do Grande Irmão se organiza em torno do conceito de normalidade, tal como o elemento metafórico do Panopticon, empregado por Foucault para representar a sociedade disciplinar, estrutura-se a partir da norma. Definindo-se o que é ou não normal, o que é ou não aceitável, cabe a ele vigiar perpetuamente aqueles sob seu poder e, com o auxílio do aparelho estatal desenvolvido para esta finalidade e com o saber surgido concomitantemente, corrigir, punir e, por fim, normalizar comportamentos desviantes. Nas sociedades disciplinares, o diferente se tornou sinônimo de perigoso; os anormais devem ser, portanto, perseguidos. O próprio conceito de sanidade mental é pensado a partir de relações de poder: “A sanidade mental era estatística. Tratava-se simplesmente de aprender a pensar como eles pensavam. Apenas...!” (ORWELL, 2009, p. 323).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 186-214.
ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.