SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DA COISA JULGADA
Pelo estudo desenvolvido no primeiro capi?tulo do trabalho acredita-se ja? termos sedimentado a ideia de que a doutrina e? uni?ssona quanto a? necessidade da coisa julgada para a consecuc?a?o de um Estado Democra?tico de Direito, tanto sob o ponto de vista poli?tico-social, quanto dos pontos de vista processual, procedimental e constitucional. O problema surge quando se levanta a questa?o relativa a? possibilidade de se relativizar a coisa julgada em abono a? forc?a normativa da Constituic?a?o, nas situac?o?es na?o previstas como suceda?neo de ac?a?o resciso?ria ou, mesmo nesses casos, quando o prazo de dois anos imposto pelo normativo processual ja? se esvaiu. Apresentar uma soluc?a?o via?vel ao problema e? o desafio dos que defendem e desenvolvem a teoria da relativizac?a?o da coisa julgada inconstitucional.
1. INTRODUC?A?O A? TEORIA DA RELATIVIZAC?A?O DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
A respeito da expressa?o eleita para identificar esse movimento de vanguarda, “coisa julgada inconstitucional”, na?o sa?o raras as cri?ticas que seu uso recebe. Barbosa Moreira, por exemplo, observa em seu estudo Considerac?o?es sobre a chamada “relativizac?a?o da Coisa Julgada material” (DIDIER, 2008, p. 235), com a habitual proficie?ncia, que a incompatibilidade com a constituic?a?o diz respeito a? decisa?o judicial em si considerada, e na?o a? res iudicata. Quanto ao termo “relativizac?a?o”, o ilustre doutrinador registra sua discorda?ncia tendo em vista que quando se afirma que algo deve ser “relativizado”, logicamente se da? a entender que se esta? em contraposic?a?o com algo absoluto, o que vem de frontal encontro a todo o arcabouc?o argumentativo que fundamenta a teoria.
Ainda sobre a questa?o da nomenclatura utilizada para se identificar a tese, merece registro o entendimento de Alexandre Freitas Ca?mara (DIDIER, 2008, p. 29), para quem seria melhor se a doutrina se utilizasse da expressa?o sentenc?a inconstitucional transitada em julgado:
Trata-se, em outros termos, de reconhecer o feno?meno que em doutrina tem sido chamado de “coisa julgada inconstitucional”, mas que mais bem se chamaria sentenc?a inconstitucional transitada em julgado. A rigor, o que contraria a Constituic?a?o na?o e? a coisa julgada, mas o conteu?do da sentenc?a. Essa sentenc?a inconstitucional, alia?s, ja? contrariava a Lei Maior antes de transitar em julgado. E? a sentenc?a, pois, e na?o a coisa julgada, que pode ser inconstitucional.
A despeito da simplicidade e clareza do argumento lanc?ado pelo autor, acreditamos que na?o haveria razo?es para criticarmos a nomenclatura proposta caso toma?ssemos o instituto pela conceituac?a?o trazida no art. 6o da Lei de Introduc?a?o ao Co?digo Civil (por menos conveniente isso fosse), segundo a qual “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisa?o judicial de que ja? na?o caiba recurso”.
No entanto, sem detrimento das cri?ticas a? nomenclatura utilizada, e? assente que seus termos ja? se encontram consolidados na doutrina processualista e o presente estudo na?o tem como preocupac?a?o maior apresentar nem defender esta ou aquela denominac?a?o, mas investigar os meandros juri?dicos que envolvem a teoria em si mesma considerada.
2. A INTANGIBILIDADE DA COISA JULGADA COMO IMPEDITIVO A? SUA FLEXIBILIZAC?A?O: A VERIFICAC?A?O DO FENO?MENO DA INCONSTITUCIONALIDADE.
Sem nenhum prejui?zo da releva?ncia da coisa julgada na persecuc?a?o da estabilidade social, a doutrina que se alia a? tese da mitigac?a?o da res iudicata argumenta que na?o se deve atribuir ao instituto uma perenidade absoluta, transcendental. A respeito do tema, Humberto Theodoro Ju?nior e Juliana Cordeiro de Faria (2003, p. 142) registram:
A inferioridade hiera?rquica do princi?pio da intangibilidade da coisa julgada, que e? uma noc?a?o processual e na?o constitucional, traz como consecta?rio a ide?ia de sua submissa?o ao princi?pio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusa?o: a coisa julgada sera? intangi?vel enquanto tal apenas quando conforme a Constituic?a?o. Se desconforme, estar-se-a? diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional.
A ti?tulo de contextualizac?a?o, podemos afirmar que a coisa julgada padece de inconstitucionalidade quando, na situac?a?o concreta, se verifica que uma sentenc?a transitada em julgado (i) foi prolatada com base em interpretac?a?o ou aplicac?a?o de lei tida pelo Supremo Tribunal Federal como incompati?vel com a Constituic?a?o ou, ao contra?rio, (ii) quando o magistrado afasta a aplicac?a?o de determinada norma por considera?-la incompati?vel com a Constituic?a?o, a despeito de a Suprema Corte te?-la declarado va?lida.
Em ambos os casos a coisa julgada que se forma na situac?a?o levada a jui?zo tem feic?a?o de inconstitucionalidade. O que muda entre uma e outra situac?a?o e? apenas a forma de caracterizac?a?o do feno?meno, que seria direta no primeiro caso e indireta no segundo.
No primeiro caso a inconstitucionalidade e? direta porque o o?rga?o julgador reconhece a validade e efica?cia de norma que o Supremo Tribunal Federal na?o o faz. Na outra hipo?tese, a inconstitucionalidade e? indireta, pois o juiz, supondo determinada regra inconstitucional, afasta sua aplicac?a?o no caso concreto, muito embora a Corte Suprema a tenha livrado do atributo.
Humberto Theodoro Ju?nior (2003, p. 157), no entanto, entende que a inconstitucionalidade indireta ao corpo da Carta Poli?tica na verdade na?o seria inconstitucionalidade, mas lesa?o direta a? lei. Observe-se:
As duas situac?o?es cotejadas, pore?m, na?o sa?o iguais. Quando um julgado aplica lei inconstitucional, a ofensa e? cometida diretamente contra a Constituic?a?o. A lei aplicada, sendo absolutamente nula, contamina de igual inefica?cia tambe?m a sentenc?a que lhe pretendem reconhecer validade. No caso, pore?m, de na?o aplicac?a?o da lei ordina?ria, por alegado motivo de ordem constitucional que mais tarde vem a ser afastado por mudanc?a de orientac?a?o jurisprudencial, a ofensa que poderia ser divisada na?o e? a? Constituic?a?o, mas sim a? lei ordina?ria a que a sentenc?a na?o reconheceu efica?cia. Na?o se pode, data venia, dizer que, na na?o aplicac?a?o da norma infra-constitucional, se tenha configurado uma negativa de vige?ncia de norma constitucional, para declarar-se a pro?pria sentenc?a como inconstitucional e, ipso facto, nula.
Com o devido respeito a? opinia?o do mestre processualista, compreendemos haver sim, no segundo caso, uma forma de inconstitucionalidade, verifica?vel de maneira indireta – que na?o se confunde ao que o se convencionou chamar de violac?a?o reflexa a? Constituic?a?o – ou seja, ainda que a decisa?o proferida tenha deixado de aplicar lei constitucional, se na?o o fez sob a justificativa de te?-la considerado inconstitucional, padecera?, necessariamente, de inconstitucionalidade.
Entre essa decisa?o (lesa?o indireta) e que atribui efica?cia a? lei inconstitucional (lesa?o direta) na?o ha? nenhuma diferenc?a no que tange aos seus perniciosos efeitos a? forc?a normativa da Constituic?a?o. Na verdade, o indevido afastamento de norma va?lida, constitucional, ale?m de afrontar a supremacia do Texto Maior, fere o princi?pio da harmonia entre os poderes, pois neste caso o juiz atua como legislador negativo, subtraindo da relac?a?o juri?dica que lhe foi submetida a efica?cia e a validade de norma plena em seus efeitos.
A discussa?o e? de elementar importa?ncia, pois, como na?o poderia deixar de ser, a teoria da relativizac?a?o da coisa julgada inconstitucional so? autoriza a prolac?a?o de nova decisa?o contra a que padece de vi?cio de inconstitucionalidade. Do contra?rio, se admitirmos que a na?o aplicac?a?o de lei declarada constitucional pela Suprema Corte na?o implica em inconstitucionalidade, restaria somente o estreito caminho da ac?a?o resciso?ria para restaurar a forc?a normativa da Constituic?a?o, o que, numa primeira vista, na?o parece se adequar ao rol de situac?o?es previsto no art. 485 do Co?digo de Processo Civil.
3. A TUTELA DO INSTITUTO, A CONSTITUCIONALIDAE E A JUSTIC?A
Na?o e? demais registrarmos que a teoria da coisa julgada inconstitucional na?o se insurge contra a injustic?a das deciso?es judiciais. A concepc?a?o filoso?fica da justic?a no caso concreto e? mais adequadamente estudada por outros ramos do direito. Na?o pelo direito processual civil e pelo direito constitucional. De fato, longe de se dizer que o justo e o injusto sejam despreocupac?o?es do processualista e do constitucionalista. A questa?o e? que ambos partem do pressuposto de que a justeza das deciso?es e? presumida sempre que se observa o conteu?do normativo do arcabouc?o constitucional vigente.
Registra Mancuso (2006, p. 132), com bastante adequac?a?o, que:
Embora seja verdadeiro que o Direito tende a? consecuc?a?o do justo (Jus est constans et perpetua voluntas jus suum quique tribuere) e ainda hoje mais e mais se fala no acesso a? ordem juri?dica justa, fato e? que entre esse valor e o da seguranc?a, o instituto da coisa julgada prioriza este u?ltimo, ja? que, atrave?s dela, busca-se imunizar o julgado de me?rito contra investidas futuras, tanto da parte vencida como do pro?prio legislador (CF, art. 5o, XXXVI). O ora afirmado e? facilmente percepti?vel, tanto pela singela constatac?a?o de que transitam em julgado assim as deciso?es de me?rito justas como as injustas, sem falar que a injustic?a do julgado na?o e? fundamento de ac?a?o resciso?ria (CPC, art. 485 e incisos).
Nesse sentido, anota Donaldo Armelin: “A seguranc?a, como elemento garantidor da consiste?ncia do tecido social, tem preponderado sobre aquele [o valor justic?a], considerando-se tal universo. Nem isso poderia deixar de ser, considerando-se que a estabilidade das deciso?es judiciais cimenta as relac?o?es sociais, como um vetor de tranquillidade para a sociedade, propiciando-lhe a eliminac?a?o definitiva dos liti?gios que a perturbam. A tende?ncia, pois, nos ordenamentos juri?dicos e? privilegiar a seguranc?a juri?dica, ainda que (...) esteja ela em uma escala subalterna relativamente a? Justic?a”.
Pois bem. Antes de avanc?armos no estudo relativo a? flexibilizac?a?o da res iudicata, devemos investigar se a sua previsa?o no corpo constitucional, em Ti?tulo reservado aos “direitos e garantias fundamentais”, tem o conda?o de lhe conferir o status de postulado sagrado, como ordinariamente se costumava fazer.
4. A PROTEC?A?O CONSTITUCIONAL CONTRA A ATIVIDADE LEGISLATIVA
Como ja? frisado anteriormente, a Constituic?a?o Federal de 1988 traz previsa?o expressa a? protec?a?o da coisa julgada quando reza no art. 5o, inciso XXXVI, que “a lei na?o prejudicara? o direito adquirido, o ato juri?dico perfeito e a coisa julgada”. O alcance do dispositivo na?o e? questa?o paci?fica na doutrina. Enquanto parcela dos processualistas (e dos constitucionalistas) considera que a protec?a?o constitucional incide somente contra a atividade do legislador ordina?rio, outra parte defende que o instituto proi?be tambe?m a atividade do pro?prio julgador no controle da constitucionalidade, ou seja, ainda que haja frontal lesa?o a norma constitucional, esta deveria se curvar a? efica?cia soberana e incontesta?vel do instituto.
Humberto Theodoro Jr. e Juliana de Faria (2003, p. 13),observam o seguinte:
[...], a preocupac?a?o do legislador constituinte foi apenas a de po?r a coisa julgada a salvo dos efeitos de lei nova que contemplasse regra diversa de nomatizac?a?o da relac?a?o juri?dica objeto de decisa?o judicial na?o mais sujeita a recurso, como a garantia dos jurisdicionados. Trata-se, pois, de tema de direito intertemporal em que se consagra o princi?pio da irretroatividade da lei nova.
E acrescentam, em nota de rodape? (THEODORO JR., 2003, p. 13):
A Constituic?a?o [...] protegeu a coisa julgada apenas do efeito retroativo da lei nova. Quem a conceituou e quem lhe conferiu, entre no?s, a imutabilidade e indiscutibilidade foi a lei ordina?ria. Nem se argumente com a teoria dos conceitos denotativos e conotativos para dizer que o ato de contemplar a Constituic?a?o Federal a figura da coisa julgada estaria nisso impli?cito o seu cara?ter natural de imutabilidade. Ora, o argumento prova demais ja? que se tivesse a Constituic?a?o o intuito de agasalhar o princi?pio da imutabilidade em toda a sua extensa?o, teria ela mesma que regular as hipo?teses excepcionais de rescisa?o e, ai?, o Co?digo de Processo Civil, ao cuidar de eliminar os casos de Ac?a?o Resciso?ria, estaria invadindo a a?rea de compete?ncia do legislador constituinte, pois estaria diminuindo, na pra?tica, uma garantia da Lei Maior. No entanto, o que se ve? e? que a Constituic?a?o apenas se refere a? compete?ncia de Tribunais para processar a resciso?ria. Assim, o que se pode deduzir e? que nem para a Constituic?a?o Federal nem para a lei processual comum a imutabilidade da coisa julgada e? absoluta. Simples lei infra- constitucional tem, pois, em nosso sistema juri?dico, o poder de definir quando a coisa julgada e? imuta?vel e quando e? rescindi?vel (vale dizer, na?o imuta?vel). Dentro desta visa?o, o que sobressai e? simplesmente a forc?a da res iudicata para impedir que a sentenc?a seja alterada por simples recurso.
Jose? Augusto Delgado (2009, p. 5) alia-se ao racioci?nio e preleciona com sua habitual maestria:
A Carta Magna, em seu art. 5o, inciso XXXVI, estabelece que “a lei na?o prejudicara? o direito adquirido, o ato juri?dico perfeito e a coisa julgada”. E? uma mensagem de carga indicativa no sentido de que a lei, em sua expressa?o maior, na?o ha?, ao entrar no mundo juri?dico, de produzir efica?cia, em nenhuma hipo?tese, que leve a causar qualquer diminuic?a?o aos limites da sentenc?a transitada em julgado.
O tratamento dado pela Carta Maior a? coisa julgada na?o tem o alcance que muitos inte?rpretes lhe da?o. A respeito, filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter sido vontade do legislador constituinte, apenas, configurar o limite posto no art. 5o, XXXVI, da CF, impedindo que a lei prejudique acoisa julgada.
[...].
O que a Carta Poli?tica inadmite e? a retroatividade da lei para influir na soluc?a?o dada, a caso concreto, por sentenc?a de que ja? na?o caiba recurso.
Se e? verdade que a protec?a?o constitucional se aplica ao legislador, por outro lado, ainda assim a celeuma na?o se torna mais simples. A aplicac?a?o da lei no tempo sempre foi um dos temas mais controvertidos no a?mbito do Direito Processual. Se a efetivac?a?o das inovac?o?es legislativas nas relac?o?es juri?dicas ja? estabelecidas frequentemente suscita pole?micas, isso ocorre com maior intensidade quando, em situac?o?es albergadas pelo manto da coisa julgada, tentamos conciliar a possibilidade de correc?a?o de injustic?as com o postulado da seguranc?a juri?dica.
PONTES DE MIRANDA (1960, p. 12), que pondera na?o ser legi?timo eternizar injustic?as a pretexto de evitar a eternizac?a?o de incertezas. E adverte, catego?rico:
(...) levou-se muito longe a noc?a?o de res judicata, chegando-se ao absurdo de quere?-la capaz de criar uma outra realidade, fazer de albo nigrum e mudar falsum in verum.
De maneira oposta, Donaldo Armelin (2004, p. 160) registra sua ideia da seguinte maneira:
Ainda que o texto constitucional apenas se reporte a? lei, a intangibilidade da coisa julgada existe e se impo?e relativamente a todos os aplicadores do direito, o que inclui, inexoravelmente, o Judicia?rio. Deveras, se a lei, constitucionalmente, e? a u?nica forma de imposic?a?o de conduta positiva ou negativa, na?o haveria como qualquer ato que na?o se revestisse de sua natureza, inclusive uma decisa?o judicial, afrontar essa imutabilidade em raza?o de uma redac?a?o do texto constitucional que enseje uma interpretac?a?o restritiva dessa vedac?a?o. Alia?s, sendo a coisa julgada material um feno?meno de natureza eminentemente processual, seria impensa?vel pudesse ela deixar de ser observada nesse mesmo plano, negando-se sua finalidade. [...].
Pela leitura de que a protec?a?o constitucional no dispositivo incide contra o legislador pode-se dizer, e aqui na?o ha? disco?rdias, que se a parte ja? incorporou ao seu patrimo?nio juri?dico determinado direito, nos termos da legislac?a?o enta?o vigente, se implementou relac?a?o juri?dica com outra pessoa nos exatos moldes da regulamentac?a?o legislativa incidente a? e?poca ou se o Judicia?rio decidiu determinada lide sob o pa?lio do arcabouc?o legislativo que se efetivamente deveria observar, mesmo assim o legislador pode editar norma em sentido contra?rio. O que na?o pode ocorrer e? esse novo ato prejudicar as relac?o?es anteriormente consolidadas.
Barbosa Moreira (in DIDIER, 2008, p. 235), por sua vez, registra posic?a?o contra?ria a? flexibilizac?a?o do dogma:
Salta aos olhos, desde logo, a colocac?a?o do dispositivo, no Capi?tulo I (Dos direitos e garantias individuais e coletivos) do Ti?tulo I (Dos direitos e garantias fundamentais). Importa identificar os destinata?rios e o objeto da garantia do art. 5o, XXXVI, fine. Destinata?rios da garantia sa?o naturalmente, em primeiro lugar, as partes do processo em que se formou a coisa julgada, e os terceiros eventualmente sujeitos a ela. Mas na?o so? esses: a garantia na?o e? apenas individual, sena?o tambe?m coletiva.
Protege-se igualmente a coletividade. Segundo ja? se registrou [...], esta igualmente tem interesse na regularidade do funcionamento da ma?quina judicia?ria (rectius: do aparelho estatal in genere). Tal regularidade engloba, entre outros itens, a estabilidade das deciso?es nos precisos termos da legislac?a?o processual.
No mesmo sentido, Alexandre Ca?mara (in DIDIER, 2008, p. 29) diz:
Este dispositivo na?o tem, a meu sentir, o alcance limitado que a ele se vem atribuindo. Ao afirmar a Constituic?a?o que “a lei na?o prejudicara? o direito adquirido, o ato juri?dico perfeito e a coisa julgada”, na?o se esta? apenas assegurando o princi?pio da irretroatividade das leis. Sustentar isto implica, a meu ver, ler a Constituic?a?o a? luz da Lei de Introduc?a?o ao Co?digo Civil, cujo art. 6o estabelece que ‘a lei em vigor tera? efeito imediato e geral, respeitados o direito adquirido, o ato juri?dico perfeito e a coisa julgada’. Ora, na?o se deve ler a Constituic?a?o a? luz da norma infraconstitucional, mas exatamente o contra?rio!
No entanto, a nosso ver, na?o existem argumentos convincentes o suficiente para refutar a ideia de que o art. 5o, XXXVI, da Constituic?a?o Federal estabelece apenas uma garantia contra o legislador. E isso na?o decorre de ana?lise de dispositivo da Lei de Introduc?a?o ao Co?digo Civil, como sugere Alexandre Ca?mara, mas a partir do pro?prio texto Constitucional, que o diz de maneira bem clara.
Da mesma forma, a posic?a?o topolo?gica do dispositivo tambe?m na?o desabona a interpretac?a?o segundo a qual a garantia foi erigida em face da atividade legislativa, pois ainda assim estari?amos diante de garantia constitucional.
Desta feita, a intelige?ncia do dispositivo constitucional no qual ordinariamente se inspira parcela da doutrina para justificar a sacralidade da coisa julgada na?o e? suficiente para tanto. Isso na?o significa, por o?bvio, que na opinia?o da outra parte dos processualistas a coisa julgada esteja ao desamparo de protec?a?o constitucional. E? que a despeito de a Constituic?a?o Federal proteger expressamente a coisa julgada apenas da atividade legislativa, outras disposic?o?es constitucionais a albergam, quando se referem ao Estado Democra?tico de Direito e a? seguranc?a juri?dica.
Questa?o e? que na?o se pode admitir um ato estatal, como e? a sentenc?a judicial, possa ser expedido e possa produzir regulares efeitos ao descompasso do Texto Maior. A validade de todos os atos do Poder pu?blico esta? condicionada ao seu pre?vio amoldamento a?s premissas constitucionalmente fixadas.
Jose? Augusto Delgado (2009, p. 62), com a lucidez que lhe e? caracteri?stica, diz:
A injustic?a, a imoralidade, o ataque a? Constituic?a?o, a transformac?a?o da realidade das coisas quando presentes na sentenc?a viciam a vontade jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em e?poca alguma, ela transita em julgado. Os valores absolutos da legalidade, moralidade e justic?a esta?o acima do valor seguranc?a juri?dica. Aqueles sa?o pilares, entre outros, que sustentam o regime democra?tico, de natureza constitucional, enquanto esse e? valor infraconstitucional oriundo de regramento processual [...] Cresce a preocupac?a?o da doutrina com a instaurac?a?o da coisa julgada decorrente de sentenc?as injustas, violadoras da moralidade, da legalidade e dos princi?pios constitucionais [...] Nunca tera?o forc?a de coisa julgada e que podera?o, a qualquer tempo, ser desconstitui?das, porque praticam agressa?o ao regime democra?tico no seu a?mago mais consistente que e? a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito a? Constituic?a?o e da entrega da justic?a.
Na mesma linha, Ca?ndido Rangel Dinamarco (2003, p. 62) registra:
A irrecorribilidade de uma sentenc?a na?o apaga a inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais poli?tica ou socialmente ilegi?timos, que a Constituic?a?o repudia. Dai? a propriedade e a legitimidade sistema?tica da locuc?a?o, aparentemente paradoxal, coisa julgada inconstitucional.
A coisa julgada na?o pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transforma?-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a pro?pria Constituic?a?o. Se a lei na?o e? imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?
O interessante e? que, em se tratando de ato, estatal ou privado, lesivo a preceitos constitucionais, parece-nos que somente contra a flexibilizac?a?o da coisa julgada se levantam empecilhos. A anulac?a?o de um ato juri?dico indigitado perfeito ou de um direito supostamente adquirido, porquanto hipoteticamente produzidos ao descompasso com o texto Constitucional, na?o soa a essa mesma parcela da doutrina uma heresia ta?o grande, ainda que o mesmo dispositivo constitucional se dedique a tutelar de forma rigorosamente ide?ntica, e de uma so? vez, os tre?s institutos.
Donaldo Armelin (2004, p. 28) registra que o direito adquirido e o ato juri?dico perfeito na?o esta?o protegidos pela Constituic?a?o quando externados ao arrepio de dispositivo de lei, mas isso na?o ocorre com a coisa julgada, que poderia ser formada mesmo contra legem.
De fato, a observac?a?o procede sob o ponto de vista pragma?tico, mas ale?m de na?o podermos tratar a excec?a?o como regra, o que no caso implicaria atentarmos contra a pro?pria noc?a?o de Estado de Direito, na?o e? a garantia constitucional que cria essa distinc?a?o. Pela redac?a?o do inciso XXXVI do art. 5o o ato juri?dico perfeito e o direito adquirido tambe?m poderiam se formar contra legem. A protec?a?o constitucional veda, na verdade, que o contra?rio ocorra.
Tambe?m do poder Judicia?rio podem emanar atos deciso?rios que atentam contra a Constituic?a?o Federal. Dessa realidade os mecanismos de controle de constitucionalidade parecem na?o cuidar. E? o que resume Paulo Otero, em refere?ncia de Humberto Theodoro Jr. E Juliana de Faria (2003, p. 114):
Como sucede com outros o?rga?os do poder pu?blico, tambe?m os tribunais podem desenvolver uma actividade geradora de situac?o?es patolo?gicas, proferindo deciso?es que na?o executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteu?do va? ao ponto de violar a Constituic?a?o.
Araken de Assis (in DIDIER, 2008, p. 66), por sua vez, leciona que “a? semelhanc?a de qualquer outro ato juri?dico, os provimentos do juiz exigem exame nos planos da existe?ncia, da validade e da efica?cia. Desta sorte na?o escapa o pronunciamento transitado em julgado”.
Seria um ni?tido contrasenso a ideia de que os atos da Administrac?a?o Pu?blica ou mesmo os do Legislativo pudessem a qualquer tempo ser questionados sob o ponto de vista da constitucionalidade e, de outra sorte, as deciso?es judiciais se perpetuassem no tempo – como se tratasse de um ato magno divino – mesmo quando diametralmente opostas a preceitos constitucionais de inafasta?vel observa?ncia.
Ora, parece-nos absurdo que, diante de um conflito entre uma decisa?o transitada em julgado e uma norma constitucional, esta u?ltima deva se flexibilizar. Se a decisa?o inconstitucional transitada em julgado na?o pode se curvar a? norma constitucional, pois a coisa julgada e? constitucionalmente protegida, por qual raza?o aquela norma violada deveria faze?-lo?
A respeito da natureza juri?dica e do significado poli?tico-social do ato judicia?rio, Calmon de Passos (2009, p. 8) ensina com maestria:
O imperativo do princi?pio da legalidade e o postulado, essencial a? democracia, de que na?o ha? senhores nem su?ditos, todos iguais e submetidos a? u?nica vontade soberana e constitucionalmente formalizada (a lei em sentido lato) impo?e a impugnabilidade e o controle de toda e qualquer decisa?o de todo e qualquer agente do Poder. Decidir sem possibilidades de controle e? decidir de forma incompati?vel com o sistema democra?tico. O magistrado nem e? um soberano, nem um Deus, sim um servidor. [...]. Se fosse possi?vel decidir de forma soberana, porque insusceti?vel de controle, a decisa?o, soberana seria a da autoridade, na?o a da lei, na?o a do povo presente e atuando por suas instituic?o?es constitucionalmente consagradas. [...]. Num sistema democra?tico, deveri?amos todos, quotidianamente repetir, como uma espe?cie de jaculato?ria ci?vica, que nada autoriza ver-se o magistrado como um homem diferente de todos os demais homens, mais sa?bio, mais puro, mais justo, mais informado, mais aparelhado, mais corajoso e mais isento. Por enquanto ainda na?o ha? um laborato?rio de que saiam, como produto, homens perfeitos. Dai? terem os magistrados o mesmo estofo de que sa?o feitos os legisladores e os administradores, os civis e os militares, os leigos e os cle?rigos, para ficarmos so? nesses integrantes do espectro social.
5. O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E A HARMONIA ENTRE OS PODERES CONSTITUI?DOS
E? de se ponderar: se a lei e o ato administrativo esta?o sujeitos ao controle de constitucionalidade, por que na?o estaria a coisa julgada? Nesse sentido, a coisa julgada deve ser compreendida em atenc?a?o aos novos paradigmas constitucionais, buscando com elas um equili?brio, no escopo da produc?a?o de resultados justos mediante as atividades inerentes ao processo civil.
Ademais, pelo princi?pio da separac?a?o dos poderes os provimentos jurisdicionais na?o podem – ou na?o devem – ter tratamento privilegiado do ordenamento juri?dico pa?trio, dado que a Constituic?a?o Federal prescreve, em seu art. 2o, que os poderes sa?o independentes e harmo?nicos entre si. Entendimento em contra?rio acabaria por menoscabar a pro?pria forc?a normativa da Constituic?a?o. Sobre o tema, o Ministro Carlos Britto (2003, p. 122) leciona o seguinte:
Reconhec?amos, enta?o, que o Magno Texto so? e? realmente magno por cumprir esse papel de dizer o que seja, ou o que na?o seja, uma norma de aplicac?a?o dele pro?prio. O que pertence, ou o que na?o pertence, ao Ordenamento Juri?dico por ele inaugurado. Quais sejam, ou na?o sejam, os atos de juri?dica manifestac?a?o das tre?s func?o?es ba?sicas do Estado por ele institui?das: a func?a?o legislativa, a func?a?o executiva e a func?a?o jurisdicional. Pois somente assim e? que uma Constituic?a?o tem a forc?a de ditar o seu pro?prio regime juri?dico. Tem a condic?a?o material objetiva de se autoqualificar ou se autonominar como Constituic?a?o.
Fredie Didier Jr. (2006, p. 6), por outro lado, opina da seguinte maneira:
[...] a decisa?o jurisdicional e? a u?nica apta a ficar imune pela coisa julgada; ou seja, a decisa?o judicial e? o u?nico ato de poder que pode ser definitivo. [...]. A lei, o ato administrativo e o nego?cio juri?dico podem ser revistos pelo Poder Judicia?rio. Os atos jurisdicionais, pore?m, so? podem ser revistos pelo pro?prio Poder Judicia?rio, por meio de recursos ou outra forma de impugnac?a?o.
[...] Essa qualidade especi?fica (coisa julgada) justifica-se no fato de a decisa?o jurisdicional ter de ser a u?ltima, aquela que prescreve a soluc?a?o normativa para o caso concreto, evitando a perpetuac?a?o da inseguranc?a juri?dica. Era preciso que algue?m desse a u?ltima palavra sobre o liti?gio. Ora o rei ora o sacerdote dava a u?ltima palavra sobre o liti?gio. Atualmente, ha? o?rga?os especi?ficos com essa func?a?o.
Acreditamos que a tende?ncia que se tem verificado na doutrina e na jurisprude?ncia pa?tria, contudo, vem a confirmar que o ato jurisdicional na?o pode ter tratamento diferenciado em relac?a?o aos dos demais poderes, na?o podendo prevalecer diante de manifesta afronta aos comandos e garantias inseridos no corpo constitucional. Humberto Theodoro Jr. e Juliana de Faria (2003, p. 5), novamente referindo-se a? lic?a?o de Paulo Otero, registram o seguinte:
[...], estamos de acordo com PAULO OTERO, para quem ‘admitir, resignados, a insindicabilidade de deciso?es judiciais inconstitucionais seria conferir aos tribunais um poder absoluto e exclusivo de definir o sentido normativo da Constituic?a?o: Constituic?a?o na?o seria o texto formalmente qualificado como tal; Constituic?a?o seria o direito aplicado nos tribunais, segundo resultasse da decisa?o definitiva e irrecorri?vel do juiz’, o que na?o se adequa a?s noc?o?es do Estado de Direito. Admitir-se como va?lida a noc?a?o de Constituic?a?o ali esposada significa, ainda segundo magistralmente assinalado por PAULO OTERO, “proclamar como divisa do Estado de Direito a seguinte ide?ia: todos os poderes pu?blicos constitui?dos sa?o iguais, pore?m, o poder judicial e? mais igual que os outros”.
Os mesmos autores defendem, na mesma obra, que em face de deciso?es prolatadas em afronta direta a? Constituic?a?o, os jui?zes teriam ao seu dispor um certo “poder geral de controle incidental da constitucionalidade da coisa julgada”, que os autorizaria a negar executoriedade ao ti?tulo caso vislumbrassem alguma sorte de afronta ao Texto Maior.
O problema de se visualizar a coisa julgada que ampara o ti?tulo executivo judicial com tamanha flexibilidade e? que, por mais fra?geis fossem os argumentos dos magistrados responsa?veis pela execuc?a?o do julgado no sentido de se preservar determinado preceito constitucional, na?o haveria como se evitar que desvios fossem cometidos em abono a uma injustifica?vel liberdade do juiz da execuc?a?o em negar executividade ao ti?tulo.
Nesse diapasa?o, dados os riscos intri?nsecos a? relativizac?a?o da res iudicata frente a? garantia da seguranc?a juri?dica, e? imprescindi?vel que se investigue a relac?a?o da nova tende?ncia com o postulado constitucional em cotejo, de forma a averiguar a necessidade ou mesmo a possibilidade de serem fixados limites a? atuac?a?o judicial relativizadora, trac?ando para?metros substancialmente seguros a? efetivac?a?o desse novo tipo de controle.
6. PARA?METROS PARA A RELATIVIZAC?A?O DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Por isso, dentre os que admitem a relativizac?a?o da coisa julgada, a maior parcela dos estudiosos entende que so? se pode dizer que a decisa?o judicial e? inconstitucional quando houver pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a mate?ria. Essa, alia?s, foi a ideia consagrada pela lei n.o 11.232/2005 ao inserir no Co?digo de Processo Civil o art. 475-L, §1 e o para?grafo u?nico do art. 741.
Logo, os magistrados, pelo simples fato de compreenderem que o que foi decidido na?o corresponde ao seu entendimento pessoal, na?o poderiam afirmar que esta?o diante de coisa julgada inconstitucional. Haveria, sob essa o?tica, uma decisa?o judicial que na?o corresponde ao seu modo de enxergar a questa?o, mas, dada a ocorre?ncia da coisa julgada, o julgador na?o poderia negar sua exigibilidade enquanto na?o houvesse pronunciamento da Suprema Corte sobre aquela especi?fica mate?ria.
Mesmo dentre os que posicionam favoravelmente a? relativizac?a?o da coisa julgada surge controve?rsias quanto a? espe?cie de controle feito pelo Supremo Tribunal Federal a fim de que se habilite sua decisa?o a afastar a coisa julgada em outros pronunciamentos judiciais.
Enquanto para alguns doutrinadores essa decisa?o na?o precise ser proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, para outra parcela, somente o controle abstrato possui o conda?o de obstar a exigibilidade de qualquer ti?tulo executivo que possui fundamento em sentido contra?rio.
Athos Gusma?o Carneiro (2009. p. 11), ao comentar a alternativa legal de se negar executoriedade ao ti?tulo, sob o argumento da inconstitucionalidade, ministra o seguinte:
A Lei n. 11.232 veio a adotar (com felicidade, parece-nos) soluc?a?o interme?dia: para considerar “inexigi?vel” a sentenc?a, impo?e-se que a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, que serviu como fundamento (maior e suficiente) do decisum, ja? haja sido declarada pelo Supremo Tribunal Federal; mas tal declarac?a?o pode ter ocorrido tanto em ac?a?o de controle concentrado como em sede de controle difuso de constitucionalidade, neste segundo caso apo?s suspensa pelo Senado - CF, art. 52, X , a execuc?a?o da norma (Araken de Assis, Manual da Execuc?a?o, Ed. RT, 9. ed. 2005, p. 1.066).
Na verdade, o problema esta? relacionado diretamente com a natureza dos efeitos da decisa?o proferida pelo STF em sede de controle difuso. Inicialmente na?o se admitia posic?a?o outra que na?o fosse a de atribuir a tais pronunciamentos efica?cia inter partes. Contudo, ao julgar a Reclamac?a?o n.o 4.335/AC, o Plena?rio do STF indicou outra soluc?a?o.
A despeito do que foi claramente acenado pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau no julgamento da Reclamac?a?o, Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Marto?nio Lima (2009, p. 3) resistem a? opinia?o manifestada pelo Supremo e rebatem:
[...] na?o ha? como se imaginar que os efeitos do controle concentrado sejam extensivos ao controle difuso, de forma automa?tica.
E? preciso entender que a questa?o do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade diz respeito aos efeitos da decisa?o. Isso parece claro. O texto do art. 52, X, da Constituic?a?o do Brasil, somente tem sentido se analisado – portanto, a norma que dele se extrai – a partir de uma ana?lise do sistema constitucional brasileiro. O sistema e? misto. [...].
Em outro sentido, Joa?o Bosco de Castro (2008, p. 41) registra:
[...], na?o ha? porque estabelecer distinc?a?o entre a via do controle difuso/incidental de inconstitucionalidade e a via do controle concentrado, quanto aos efeitos e a efica?cia da declarac?a?o. Ambos os procedimentos te?m por escopo a efetividade e a afirmac?a?o da efica?cia das normas constitucionais. Na?o se pode admitir a existe?ncia de uma hermene?utica constitucional com efeitos limitados, porque oriunda de procedimento difuso e incidental. O fato de a declarac?a?o de inconstitucionalidade se dar incidentalmente, em um processo em que ha? liti?gio em concreto – e na?o pela via do controle direto – na?o justifica o estabelecimento de discrepa?ncia entre o efeito e a efica?cia dos julgamentos. Tanto em um como em outro se busca a supremacia das normas constitucionais.
A respeito da questa?o, na?o podemos nos olvidar que, relativamente aos artigos 475- L, § 1o e 741, para?grafo u?nico, ambos do Co?digo de Processo Civil, ao criar hipo?tese de inexigibilidade de ti?tulo executivo fundado em lei ou ato normativo julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal ou de aplicac?a?o ou interpretac?a?o tidas pela Corte como incompati?vel com a Constituic?a?o, o legislador ordina?rio na?o limitou esse efeito a?s causas julgadas em sede de controle abstrato.
De fato, os dispositivos sa?o claros ao exigirem somente que a decisa?o seja oriunda do Supremo Tribunal Federal, e nada mais:
Art. 475-L. A impugnac?a?o somente podera? versar sobre: [...]
II – inexigibilidade do ti?tulo;
[...]
§ 1o Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se tambe?m inexigi?vel o ti?tulo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicac?a?o ou interpretac?a?o da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompati?veis com a Constituic?a?o Federal.
Art. 741. Na execuc?a?o contra a Fazenda Pu?blica, os embargos so? podera?o versar sobre:
[...]
II - inexigibilidade do ti?tulo;
[...]
Para?grafo u?nico. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se tambe?m inexigi?vel o ti?tulo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicac?a?o ou interpretac?a?o da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompati?veis com a Constituic?a?o Federal.
Como se pode observar, os dispositivos do Co?digo de Processo Civil na?o exigem que a declarac?a?o de inconstitucionalidade ou a considerac?a?o de incompatibilidade advenham do exerci?cio do controle concentrado. Pode se dizer, desta feita, que o pro?prio legislador ordina?rio se juntou a? teoria mais recente em relac?a?o a? questa?o. A nosso ver, o legislador agiu de forma louva?vel ao na?o realizar a distinc?a?o. A atribuic?a?o de efeitos semelhantes a ambas formas de declarac?a?o de inconstitucionalidade, porquanto oriundas sempre do o?rga?o constitui?do para esta especi?fica func?a?o, rendeu verdadeiro louvor a? supremacia Constitucional e a? forc?a normativa de seu conteu?do.
Ademais, no que tange ao papel do Poder Judicia?rio, o ordenamento juri?dico demanda que, para a plena defesa da supremacia constitucional, o Supremo Tribunal Federal deve realizar da maneira mais eficaz possi?vel o seu papel de guardia?o da Constituic?a?o.
Digno de nota o seguinte excerto, da lavra de Joa?o Bosco de Castro (2008, p. 51):
Diz Baleeiro [...] que “a Constituic?a?o na?o destro?i a si mesma, logo na?o transige com interpretac?a?o que a aniquile”. Estabelecer limitac?a?o a? forc?a normativa da Constituic?a?o e diferenciac?a?o quanto aos efeitos da declarac?a?o de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, seu inte?rprete-mor, a partir da tipologia do procedimento em que declarado o vi?cio, e? transigir com interpretac?a?o de dispositivos da Constituic?a?o. E? permitir a prevale?ncia no ordenamento juri?dico de norma sabida e declaradamente incompati?vel com o Texto Constitucional. Significa imprimir no inconsciente coletivo o temor de que a Constituic?a?o na?o dete?m em si forc?a cogente para expurgar e repelir legislac?a?o ordina?ria que lhe seja contra?ria; que a Corte Constitucional efetivamente serve a? guarda da Constituic?a?o somente quando atua no processo objetivo de constitucionalidade.
Na?o apenas a exige?ncia de decisa?o em controle concentrado de constitucionalidade foi levantada por parte da doutrina para que se impedisse a exigibilidade do ti?tulo executivo na forma prevista nos artigos 475-L, §1o e 741, para?grafo u?nico, do CPC. Alguns autores exigiam, ainda, que tal declarac?a?o tivesse ocorrido antes do tra?nsito em julgado da sentenc?a, o que nos parece um racioci?nio teratolo?gico, porquanto inutiliza a construc?a?o normativa, haja vista que o tra?nsito em julgado da decisa?o que se pretende fazer cumprir e? pressuposto de incide?ncia da regra. Essa posic?a?o felizmente ja? foi afastada pela jurisprude?ncia.
Outro o?bice levantado diz respeito ao prazo ma?ximo que deve ser observado entre o tra?nsito em julgado da decisa?o exequenda e a declarac?a?o de inconstitucionalidade por parte do STF. Os adeptos dessa restric?a?o defendem que a declarac?a?o do Supremo Tribunal Federal so? teria o conda?o de tornar inexigi?veis as deciso?es que tivessem transitado em julgado ha? no ma?ximo dois anos, a contar da decisa?o que declara a inconstitucionalidade da norma.
Como se pode facilmente notar, cuida-se de manifesto propo?sito de adequac?a?o das novas disposic?o?es a?s regras da resciso?ria.
Entretanto, essa posic?a?o padece de duas grandes ma?culas. A primeira delas e? que a regra processual na?o se refere a nenhuma limitac?a?o temporal, de maneira que se o processo de execuc?a?o ainda estiver em curso, seja qual for o lapso entre ele e o tra?nsito em julgado, poder-se-ia alegar a inexigibilidade do ti?tulo judicial. Ao inte?rprete e? vedado criar restric?o?es onde o legislador na?o o fez. O outro ponto fra?gil do racioci?nio e? a impropriedade de se querer limitar os efeitos da declarac?a?o de inconstitucionalidade a?s limitac?o?es processuais – que sequer existem – quando o que se poderia admitir seria o contra?rio. E? como se se pretendesse tratar a coisa julgada eivada de inconstitucionalidade da mesma maneira que se trata a decisa?o meramente ilegal, proposta esta que vem de frontal encontro a? pro?pria noc?a?o de supremacia da Constituic?a?o.
Vale o registro de que o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que a inconstitucionalidade da sentenc?a deve ter tratamento diferente da ilegalidade. E? o que ocorre quando, em diversas ocasio?es, a Corte Suprema afasta a aplicac?a?o da su?mula n.o 343 quando se fundamenta a resciso?ria em ofensa literal a? Constituic?a?o.
Na?o e? novidade que questo?es em direito frequentemente admitem posicionamentos antago?nicos – alia?s, e? justamente o que ocorre com relac?a?o ao tema da relativizac?a?o da coisa julgada. O efeito preclusivo natural ao instituto da res iudicata teria o conda?o de encerrar a discussa?o sobre tais ou quais interpretac?o?es seriam as mais adequadas. Isso na?o ocorreria, no entanto, quando o Supremo Tribunal Federal decide determinada questa?o de forma definitiva, caso em que essa coisa julgada na?o poderia – ou ao menos na?o deveria – dizer o inverso.
Na lic?a?o de Humberto Theodoro Jr. e Juliana de Faria (2003, p. 32):
[...], sempre que se fala em decisa?o judicial, a? mi?ngua de literatura a respeito, tem-se a falsa impressa?o de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasileiro, e? possi?vel apenas enquanto na?o operada a coisa julgada, atrave?s do u?ltimo recurso cabi?vel que e? o extraordina?rio previsto no art. 102, III, da CF. [...].
Pensamos que na?o. A nosso ver, o controle de constitucionalidade na?o deve ser dilatado somente sob a perspectiva temporal, mas tambe?m sob sua perspectiva referencial. E? que na?o e? raro em doutrina observarmos manifestac?o?es que rejeitam aos princi?pios de direito, e mais, aos princi?pios constitucionais normatividade suficiente para se impor contra determinada disposic?a?o de lei que lhe malfira.
Um bom exemplo dessa linha de pensar traz a lic?a?o de Araken de Assis (in DIDIER, 2008, p. 44), que assim escreve:
Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princi?pios da Carta Poli?tica, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, na?o se revela difi?cil prever que todas as portas se escancara?o a?s iniciativas do vencido. O vi?rus do relativismo contaminara?, fatalmente, todo o sistema judicia?rio. Nenhum veto, a priori, barrara? o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo, invocando hipote?tica ofensa deste ou daquele valor da Constituic?a?o. A simples possibilidade de e?xito do intento revisionista, sem as peias da resciso?ria, multiplicara? os liti?gios, nos quais o o?rga?o judicia?rio de primeiro grau decidira?, preliminarmente, se obedece, ou na?o, o pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e ate?, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. Tudo, naturalmente, justificado pelo respeito obsequioso a? Constituic?a?o e baseado na volu?vel livre convicc?a?o do magistrado inferior.
A nosso ver, o autor na?o tem raza?o ao inadmitir que o amoldamento da decisa?o judicial a princi?pios constitucionais na?o possa evocar a relativizac?a?o de seu tra?nsito em julgado. E? que embora as normas dessa envergadura admitam interpretac?a?o ela?stica ao ponto de eventualmente comprometer decisa?o judicial va?lida e constitucionalmente adequada, os princi?pios, como normas-chave que o sa?o, possuam um nu?cleo fundamental especi?fico e claramente identifica?vel.
Exigir pre?via manifestac?a?o do Supremo Tribunal a respeito de mate?rias especi?ficas a fim de se fixar a possibilidade ou impossibilidade de relativizac?a?o de deciso?es transitadas em julgado que lhe contradigam seria limitar desnecessariamente a possibilidade de controle constitucional sobre os atos judicia?rios que infringem os princi?pios erigidos no corpo da Carta Magna.
7. COISA JULGADA, SEGURANC?A JURI?DICA E FORC?A NORMATIVA DA CONSTITUIC?A?O: UMA QUESTA?O DE PRINCI?PIO
Como ja? dito no primeiro capi?tulo do estudo, embora exista os que duvidem que a coisa julgada possua a natureza de princi?pio de direito, em nosso entendimento a seguranc?a juri?dica – que inquestionavelmente e? princi?pio, e um dos mais importantes do ordenamento – se manifesta fundamentalmente por meio da res iudicada, lhe atribuindo, por via reflexa a mesma carga axiolo?gica e normativa dos postulados dessa natureza.
Para desenvolvermos essa linha de racioci?nio, contudo, e? necessa?rio que sejam previamente trac?adas algumas linhas sobe a releva?ncia dos princi?pios em nosso ordenamento juri?dico, sobre sua carga normativa e sobre as func?o?es por eles desempenhadas, seara esta de extrema releva?ncia no que concerne a? doutrina dos princi?pios de Direito.
Dentre todas as caracteri?sticas dos princi?pios atribui?das pela doutrina e pela “jurisprude?ncia dos princi?pios”, a versatilidade funcional e? uma das que mais se destacam e das que mais rendem presti?gio a?queles mandamentos fundamentais. Corroborando tal fato, citam-se as func?o?es diretiva ou programa?tica, interpretativa, supletiva, integrativa, limitativa e fundamentadora, cada uma delas pormenorizada adiante.
Um dos mais percepti?veis, claros e cla?ssicos pape?is exercidos pelos princi?pios no sistema juri?dico e? o papel diretivo ou programa?tico.
Juristas tais como Jose? Afonso da Silva preferem na?o utilizar o voca?bulo “programa?tico” ao se falar sobre princi?pios fundamentais. Esse receio e? plenamente justifica?vel ao se levar em considerac?a?o o denegrimento historicamente experimentado por aquelas normas quando, concebidas sob a forma de princi?pios programa?ticos, extirpava-se-lhes, de maneira plena, todo e qualquer resqui?cio de normatividade ou juridicidade a elas inerentes.
A func?a?o diretiva representa o direcionamento de todo um sistema normativo a um fim especi?fico, detenha este fim uma natureza social, econo?mica ou qualquer outra teleologia pertinente. O fator programaticidade geralmente traduz que um princi?pio aponta para onde e como o ordenamento juri?dico deve se desenvolver, pretendendo atribuir fins ao pro?prio Estado.
Ugo Natoli (1955, apud JOSE? AFONSO DA SILVA, 1998, p. 155) costumava expor a seguinte lic?a?o:
[...] a Constituic?a?o, sob o plano histo?rico, aparece como a resultante de um acordo de respeito reci?proco entre forc?as poli?ticas diversas e, sob va?rios aspectos, contrastantes. E pode afirmar-se, com suficiente tranqu?ilidade, que os momentos fundamentais de tal acordo sa?o indicados precisamente nas normas programa?ticas, com as quais se determinam os fins e as linhas de desenvolvimento da nova ordem, caracterizando o tipo de regime, que lhe esta? na base e que ela consagra, ou seja, um regime misto, que se exprime atrave?s das constituic?o?es convencionais, nas quais esta?o presentes forc?as poli?ticas contrapostas.
Portanto, embora tenha sempre sido palco das mais acirradas disputas doutrina?rias acerca da normatividade ou na?o-normatividade dos princi?pios, conforme ja? mostrado em linhas anteriores, a func?a?o programa?tica, ainda que suavize a juridicidade e aplicabilidade imediata de determinado mandamento, jamais seria suficiente para extrair a caracteri?stica de normatividade inerente a todo e qualquer princi?pio de Direito.
Na?o se pode negar que os princi?pios juri?dicos sa?o, tambe?m, normas-chave de todo o sistema. A manifestac?a?o da normatividade principiolo?gica e os cada vez mais frequentes aco?rda?os das Cortes Constitucionais no constitucionalismo hodierno legitimam essa tende?ncia irresisti?vel que enceta a considerac?a?o dos princi?pios como normas-chave do Ordenamento, garantindo, via de conseque?ncia, uma maior integrac?a?o entre as normas do sistema.
Por serem os princi?pios fonte material ba?sica e prima?ria, com primazia hiera?rquica normativa absoluta, seja em relac?a?o a? lei ou ao costume, dotada de forc?a suficiente para gera?-los, esculpi-los ou invalida?-los, eles acabam por se transformar em fonte ideal, podendo, inclusive, ser fontes sustentadoras e fundamentadoras de outros princi?pios.
Ha? tempos ja? asseverava o insigne jurista Paulo Bonavides que “os princi?pios sa?o o oxige?nio das Constituic?o?es na e?poca do po?s-positivismo. E? grac?as aos princi?pios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valorac?a?o de sua ordem normativa” (2009, p. 259).
Quanto a? func?a?o fundamentadora dos princi?pios de Direito exercida no sistema juri?dico, seja no desempenho de papel programa?tico ou daquela caracteri?stica fortemente normativa, um elemento peculiar, encontrado na maioria dos princi?pios, e? o que mais lhes rende aplausos e louvores: o cara?ter da fecundidade das normas.
Em sintonia com nosso entendimento, Domenico Farias (1981, apud BONAVIDES, 1999, p. 245-246) preleciona que “os princi?pios sa?o a alma e o fundamento de outras normas. Substancialmente e? a ide?ia de fecundidade do princi?pio aquela que se acrescenta a? de mera generalidade”.
Os princi?pios na?o so? servem de sustenta?culo e?tico ou moral para o surgimento de outras normas de Direito, como tambe?m servem de assento natural, donde haurem todas as regras juri?dicas.
Outrossim, tambe?m exercem os princi?pios uma func?a?o interpretativa, prestando o ofi?cio de auxiliar os profissionais do Direito – e tambe?m os doutrinadores – na correta interpretac?a?o das normas positivadas.
O trabalho legislativo, por mais zeloso e minucioso que o legislador seja, muitas vezes na?o consegue evitar que surjam situac?o?es reais em que aquela regra, que demandou horas de trabalho para sua conclusa?o, de? ensejo a du?vidas ou interpretac?o?es diametralmente opostas. Nesses casos, o que se deve buscar na?o e? a vontade do legislador, mas o significado objetivo da norma, do qual trataremos melhor em linhas pro?ximas. E e? justamente aqui, onde a du?vida assombra a mente dos interpretadores, que estes servem-se dos princi?pios de Direito para dirimir toda a incerteza e ambigu?idade porventura subsistente.
Todo sistema de regras, em seu raio de abrange?ncia, deve dedicar altivez aos princi?pios aos quais as regras se vinculam. Comungamos com Bonavides (ibid., p. 232) no entendimento de que “os princi?pios clarificam o entendimento das questo?es juri?dicas, por mais complicadas que estas sejam no interior de um sistema de normas”. Vale lembrar que eles na?o sa?o meras declarac?o?es descritivas, mas proposic?o?es normativas de cunho geral e abstrato, exprimindo na?o o que e? ou o que parece ser, mas o que deve ser ou o que e? permitido que seja.
Mais uma func?a?o exercida pelos princi?pios de Direto e? a func?a?o limitativa.
Bonavides afirma que “o princi?pio exige que tanto a lei como o ato administrativo lhe respeitem os limites e que, ale?m do mais, tenham o seu mesmo conteu?do, sigam a mesma direc?a?o, realizem o seu mesmo espi?rito” (2009, p. 258).
Consoante essa caracteri?stica, estabelecem os princi?pios os limites materiais do pensar-agir juri?dico. Servem eles de substrato valorativo, mas, ao mesmo tempo, delimitam as fronteiras dentro das quais se podem movimentar as expresso?es deo?nticas de permissa?o e proibic?a?o. Neste ponto, a seguranc?a juri?dica desempenha um papel limitador por excele?ncia, dado que qualquer disposic?a?o legal que lhe afete a normatividade, ainda que de forma reflexa, tende a ser recebida com extrema cautela – o que so?i ocorreria com as investidas legislativas que se relacionam com a relativizac?a?o da coisa julgada.
A u?ltima prerrogativa reza que os princi?pios exercem a func?a?o de fonte de direito em caso de insuficie?ncia, ou ause?ncia, da lei ou do costume para que se regule determinado caso. Confirma-se, desta maneira, uma das caracteri?sticas mais tradicionais atribui?das aos princi?pios, haja vista que, em grande parte, se refere a? e?poca em que ainda predominava a teoria de que os princi?pios na?o sa?o normas, mas sim uma entidade qualitativamente divergente das mesmas.
Vale salientar que, na doutrina, a discussa?o sobre as func?o?es exercidas pelos princi?pio esta? longe de ser pacificada.
Alguns, como F. de Castro (apud BONAVIDES, 2009, p. 82), por exemplo, defendem a teoria de que os princi?pios de direito exercem uma tridimensionalidade funcional, desempenhando, em primeiro lugar, a func?a?o de fundamento da ordem juri?dica; em segundo lugar, serviriam os princi?pios como instrumentos orientadores do trabalho interpretativo e, finalmente, seriam utilizados como fonte em caso de insuficie?ncia da lei e do costume.
Outros, como Norberto Bobbio (1995, p. 45), atribuem aos princi?pios de Direito uma tetradimensionalidade funcional, pregando que desempenham func?a?o integrativa, interpretativa, diretiva (pro?pria dos princi?pios programa?ticos) e uma func?a?o limitativa da ordem juri?dica. Bobbio chega a inovar a classificac?a?o funcional fazendo uma distinc?a?o sob a luz da intensidade do “grau vinculante” dos princi?pios, dizendo que ele e? maior nas func?o?es limitativa e integrativa e mais brando na interpretativa e na func?a?o diretiva.
O que deve ser entendido, de fato, e? que a tridimensionalidade e a tetradimensionalidade na?o se opo?em, mas se complementam, corroborando, assim, o entendimento de que os princi?pios de Direito na?o exercem uma func?a?o especi?fica no mundo juri?dico, mas os mais variados atributos, seja servindo como fonte subsidia?ria das normas, como aparato interpretativo, como normas integrativas do ordenamento ou como limites especi?ficos das normas de um ordenamento.
Em epi?tome, pode-se afirmar que o ponto principal de toda a contenda sobre os princi?pios de Direito tem arrimo no problema em sua normatividade, mais especificamente no que tange ao lugar e a? espe?cie dessa normatividade.
Depois que a juridicidade dos princi?pios foi solidamente estabelecida pela Doutrina e pela Jurisprude?ncia e eles, por conseguinte, lanc?aram-se dos Co?digos – nos quais cumpriam a trivial func?a?o de fontes com cunho supletivo – para as Constituic?o?es – em que se converteram em fundamento de toda a ordem normativa – adquiriram, antes princi?pios gerais, o epi?teto de princi?pios constitucionais.
Assentados no mais alto degrau da cadeia normativa, os princi?pios se tornam as normas supremas de todo o ordenamento juri?dico. Dotados de demasiado aprec?o, servem de crite?rios para a aferic?a?o do conteu?do normativo de todas as demais normas.
A constitucionalizac?a?o dos princi?pios de direito que, vale notar, e? ao mesmo passo a positivac?a?o no mais alto escala?o, lhes confere a ma?xima categoria constitucional, de forma na?o somente a reconhecer a ta?o pretendida normatividade juri?dica, mas a torna?-los as normas das normas, donde haurem e onde encontram seus limites materiais e morais.
Nesse diapasa?o, a entrada dos princi?pios nas Constituic?o?es ocorre quando estas incorporam, de acordo com Gordillo Can?as, uma “ordem objetiva de valores”, no momento em que a dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade comec?am a figurar como abrigos da “ordem poli?tica e da paz social” (apud BONAVIDES, 2009, p. 469).
Preleciona o mesmo doutrinador (ibid., p. 515) que no exerci?cio do papel de fonte material do Direito os princi?pios independem de autonomia formal, mas isto jamais implicaria que, em raza?o dessa propriedade, haveriam eles de perder sua substantividade e especialidade normativa. Alia?s, quando incorporados ao texto constitucional adquirem o mais alto grau normativo a servic?o de sua func?a?o informadora no Sistema juri?dico, sem, contudo, converterem-se em lei formal, da mesma forma que, advinda a versa?o escrita de determinado costume, isto na?o lhe priva da natureza de norma consuetudina?ria. De acordo com suas palavras:
Uma diferenc?a separa a norma legal da norma principal: a primeira e? uma norma desenvolvida em seu conteu?do e precisa em sua normatividade: acolhe e perfila os pressupostos de sua aplicac?a?o, determina com detalhe o seu mandato, estabelece possi?veis excec?o?es; o princi?pio, pelo contra?rio, expressa a imediata e na?o desenvolvida derivac?a?o normativa dos valores juri?dicos: seu pressuposto e? sumamente geral e seu conteu?do normativo e? ta?o evidente em sua justificac?a?o como inconcreto em sua aplicac?a?o. E? aqui que o princi?pio, ainda quando legalmente formulado, continua sendo princi?pio, necessitado por isso de desenvolvimento legal e de determinac?a?o casui?stica em sua aplicac?a?o judicial.
A partir desse momento, conclui-se que a inserc?a?o de valores ba?sicos (e de princi?pios derivados destes mesmos valores) nos textos constitucionais na?o somente fixa o marco inicial onde o juiz, ao decidir, deve se respaldar numa jurisprude?ncia de valores, como tambe?m agasalha o fundamento ba?sico e estabelece o sentido inspirador nos quais devera?o se desenvolver o trabalho legislativo e judicia?rio.
Em resumo, o desenvolvimento da teoria dos princi?pios ao longo dos se?culos acondicionou a teoria a consolidar as seguintes etapas: (i) a transic?a?o dos princi?pios da especulac?a?o preponderantemente metafi?sica e abstrata para o campo concreto e positivo do direito, inicialmente com baixi?ssimo teor de densidade normativa; (ii) a passagem decisiva da esfera jusprivatista (sua antiga inserc?a?o nos Co?digos) para a esfera juspublici?stica (seu ingresso nos textos Constitucionais); (iii) a erradicac?a?o da distinc?a?o cla?ssica entre princi?pios de Direito e normas juri?dicas e a consequ?ente proclamac?a?o da sua normatividade; (iv) a perda de sua caracterizac?a?o de normas essencialmente programa?ticas; (v) o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude em virtude, sobretudo de sua constitucionalizac?a?o; (vi) a diferenciac?a?o entre princi?pios e regras de direito, como espe?cies distintas do ge?nero norma, e, ao final, por expressa?o ma?xima de todo esse labor doutrina?rio, o mais saliente e importante de todos os seus efeitos: o reconhecimento da total hegemonia e preemine?ncia dos princi?pios.
Todas essas considerac?o?es foram trac?adas para demonstrarmos a necessidade de se atribuir aos princi?pios constitucionais normatividade suficiente para se sobreporem aos atos judiciais que eventualmente lhes neguem essa forc?a. Na?o seria razoa?vel que a teoria da relativizac?a?o da coisa julgada admitisse o afastamento de um pronunciamento judicial contra?rio a regra constitucional e na?o o permitisse quando o objeto da lesa?o fosse determinado um princi?pio constitucional, que possui igual forc?a normativa e maior gradac?a?o hiera?rquica que as regras.
8. DOS EFEITOS DA NOVA SENTENC?A
Por derradeiro, na?o poderi?amos nos furtar a? obrigac?a?o de tecer breves comenta?rios sobre os efeitos de eventual sentenc?a que venha a declarar a inconstitucionalidade de coisa julgada anterior.
A respeito do problema, tanto a doutrina quanto a jurisprude?ncia te?m consolidado o entendimento segundo o qual a gravidade do vi?cio constatado acarreta a invalidade do ato jurisdicional anterior, ou seja, a decisa?o atacada e? ceifada de validade desde o seu nascedouro, sendo insana?veis seus vi?cios.
Quanto a? mate?ria Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro (2003, p. 29) sa?o catego?ricos:
A decisa?o judicial transitada em julgado desconforme a Constituic?a?o padece do vi?cio da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos juri?dicos, lhe impo?e a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional e? nula e, como tal, na?o se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de resciso?ria para a eliminac?a?o do vi?cio respectivo. Destarte pode "a qualquer tempo ser declarada nula, em ac?a?o com esse objetivo, ou em embargos a? execuc?a?o" (STJ, Resp 7.556/RO, 3 T., Re. Ministro Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439).
Todo ato contra?rio a? Constituic?a?o e? nulo desde sua ge?nese. A decisa?o do Supremo Tribunal Federal que reconhece a inconstitucionalidade de norma possui natureza declarato?ria de um vi?cio preexistente. Por tal raza?o, esse pronunciamento costuma ter efeitos ex tunc, ou seja, retroativos ao nascimento da lei impugnada.
Na?o e? difi?cil notar que a decisa?o que ceifa a coisa julgada inconstitucional do mundo juri?dico possui um liame muito intenso com a noc?a?o de controle de constitucionalidade e, por conseque?ncia, com a noc?a?o de supremacia da Constituic?a?o. Nesse prisma, a decisa?o que declara a inconstitucionalidade de coisa julgada deve, tambe?m, ter efeitos ex tunc, nos mesmos para?metros trac?ados no art. 27 da Lei n. 9.868/99.