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Resenha do documentário "Justiça".

Agenda 23/05/2014 às 08:25

Resenha crítica do documentário "Justiça", de Maria Augusta Ramos (2004).

1 REFERÊNCIA DA OBRA EM ANÁLISE

JUSTIÇA. Direção e produção de Maria Augusta Ramos. Documentário. Brasil: produção independente, 2004. 1 DVD (100 min). Ntsc, son., color. Port.


2 APRESENTAÇÃO DA DIRETORA

Crítica da atual conjectura social brasileira, Maria Augusta Ramos (Brasília/DF, 1964) utilizou suas últimas obras para expor a realidade social de nosso país, utilizando, para isso, um viés jurídico.

Graduada em Música pela Universidade de Brasília (UNB), e especialista em Musicologia e Música eletroacústica pela Radio France (França) e City University (Londres), a diretora utiliza de modo acurado os aspectos audiofônicos para impor em suas obras o sentimento de realidade que pretende passar aos seus telespectadores.

No ano de 1990, casou-se com o Holandês Henkjan Honning, tendo se mudado para o país de origem do seu marido em seguida. O despertar de uma grande musicista para o mundo cinematográfico surge na Netherlands Film and Television Academy, onde iniciou seus estudos de direção e edição.

Desde ponto em diante, a cineasta produziu diversos curtas-metragens e documentários, de gêneros que abarcam desde o público infantil – Butterflies in your stomach, 1999 – até críticos ferrenhos, tal como a obra ora abordada.

Maria Augusta é vencedora de mais de dez prêmios cinematográficos nacionais e internacionais, tal como o prêmio do público no Festival de Cinema de Amsterdam do ano de 2000, pelo seu documentário Desi.


3 PERSPECTIVA TEÓRICA DA OBRA

O documentário Justiça, como o próprio nome introduz, busca demonstrar a realidade da sociedade brasileira, utilizando, para isso, as lentes dos Tribunais, local onde a justiça teoricamente se executa. Ao contrário do que costumeiramente se imagina sobre a obra, a autora não quis demonstrar a realidade dos Tribunais em nosso país, o que acabou ocorrendo de modo paralelo. Nas próprias palavras de Maria Augusta Ramos, “o filme não é sobre o Judiciário ou sobre o sistema penal em si. É um filme que retrata a realidade brasileira através do Judiciário” (2004). A cineasta se utiliza das lentes do sistema punitivo para realizar uma exploração da sociedade brasileira, uma vez que o sistema judiciário nada mais é do que um reflexo reduzido de nosso corpo social.


4 BREVE SÍNTESE DA OBRA

Gravado durante as audiências criminais realizadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no decurso do segundo semestre do ano de 2003, a obra mostra a realidade do sistema penal brasileiro. A obra cinematográfica mostra desde as audiências de instrução e julgamento, em que cada um dos “atores” exerce o seu papel social – juiz, promotor, defensor e réu – até os momentos privados de cada um deles, aonde o papel social é deixado de lado frente às obrigações diárias comuns a todos, apesar de suas peculiaridades e dificuldades específicas.

O documentário conta com a participação de três réus, três juízes, uma defensora pública e duas promotoras de justiça. Durante as filmagens, a maioria deles tem exposta as suas vidas profissionais e pessoais, exceto alguns dos juízes e as promotoras de justiça, que apenas aparecem nas audiências de instrução e julgamento, permanecendo caladas durante toda a filmagem.

Para dar uma maior veracidade – característica inerente aos documentários, a cineasta utiliza as câmeras estáticas, assim como todos os diálogos presentes na obra são reais, sem nenhum roteiro. A ausência de narrador/comentarista torna a película um verdadeiro retrato da vida real, aparentando ao telespectador estar presente nas situações projetadas.

O documentário foi premiado com nove prêmios cinematográficos internacionais, e é uma das três obras que compõe a trilogia da autora sobre a justiça no Brasil.


5 PRINCIPAIS TESES DESENVOLVIDAS NA OBRA E REFLEXÕES CRÍTICAS

Quem tá preso na verdade, só tem pé de chinelo, ladrão pé de galinha, o povo mais miserável [sic]”. Com essa frase, uma das defensoras pública resume o objetivo da obra, que é expor o retrato da impunidade, ineficácia e desigualdades da sociedade, através do sistema judicial penal brasileiro. A estrutura que abarca esse sistema punitivo, desde os tribunais até o sistema carcerário, exibe o tratamento desigual fornecido aos envolvidos nessa relação processual. A pompa, glamour e o discurso de “bastas à impunidade” exibidos na posse da juíza como desembargadora contrastam com as cenas dos presos amontoados como animais, presos em suas jaulas. As cenas externadas das prisões em nada diferem se comparadas à obra “Navio negreiro”, de Rugendas. Apesar da diferença de 173 anos entre a obra de arte e a gravação da película, podemos verificar que, na prática, pouco mudou. Santana (2008), em sua obra “Crime e castigo”, expõe essa realidade ao afirmar que as prisões se tornaram porões imundos, superlotados, sanguinários e cheios de desordem, formando um caos criador de bichos humanos.

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A igualdade tripartite do processo, corolário do princípio da igualdade, em que todos são iguais perante a lei, é esquecida no momento em que o réu – previamente condenado socialmente, se senta perante o juiz, autoridade máxima, que possuí o poder de condenar e dar a liberdade. Essa abordagem do cenário jurídico penal como, nas próprias palavras de Maria Ramos (2004), “um microcosmos da sociedade”, traz a tona a figura do oprimido e do opressor, presente nos dois sistemas abordados.

Os tons de voz contrastantes, assim como a forma como se comportam – o juiz de cabeça erguida, olhar frio e tom de voz elevado, enquanto o réu de cabeça baixa, encolhido e de fala mansa – comprovam a inexistência desse tratamento igualitário entre os papéis exercidos pelas partes nesse teatro processual, em que as consequências produzem extensos efeitos na vida real. O temor do autoritarismo judiciário, através da figura do juiz, atinge inclusive as testemunhas, o que é exibido claramente no documentário no momento em que Maria Elma vai ser interrogada.

A composição dos personagens jurídicos fica evidenciada quando se encerram as audiências e retornam todos aos seus lares. Aí se verifica verdadeiramente a (des)igualdade. Apesar das grandes diferenças econômicas e sociais, as figuras sociais e atribuições familiares são as mesmas para todos.

Uma das cenas mais fortes do documentário é quando o réu Carlos Eduardo nega, perante a juíza, todas as acusações a ele imputadas, porém confessa a defensora pública que é culpado, sendo inclusive um dos chefes do tráfico de sua região. Essa cena demonstra dois pontos críticos do sistema punitivo: o direito de mentir do réu, chamado também de autodefesa negativa, que prejudica a busca por uma real justiça; assim como a conduta antiética da defensora, que mesmo sabendo da culpa do réu, busca a sua liberdade, utilizando, para justificativa perante à sociedade – representada no documentário pela família – a lotação dos presídios.

Diante disso, tendo em vista que o sistema punitivo é um retrato da sociedade, uma reforma no sistema judiciário nacional passa por uma complexa alteração social. De nada adianta exigir a aplicação de uma justiça restaurativa e um tratamento humanitário pelo Estado se continuarmos, como corpo social, sendo preconceituosos e tratando com indiferença os que já estão à margem da sociedade.


6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAÍ, Arantes. Para diretora de documentário, Justiça é o retrato da sociedade brasileira. Carta Maior. São Paulo, 25 jun. 2004. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Para-diretora-do-documentario-i-Justica-i-e-retrato-da-sociedade-brasileira/12/6568>. Acesso em: 07 mar. 2014.

SANTANA, Edilson. Crime e castigo: como cortar as raízes da criminalidade e reduzir a violência. São Paulo: Golden books, 2008.

Sobre o autor
Lucas Bezerra Vieira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2015), inscrito na OAB/RN sob o n.º 14.465. Ex-presidente e atual membro da Comissão de Direito da Inovação e Startups da OAB/RN. Autor do livro “Direito para Startups: Manual jurídico para empreendedores” (ISBN 978-85-923408-0-3); e criador do site “Direito para Startups“, um dos primeiros portais do Brasil especializados na temática. Coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do movimento Livres. Formação em Proteção de Dados e Data Protection Officer pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ. Advogado com atuação especializada no assessoramento jurídico empresarial, com foco em startups, empresas digitais e de tecnologia. Possui em seu card de clientes startups de renome nacional, participantes de programas de fomento ou aceleração como Endeavor Scale Up, Shark Tank Brasil, Inovativa Brasil, Estação Hack from Facebook, ACE Startups e grandes fundos de investimentos, entre outros. Mentor legal do Programa Conecta Startup Brasil, um dos maiores programas de aceleração de startups do Brasil (Softex) e do Distrito, maior ecossistema independente de Startups do Brasil. Palestrante e autor de artigos publicados em periódicos científicos, como também de artigos publicados em grandes portais nacionais (Estadão, Jota, Conjur, Migalhas, Jornal do Comércio…).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho originariamente publicado na Revista Transgressões (ISSN 2318-0377), v. 3, n. 3, 2014.

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