INTRODUC?A?O
De incontesta?vel relevo para qualquer sistema processual minimamente via?vel, a coisa julgada e? intimamente ligada a? noc?a?o de Estado Democra?tico de Direito. Sobre o valor poli?tico-social do instituto da res iudicata e sobre sua necessidade para a consecuc?a?o da paz social na?o existem incertezas ou diverge?ncias. Ao lado do ato juri?dico perfeito e do direito adquirido, o postulado constitui um dos tripe?s de sustentac?a?o da seguranc?a juri?dica. Pela ordina?ria concepc?a?o do instituto, a noc?a?o de imutabilidade da determinac?a?o judicial o acompanha de forma bem pro?xima e seria natural que historicamente se sedimentasse a impressa?o de que a perenidade das deciso?es acobertadas por seu manto constituiria barreira intransponi?vel ao legislador, ao administrador e mesmo ao magistrado.
Todavia, com freque?ncia cada vez maior os tribunais do pai?s ve?m sendo provocados a analisar situac?o?es em que se discute a justic?a ou mesmo a constitucionalidade de deciso?es judiciais ja? transitadas em julgado e, na?o raras vezes, te?m reconhecido a necessidade de se afastar a intangibilidade da decisa?o anterior em abono a valores de mais alto escol. A esse movimento de desmistificac?a?o do dogma da coisa julgada convencionou-se denominar teoria da relativizac?a?o da coisa julgada.
Seria natural que essa verdadeira investida vanguardista contra um postulado historicamente aceito como inatingi?vel na?o foi abrac?ada, de pronto, pela massiva parte da doutrina (nem dos tribunais). A sugesta?o dos novos paradigmas despertou posic?o?es doutrina?rias dissonantes no trato da mate?ria, notadamente quando o operador do direito se via perante situac?o?es concretas em que a manutenc?a?o da forc?a cogente (intangibilidade) de deciso?es transitadas em julgado pareceria atentar com demasiada forc?a contra direitos e garantias fundamentais do indivi?duo, ou mesmo contra os valores sociais tambe?m protegidos dentro do mesmo corpo constitucional.
Nesse contexto, comec?aram a ser apresentadas diversas proposic?o?es relativas a? instrumentalizac?a?o do que foi sugerido como uma nova forma de controle de constitucionalidade, desde a ampliac?a?o das hipo?teses de admissibilidade da ac?a?o resciso?ria ate? o desenvolvimento de teorias que defendiam a inexiste?ncia juri?dica da coisa julgada que ferisse normas estabelecidas na Constituic?a?o.
Fato e? que a estreita ligac?a?o da res iudicata com o Estado Democra?tico de Direito ainda inspira grande resiste?ncia por parte da doutrina em admitir que mesmo em situac?o?es excepcionais a inflexibilidade do caso julgado deveria ceder a postulados de maior envergadura, como, por exemplo, a forc?a normativa da Constituic?a?o.
De fato, um dos enfoques da presente investigac?a?o e? avaliar se a flexibilizac?a?o da coisa julgada tem por reflexo mitigar o postulado da seguranc?a juri?dica ou, ao reverso, robustece?-la, porquanto inseguranc?a maior que o desfazimento do ato judicial em dissona?ncia com os preceitos constitucionais seria perpetua?-lo no tempo e erigi-lo a? condic?a?o de sacramento intangi?vel.
E? digno de lembranc?a que a moderna doutrina acerca da relativizac?a?o da coisa julgada tem como justificativa teleolo?gica o regular equili?brio do Princi?pio da Seguranc?a Juri?dica e do Princi?pio do Resultado Justo. Nesse sentido, devemo-nos atentar para a curial adverte?ncia de Dinamarco (2004, p. 243):
(...) nenhum princi?pio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional de acesso a? justic?a (entendida esta como obtenc?a?o de soluc?o?es justas – acesso a? ordem juri?dica justa). Como garantia-si?ntese do sistema, essa promessa e? um indispensa?vel ponto de partida para a correta compreensa?o global do conjunto de garantias constitucionais do processo civil. (...) os princi?pios existem para servir a? justic?a e ao homem, na?o para serem servidos como fetiches da ordem processual.
Ao longo do trabalho sera?o expostos os pontos fundamentais das posic?o?es favora?veis e desfavora?veis a? teoria da flexibilizac?a?o da coisa julgada e sera?o, tambe?m, apontadas suas eventuais inconsiste?ncias, de sorte a possibilitar que as concluso?es ao final sejam propostas com suporte em base argumentativa suficientemente convincente.
Vale realc?ar, diante dessa primeira contextualizac?a?o, que nenhuma pesquisa cienti?fica pode passar ao largo de uma perspectiva meramente pragma?tica, porquanto exige-se uma justificativa social. E? digno, portanto, o registro de que a nova ordem constitucional – que pode ser considerada uma clara evoluc?a?o frente a?s anteriores – garante ao cidada?o tanto o direito ao processo e pronunciamento judicial justos como a seguranc?a naturalmente decorrente de uma decisa?o oponi?vel contra todos, a qualquer tempo. Essa concepc?a?o se apresentou como parte da soluc?a?o para a atual crise de confianc?a das instituic?o?es, sobretudo do Poder Judicia?rio.
Por isso e? importante que qualquer estudo que venha a tangenciar a questa?o relativa a? imutabilidade da coisa julgada esteja guarnecido de razo?es muito fortes e sublinhe, com incontesta?vel proficie?ncia, os fundamentos teo?ricos para uma nova forma de compreender o princi?pio da seguranc?a juri?dica diante da tende?ncia que vem se manifestando na realidade jurisprudencial no sentido de se desconsiderar ou relativizar a coisa julgada.
DESMISTIFICANDO A COISA JULGADA
1. A DIFICULDADE NA CONCEITUAC?A?O DO INSTITUTO
Tendo em vista que o presente ensaio se dedica a averiguar a possibilidade ou mesmo a necessidade de mitificac?a?o de um instituto ta?o fortemente radicado na concepc?a?o juri?dica da seguranc?a das relac?o?es sociais, e preciso, antes de qualquer coisa, trac?armos algumas breves – pore?m imprescindi?veis – considerac?o?es sobre a noc?a?o de coisa julgada, seus diferentes aspectos, seu papel no ordenamento juri?dico e seus limites.
Na?o ha? diverge?ncia em doutrina sobre a necessidade poli?tico-social do instituto. A preservac?a?o da autoridade do sistema processual e a garantia da forc?a cogente das deciso?es prolatadas pelo Judicia?rio sa?o fatores de extrema releva?ncia para a persecuc?a?o do que o Estado de Direito estabeleceu como seguranc?a juri?dica.
O art. 5o, inciso XXXVI, da Constituic?a?o Federal de 1988, e? o u?nico dispositivo no ordenamento constitucional pa?trio em que a coisa julgada e? expressamente mencionada. Na literalidade do texto, “a lei na?o prejudicara? o direito adquirido, o ato juri?dico perfeito e a coisa julgada”. A cla?usula, de fato, na?o e? exclusiva nem recente na histo?ria das Constituic?o?es do Brasil, pois desde a Constituic?a?o de 1934, com excec?a?o da Carta de 1937, disposic?o?es semelhantes foram reproduzidas.
A legislac?a?o ordina?ria, por sua vez, na?o apenas fez menc?a?o ao instituto, mas deu um passo a? frente e apresentou um conceito. A Lei de Introduc?a?o ao Co?digo Civil - LICC, ao dispor no artigo 6o que “a lei em vigor tera? efeito imediato e geral, respeitados o ato juri?dico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”, estabeleceu no para?grafo terceiro do mesmo dispositivo que ela seria “a decisa?o judicial de que ja? na?o caiba recurso”.
O Co?digo de Processo Civil brasileiro, por sua vez, dispo?s em seu artigo 467 a coisa julgada como “a efica?cia que torna imuta?vel e indiscuti?vel a sentenc?a, na?o mais sujeita a recurso ordina?rio ou extraordina?rio”.
Como ja? se pode observar, a conceituac?a?o legal na?o parece ter adotado uma noc?a?o u?nica do instituto. De fato, a convenie?ncia de se fixar conceitos em sede legal – notadamente quando se trata de instituto de repercussa?o claramente constitucional – e? mate?ria deveras controversa. A respeito da questa?o, Rodolfo de Camargo Mancuso (2006, p. 114) registra o seguinte:
Na?o raro, as definic?o?es feitas pelo legislador acabam por trazer de per si mais dificuldades ao inte?rprete e aplicador, como se nota no art. 467 do CPC: toma a coisa julgada (material) em termos de efica?cia, quando Liebman, cuja doutrina e? invocada no item 10o da Exposic?a?o de Motivos, a viu como qualidade agregada aos efeitos do julgado; depois, diz o dispositivo que a coisa julgada adve?m de o julgado na?o ser mais recorri?vel, quando em verdade, ai? se trata da coisa julgada em sentido apenas formal, isto e?, como dizem Luiz Guilherme Marinoni e Se?rgio Cruz Arenhart, num senso apenas “endoprocessual, e se vincula a? impossibilidade de rediscutir o tema decidido dentro da relac?a?o juri?dica processual em que a sentenc?a foi prolatada (...) se por algum motivo na?o mais houver a possibilidade de interposic?a?o de recurso em relac?a?o a ela”.
O ponto de converge?ncia entre os conceitos trazidos pela legislac?a?o ao menos nos demonstram, com clareza, que o mi?nimo que se exige para o surgimento do feno?meno da res iudicata e? que as partes em liti?gio na?o mais disponham de recursos ha?beis para sua reforma, o que faz com que o pronunciamento do magistrado se revista das qualidades de imutabilidade e intangibilidade.
Na opinia?o da doutrina brasileira majorita?ria, inspirada nos ensinamentos de Enrico Tu?lio Liebman, a coisa julgada seria a imutabilidade do comando emergente de uma sentenc?a. De acordo com o autor, a imutabilidade da sentenc?a refere-se tanto a? sua existe?ncia formal quanto aos efeitos dela provenientes.
De toda sorte, o foco do presente ensaio na?o e? adentrar nos espinhosos meandros da impropriedade da conceituac?a?o legal do instituto. Por isso, como o faz a maior parte da doutrina, admitimos os conceitos da lei – por mais defeituosos sejam – e deles partiremos para o desenvolvimento do trabalho com a atenc?a?o voltada para discusso?es que, no presente momento, traduzem maior releva?ncia.
Feita essa observac?a?o, podemos seguir na ana?lise e caracterizac?a?o do instituto objeto do estudo.
2. A COISA JULGADA EM SEUS DIFERENTES ASPECTOS
Poucos institutos no direito processual apresentam uma diversidade ta?o ampla de concepc?o?es, modalidades e controve?rsias como ocorre com a coisa julgada.
Na pro?pria cie?ncia processual, a res iudicata possui caracterizac?o?es distintas, como, por exemplo, a separac?a?o que se concebeu entre coisa julgada formal e material.
A coisa julgada formal decorre da impossibilidade de novo julgamento pelas vias recursais ordina?rias e extraordina?rias, ou em raza?o de o julgado ter sido proferido pelo o?rga?o de mais alto grau de jurisdic?a?o, porque na?o aproveitado o prazo estabelecido pela lei para a interposic?a?o do recurso cabi?vel ou porque houve a desiste?ncia do recurso interposto, ou a ele a parte renunciou. E? a qualidade da decisa?o que, em um processo determinado, passou a ser imuta?vel pela na?o sujeic?a?o a qualquer espe?cie de recurso. Vale o registro de que o Co?digo de Processo Civil, em seu artigo 467, ja? mencionado, apresenta o conceito de coisa julgada formal, e na?o da coisa julgada material.
Por coisa julgada material entende-se a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentenc?a de me?rito. Esse qualificativo ultrapassa os limites do processo e atinge todas as pessoas. Na?o e? a imunizac?a?o da sentenc?a como ato processual, mas dos efeitos que ela projetou para fora do a?mbito processual, atingindo as pessoas em suas relac?o?es. A coisa julgada material traduz a indiscutibilidade do conteu?do da decisa?o proferida, seja naquele processo, seja em qualquer outro. Com ela, certifica-se o final do conflito levado a? considerac?a?o do Poder Judicia?rio.
Luiz Machado Guimara?es (1995, p. 10), invocando a doutrina de Chiovenda, assim se pronunciou sobre cada uma das modalidades:
Quanto a? coisa julgada em sentido formal, verifica-se a preclusa?o definitiva das questo?es propostas (ou proponi?veis) quando no processo se obteve uma sentenc?a na?o mais sujeita a impugnac?o?es. Sentenc?a passada em julgado (coisa julgada em sentido formal) e? como essa sentenc?a se denomina. (...) Quanto a? coisa julgada em sentido material: Preclusas todas as questo?es propostas ou proponi?veis, temos a coisa julgada, isto e?, a afirmac?a?o indiscuti?vel e obrigato?ria para os jui?zes de todos os futuros processos, de uma vontade concreta de lei, que reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes.
Nas reflexo?es trazidas ao longo do presente estudo, salvo quando houver expressa refere?ncia a? coisa julgada formal, estaremos nos referindo a? coisa julgada material, dado que, afinal de contas, e? nesta que reside a autoridade do comando judicial e e? sobre ela (principalmente) que se pretende fazer incidir os instrumentos de relativizac?a?o.
Pelo que ocorre com o problema da conceituac?a?o do instituto ja? se percebe que a coisa julgada continua susceti?vel a releituras e novos questionamentos, tanto na seara estritamente processual quanto fora dela. Abordaremos, em seguida, a coisa julgada sob diferentes aspectos: (i) como garantia constitucional, (ii) como fonte assecurato?ria de direitos e situac?o?es juri?dicas e (iii) como garantia processual.
A) COISA JULGADA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL
Apesar de a coisa julgada ser tema que se afeic?oa a?s questo?es eminentemente processuais, tendo em vista que agrega, com sua natureza processual, a qualidade de imutabilidade a? decisa?o merito?ria, o instituto foi positivado em sede constitucional (art. 5o, XXXVI) e, portanto, sem prejui?zo de ter a Constituic?a?o reservado a? lei ordina?ria federal a rege?ncia dos temas de direito processual civil e penal (art. 22, I) o trabalho de investigac?a?o e desmistificac?a?o do postulado absoluto da res iudicata deve inexoravelmente ser conduzido em estreita consona?ncia com o direito constitucional. Na?o nos podemos olvidar que, em certo grau, o instituto e? garantido constitucionalmente e, tambe?m, que todos os atos do poder pu?blico, incluindo-se os do Judicia?rio, devem se pautar na supremacia da Constituic?a?o.
Em abono a essa visa?o, Ivo Dantas, ao tratar da coisa julgada material em seu artigo intitulado Coisa julgada inconstitucional: declarac?a?o judicial de inexiste?ncia (NASCIMENTO, 2008, p. 242), faz a seguinte ressalva: “A coisa julgada material na?o e? instituto confinado ao direito processual. Ela tem acima de tudo o significado poli?tico-institucional de assegurar a firmeza das instituic?o?es juri?dicas, tanto que erigida em garantia constitucional”.
De fato, a decisa?o do constituinte em fazer constar expressamente do texto da Lei Maior a protec?a?o a? coisa julgada na?o se limita a uma questa?o de mero enquadramento topolo?gico do tema. Por essa circunsta?ncia se evidencia que uma das facetas de incide?ncia do instituto e? o de constituir garantia constitucionalmente erigida aos jurisdicionados, assegurando-lhes que determinada vantagem ou bem da vida, conferidos por decisa?o judicial de me?rito, sejam guarnecidos de mu?ltipla protec?a?o: (i) contra o legislador futuro, que ate? podera? editar norma em sentido contra?rio a? anterior, mas na?o pode impor que este novo ato venha a prejudicar as relac?o?es anteriormente consolidadas, seja restringindo, seja esvaziando a efica?cia da coisa julgada precedentemente operada; (ii) contra o o?rga?o jurisdicional a quem porventura novamente seja submetida a mesma controve?rsia antes decidida; (iii) contra o Administrador Pu?blico, cujas condutas ou atos normativos na?o podera?o infringir o que foi protegido pelo manto da res iudicata e, por fim, (iv) contra os pro?prios litigantes, dado que nos conflitos intersubjetivos a coisa julgada faz lei entre as partes (CPC, art. 472).
Essa grande releva?ncia do instituto no a?mbito constitucional deve-se aos chamados fundamentos so?cio-poli?ticos da res iudicata. Transcendendo o aspecto te?cnico-processual do postulado, por meio do qual age como um impeditivo ao novo pronunciamento sobre causas ja? decididas, a coisa julgada se legitima mais por razo?es de cunho meta-processual, de natureza social, como a busca pela pacificac?a?o dos conflitos e da estabilidade das deciso?es.
Se a lide na?o resolvida e? fator desestabilizante e desagregador da malha social, o presti?gio da func?a?o jurisdicional guarda relac?a?o de depende?ncia muito pro?xima com a res iudicata. Nessa mesma linha, Mancuso (2006, p. 117) esclarece que: “(...) para va?rios autores o fundamento poli?tico sobrepuja o juri?dico, como para Calmon de Passos, vendo ai? uma questa?o de poli?tica legislativa, podendo num determinado momento histo?rico prevalecer o valor justic?a ou o valor seguranc?a”.
Uma clara sinalizac?a?o de que os fundamentos poli?ticos da coisa julgada se sobrepo?em aos juri?dicos decorre da mera constatac?a?o de que, na pra?tica, existem casos em que ela simplesmente na?o ocorre, outros em que sua efica?cia e? condicionada, outros em que e? reduzida em seus limites (objetivos e subjetivos e, por fim, outros em que e? ampliada ou otimizada. Essa mutabilidade de resultados na?o poderia decorrer de outra constatac?a?o sena?o a de que a utilidade da coisa julgada varia de circunsta?ncia para circunsta?ncia. O legislador, in casu, legitima a discrepa?ncia no tratamento dos efeitos da decisa?o judicial porque se dignou tratar desigualmente as situac?o?es desiguais.
Esse tratamento circunstancial – quase casui?stico – amolda-se a? noc?a?o de que a verdade demonstrada nos autos e? relativa. A inarreda?vel procura pela verdade absoluta poderia postergar em demasiado a soluc?a?o definitiva da demanda, quando na?o eternizar os conflitos levados a jui?zo.
O fato de a coisa julgada estar prevista expressamente em dispositivo constitucional na?o significa que o constituinte a erigiu em cla?usula pe?trea. Ale?m de existirem inu?meras situac?o?es em que ela simplesmente na?o ocorre, a depender da natureza da relac?a?o juri?dica submetida a? apreciac?a?o judicial, existem mecanismos processuais legi?timos que se prestam a atacar a efica?cia de decisa?o transitada em julgado (e? o caso da resciso?ria, por exemplo), permitindo novo julgamento de me?rito sobre a causa.
A esse respeito, novamente Mancuso (2006, p. 119) observa com precisa?o:
A Constituic?a?o Federal, ao mencionar a coisa julgada numa tri?ade com o direito adquirido e o ato juri?dico perfeito (art. 5o, XXXVI), na?o a erigiu, pois, em cla?usula pe?trea, bastando ter presente, como antes lembrado, tantos casos que “na?o fazem” coisa julgada, e mesmo a possibilidade de resciso?ria para justamente afasta-la de uma decisa?o de me?rito, permitindo novo julgamento no iudicium rescissorium (CPC, art. 485). Limita-se, pois, a Constituic?a?o Federal, a preservar a chamada func?a?o negativa da coisa julgada, e assim mesmo em face de possi?veis investidas futuras do Estado- legislador, ate? porque, em relac?a?o ao Estado-juiz e? o Direito processual que giza os lindes da coisa julgada.
No mesmo racioci?nio, Tereza Arruda Alvim Wambier e Jose? Miguel Garcia Medina (2003, p. 171) lecionam:
Fala-se em protec?a?o constitucional da coisa julgada, mas e? importante observar-se que a Constituic?a?o Federal protege da incide?ncia da nova lei decisa?o que se tenha baseado em lei anterior e que, sob a e?gide desta, tenha transitado em julgado.
Por isso e? que se pode dizer que a protec?a?o a? coisa julgada e? uma das facetas do princi?pio da irretroatividade da lei. Esta protec?a?o na?o significa que a lei ordina?ria na?o possa estabelecer que, em determinadas hipo?teses, como na ac?a?o de alimentos ou no processo cautelar, a coisa julgada na?o ocorre. Na?o se deve, portanto, superestimar a protec?a?o constitucional a? coisa julgada, tendo-se sempre presente que o texto protege a situac?a?o concreta da decisa?o transitada em julgado contra a possibilidade de incide?ncia de nova lei. Na?o se trata de protec?a?o ao instituto da coisa julgada (em tese) de molde a torna?-lo intangi?vel, mas de resguardo de situac?o?es em que se operou a coisa julgada, da aplicabilidade da lei superveniente.
Francisco de Barros Dias (1998, p. 39), por sua vez, ressalta que:
(...) a coisa julgada esta? calcada na seguranc?a, estabilidade e certeza juri?dicas, quando ha? apenas violac?a?o de norma infraconstitucional, o que na?o se pode dizer, igualmente, com relac?a?o a uma norma constitucional violada. Ai?, esses princi?pios que fundamentam a coisa julgada na?o sa?o suficientes para mante?-la de forma definitiva, porque a lei maior e? que restou violada, comprometendo assim o berc?o de todo o sistema. (...) A sentenc?a que afronta um princi?pio constitucional deve ser tida como inexistente, por sua incoere?ncia com o ordenamento juri?dico vigente. 5. Ha? de ser entendida como de perplexidade a situac?a?o de um jurisdicionado que vai ao Judicia?rio e se depara com uma decisa?o contra?ria a? Constituic?a?o e na?o tem como remediar esse erro, o que leva o o?rga?o estatal a sofrer pesadas cri?ticas e ser, logicamente, incompreendido em sua real func?a?o. 6. Uma forma de se corrigir, o quanto antes, mesmo sem necessidade de reforma da lei ou da Constituic?a?o, essa suposta omissa?o instrumental, seria a jurisprude?ncia aceitar a ac?a?o resciso?ria com fundamento na inconstitucionalidade do julgado e sem prazo de decade?ncia, ou a forma mais pra?tica e eficaz da ac?a?o declarato?ria de inexiste?ncia da coisa julgada inconstitucional, a qual na?o encontra qualquer o?bice em nosso ordenamento juri?dico. Ao contra?rio, com o mesmo se compatibiliza e harmoniza.
Ha? quem duvide, inclusive, que a coisa julgada sequer possua a natureza de princi?pio de direito. Embora em nosso entendimento a seguranc?a juri?dica – que inquestionavelmente e? princi?pio, e um dos mais importantes do ordenamento – se manifesta principalmente por meio da coisa julgada, o que, a nosso ver, atribui ao instituto a mesma carga axiolo?gica e normativa dos demais princi?pios juri?dicos, e? pertinente que se registre a posic?a?o de Mancuso (2006, p. 122):
(...) ainda que a coisa julgada tenha assento no texto constitucional, parece- nos que nem por isso ela se torna uma cla?usula pe?trea (Cf, art. 60, §4o) nem mesmo se consubstancia num princi?pio propriamente dito, ate? porque causaria espe?cie um princi?pio que vem tantas vezes excepcionado, mitigado ou mesmo exclui?do em va?rios casos. Pedro da Silva Dinamarco observa que a menc?a?o a? coisa julgada, no art. 5o, XXXVI da CF “na?o chega a ser um princi?pio, na medida em que na?o atinge o direito processual como um todo. Mas certamente e? uma garantia constitucional, destinada a assegurar um bem maior: a paz social”.
B) COISA JULGADA COMO FONTE ASSECURATO?RIA DE DIREITOS E DE SITUAC?O?ES JURI?DICAS
No pertinente ao papel de fonte assecurato?ria de direitos desempenhado pela coisa julgada, observam-se duas func?o?es distintas: uma positiva, quando impo?e sua efica?cia e obrigatoriedade em face de outras relac?o?es ou situac?o?es juri?dicas, judicializadas ou na?o, e uma func?a?o negativa, operando num plano eminentemente processual, quando a coisa julgada surge como um pressuposto negativo, a ser observado pelo juiz do processo futuro. E? o que se conclui da leitura do artigo 471 do CPC, quando proi?be que os jui?zes decidam novamente as questo?es ja? decididas.
Tereza Arruda Alvim Wambier e Jose? Miguel Garcia Medina (2003, p. 20) dizem, com propriedade:
Alegada a existe?ncia de coisa julgada, cabe ao magistrado, exercendo seu poder-dever de abstenc?a?o, na?o apreciar o me?rito e extinguir o processo, proferindo sentenc?a processual, sem exercer qualquer jui?zo de valor acerca do conteu?do da sentenc?a.
Sobre a func?a?o positiva, os mesmos autores ensinam:
(...) o resultado final do processo de conhecimento normalmente atribui um bem juri?dico a algue?m. Define-se, assim, uma situac?a?o juri?dica, estabelecendo-se a sua titularidade, passando esta definic?a?o, por causa da coisa julgada material, a ser imuta?vel, razoavelmente esta?vel ou marcadamente duradoura. Este bem juri?dico e? abrangido pela categoria dos direitos subjetivos.
C) COISA JULGADA COMO CATEGORIA PROCESSUAL
A coisa julgada pode ser concebida como espe?cie do ge?nero preclusa?o. A noc?a?o de coisa julgada como resultado final do processo vem muito bem explicada na seguinte observac?a?o de Luiz Machado Guimara?es (1995, p. 24):
Como a ultrapassagem de uma etapa, ou como perda de uma faculdade, a ide?ia esta? i?nsita na de processo judicial. Compo?e-se este de uma se?rie de atividades (atos processuais) – do o?rga?o de jurisdic?a?o e de seus auxiliares, das partes e de terceiros – que se interligam pelo vi?nculo de procedimento, isto e?, pelo fato de que sa?o dispostos por lei, em seque?ncia coordenada, de forma que cada ato pressupo?es o antecedente e e?, por sua vez, pressuposto do subsequente. Ao longo do iter processual, em sua marcha para a sentenc?a definitiva, criam-se sucessivas situac?o?es, todas elas de efeito preclusivo que lhes assegura a estabilidade.
Na?o se deve confundir a finalidade da coisa julgada com a finalidade da preclusa?o. Sob seu aspecto processual, a res iudicata visa a garantir a estabilidade de uma relac?a?o juri?dica levada ao Judicia?rio, o que previne a perpetuac?a?o do liti?gio e das inseguranc?as juri?dicas, pois garante aos litigantes – independentemente do resultado do julgado – que a decisa?o final da demanda sera? definitiva e o comando nela contido devera? ser respeitado.
A preclusa?o, de outra sorte, tem amplitude mais restrita, que se verifica somente na realidade do processo em que ocorre. E? um expediente te?cnico levado a cabo pelo legislador para que se garanta uma seque?ncia ordenada e lo?gica de atos procedimentais, resguardando-se a economia e a boa-fe? processuais.
O sistema processual admite o fim do liti?gio, ou seja, o encerramento do conflito entre autor e re?u no momento em que surge a coisa julgada, o que ocorre independentemente da justic?a do resultado. De forma diversa, se se admitisse que os pronunciamentos judicia?rios de me?rito fossem modificados ou revogados a qualquer tempo ou insta?ncia, restaria comprometido o objetivo final do processo, como instrumento de pacificac?a?o social, dada a eternizac?a?o do liti?gio levado a jui?zo, que teria fim apenas pela desiste?ncia das partes ou quando pior, pelo manejo da autotutela.
Sintetiza com maestria Mancuso (2006, p. 150):
Presente o vigente CPC, parece-nos que os institutos da coisa julgada formal, material, preclusa?o e efica?cia preclusiva pan-processual esta?o sediados, respectivamente, nos artigos 467, 468, 473 e 474. A expressa?o coisa julgada, assim ordinariamente referida, acaba, pois, sendo... polisse?mica, bifurcada em material e formal, discriminada em seus limites – objetivos e subjetivos – particularizada em seu grau de efica?cia, que ora se restringe a?s partes, na jurisdic?a?o singular, ora se expande em variada intensidade (erga omnes, ultra partes), na jurisdic?a?o coletiva.
Os conceitos que a legislac?a?o nos traz ao menos nos demonstram claramente que ocorre o tra?nsito em julgado da decisa?o judicial quando as partes em liti?gio judicial na?o mais dispo?em de recurso ha?bil para sua reforma, o que faz com que o pronunciamento do magistrado se revista das qualidades de imutabilidade e intangibilidade.
Parece induvidoso, de todo modo, que a coisa julgada material apresenta um nu?cleo, consistente no bino?mio indiscutibilidade – imutabilidade, o qual de per si ja? revela a noc?a?o de acertamento definitivo das demandas judicializadas, assim contribuindo para a seguranc?a juri?dica e para a paz social.
Na proficiente observac?a?o de Eduardo Cambi (2003, p. 74):
O valor da seguranc?a juri?dica, consubstanciado no instituto da coisa julgada material, na?o pode ser visto como absoluto, devendo ser compatibilizado com os outros valores, ta?o ou mais importantes para a sobrevive?ncia do Estado Democra?tico de Direito, como a justic?a das deciso?es, a cidadania, a repu?blica e dignidade da pessoa humana.
Como se observa, o grande problema dessa carga eficacial substantiva e? que o instituto, ao conferir de estabilidade/imunidade um julgamento de me?rito, pode eventualmente provocar a eternizac?a?o de situac?o?es injustas, decorrente ou de uma decisa?o teratolo?gica sob o ponto de vista dos textos de rege?ncia, ou verdadeiramente alheia ao conjunto probato?rio colhido nos autos, ou em manifesta afronta ao bino?mio racionalidade-proporcionalidade, ou, quic?a?, atentato?ria a? moralidade administrativa. A despeito de se poder dizer que esses defeitos sejam atribui?veis aos efeitos do julgado, e? sob o manto da coisa julgada que se protegem de qualquer investida no sentido de extirpa?-los da realidade juri?dica eventualmente verificada. E? nesse contexto que se constroem as bases da teoria da relativizac?a?o da coisa julgada, posteriormente amadurecida sob perspectiva constitucional de controle dos atos do judicia?rio, as quais passaremos a analisar no capi?tulo seguinte.