SUMÁRIO: I – Linhas propedêuticas; II – O plano legislativo; III – A desigualação constitucionalmente assegurada; IV – Exegese equivocada da nova lei e juízes-legisladores; V – Componente social e sua desconsideração: riscos; VI – Arremates.
I – Linhas propedêuticas
Fulcrando-se no princípio da igualdade, tem-se dito que a Lei n°. 10.259/01 teria ampliado o conceito de delitos de menor potencial ofensivo. Não nos parecendo que venha sendo dada a melhor orientação à questão, sob sério risco de uniformidade em torno de posição que antes evidencia-se confrontadora do texto constitucional vigente.
Em sede de hermenêutica, é comezinha a lição de que são cinco os processos interpretativos (Maria Helena Diniz, As lacunas do direito, 4ª. ed., São Paulo: Saraiva, p. 277): o gramatical (fundado em regras de lingüística, implica no exame, pelo magistrado, de cada termo do texto normativo, isolada ou sintaticamente, atendendo à pontuação, colocação dos vocábulos, origem etmológica, etc.), o lógico (que se utiliza de critérios lógicos, estudando-se o sentido e o alcance da norma, tendo-se em conta a coerência), o sistemático (esse leva em conta o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto, através da diversidade de subssistemas normativos), o histórico (baseia-se nos antecedentes da norma, podendo atentar aos trabalhos preparatórios do processo legislativo, às causas ou necessidades que inspiraram o legislador) e o sociológico ou teleológico (visa adaptar o sentido ou a finalidade da norma às novas exigências).
Eles não se isolam ou divergem, mas sim antes se complementam, pelo que "convém lembrar, ainda, que os diversos processos interpretativos não operam isoladamente nem se excluem reciprocamente, mas se completam. Não são, na realidade, cinco espécies de técnicas de interpretação, mas operações distintas que devem sempre atuar conjuntamente, pois todas trazem sua contribuição para a descoberta do sentido e do alcance da norma" (autora e obra citadas, p. 278). Tal lição, aliás, é bem clássica, vazada na autorizada doutrina de Carlos Maximiliano, para quem não "é de rigor que se empreguem todos simultaneamente; pode um dar mais resultado do que outro em determinado caso; o que se condena é a supremacia absoluta de algum, bem como a exclusão sistemática de outro. Cada qual tem os defeitos das suas qualidades; é em tirar de cada processo o maior proveito possível, conforme as circunstâncias do caso em apreço, que se revela a habilidade e a clarividência do intérprete" (Hermenêutica e aplicação do direito, 18. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 127).
E ditos processos são aplicáveis a todos os ramos do direito, observadas logicamente as peculiaridades próprias destes, em razão dos interesses em voga.
Também cediço que a interpretação constitucional possui notada importância, pela magnitude que os países de civil law conferem à norma fundamental e pelo seu caráter político (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 10. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 419), falando-se pois em interpretação da lei conforme a constituição, de nulidade de lei sem redução de texto, de nulidade parcial ou total de lei (Alexandre de Morais, Curso de Direito Constitucional, 10ª. ed, São Paulo: Atlas, 2001, p. 41-45).
A Constituição há, pois, de ser interpretada na medida em que a exegese lhe revista e represente a intenção soberana do povo, que conferiu legitimidade aos legisladores originários. Não se pode tê-la por arremedos inspiratórios que subtraiam essa essencial característica. As normas constitucionais não podem ser diminuídas ou lidas, senão na medida em que lhe autorize o próprio texto constitucional.
Estabelecidas estas premissas, sigamos.
II – O plano legislativo
O art. 98 da Constituição Federal prevê a possibilidade de criação de juizados especiais pela União, Estados e Distrito Federal para infrações de pequeno potencial ofensivo.
Seu parágrafo único, vindo a lume pela Emenda Constitucional n°. 22, autorizou a Lei federal a dispor sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.
Desde logo já se vê o seguinte: quis o constituinte derivado que a lei federal pudesse dar tratamento próprio aos juizados especiais federais.
A Lei n°. 10.259/01 é clara, verbis:
"Art. 2º. Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.
Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa".
A norma é bem clara e a definição ali constante é precisa no sentido de aplicabilidade para fins daquela lei.
III – A desigualação constitucionalmente assegurada
O princípio da igualdade, matriz constitucional (art. 5°., caput), tem em seu conteúdo o tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais (Aristóteles), buscando a igualdade substancial.
Resulta da própria essência da atividade legislativa uma tendência nata à discriminação de coisas ou situações. Com o incremento da vida e dos grupos sociais, torna-se necessária a regulação pelo direito positivo das situações daí criadas. O grande desafio ao legislador é, pois, exercer seu mister sem afrontar o princípio isonômico, dando tratamento idêntico ou não, conforme demande o caso concreto, no afã de fazer incidir preceitos substancialmente igualitários.
A discriminação é, portanto, possível, desde que presentes razões jurídicas bastantes.
Do contrário, estar-se-ia negando validade à própria existência dos Juizados Especiais Estaduais Criminais (Lei n°. 9.099/95), ao Código do Consumidor (Lei n°. 8.078/90) e à própria Lei de Tóxicos (Lei n°. 6.368/76), dentre vários outros (Lei das Contravenções Penais etc etc e etc). Isso porque a criação de microssistemas normativos é um fato inconteste. A especialização de áreas do direito é uma premência.
IV – Exegese equivocada da nova lei e juízes-legisladores
É até natural que alguns doutrinadores, que de resto vivem do que pregam (sendo que a área penal não vem sendo alvo de grandes mudanças), alardeiem a aplicação de teses jurídicas de duvidosa existência no nosso ordenamento constitucional (direito penal mínimo, insignificância e proporcionalidade), calcados em naturais de países cuja realidade social é bem diferente da nossa pátria tupiniquim (como é a Alemanha, de onde vem o festejado Claudio Roxin).
Só não é aceitável que isso encontre pronto agasalho no seio do Judiciário, onde a crise conscienciosa de alguns julgadores pela falência do sistema carcerário faz com que princípios os mais diversos possíveis sejam utilizados, de forma muitas vezes impensada, para justificar decisões descompassadas do sistema jurídico e pior, desvirtuando justamente o princípio que se diz invocado.
Assegura-se ao constituinte excepcionar-se, desde que o queira. E ele o quis nesse caso concreto, sem se olvidar do tratamento disparatado conferido a crimes idênticos, a depender do agente passivo (federal ou estadual).
Alguns podem até achar isso errôneo à luz de princípios diversos (assaz de vezes citados na esfera penal), mas isso não é válido à luz da Constituição Federal, senão sob uma ótica capenga. Não se pode opor princípios explícitos e inegavelmente contidos no seio constitucional com lastro em princípios outros, cuja legitimidade só encontra amparo no direito brasileiro na medida em que não obstaculizem o Texto Normativo Maior.
É certo que prega-se a inconstitucionalidade de normas constitucionais (Otto Bachof, Normas constitucionais inconstitucionais?, trad. José Manuel M. Cardoso da Costa, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 19-35), mas não é esse o caso, sendo mesmo que o legislador penal tem irrestrita discricionariedade quanto à tipificação penal. E não custa lembrar que legislador penal é só o federal (art. 22, I, da C.F.), atentando-se que no caso concreto ele escolheu dar tratamento mais benéfico aos delitos perpetrados em detrimento da União, à qual é função constitutiva, mantendo o tratamento mais gravoso para os delitos cometidos em detrimento de outras unidades da federação (que em situação inversa teriam sim de reclamar, à luz do pacto federativo).
Os processos interpretativos não se prestam à subversão dos princípios. Sob todos os aspectos que se pregue, ainda que verificada incongruência infraconstitucional, deve-se obediência à Carta Fundamental. E todas as interpretações partem dela e somente nela encontram abrigo. Fora disso são meras contumélias.
Tanto subverte a Carta Maior o que ofende o princípio da isonomia como o que afronta o da separação de poderes
.A tarefa de julgar é difícil.
Decanta-se em verso e prosa que o julgador não pode ficar restrito à lei, quando ela seja injusta. Só que o excesso a isso acarreta situação de megalomania que exorbita da função jurisdicional e constitui-se em ofensa a um princípio tão importante no nosso direito constitucional positivo como o da igualdade: o da separação de poderes (art. 3°.).
O juiz passa a achar que, ante a inépcia lógica do legislador, pode substituir-se a ele e negar-lhe ou ampliar-lhe validade. Daí juízes que simplesmente fazem letra morta de uma lei, quando não compassadas com suas convicções (e por pior ou melhor que a lei seja).
Não se nega que é bem fácil render-se à tese ora confrontada. É bem palatável defender propostas liberais e cair nas graças dos réus, da mídia (muitas vezes mal-informada) e da consciência (cansada de ver a inépcia do sistema carcerário).
Mas, quem não tem coragem não serve pra julgar.
A Lei n°. 10.259/01 não expande os delitos albergados pela Lei n°. 9.099/95.
Se se tem ainda mais dúvida acerca do que antes se disse, a nova lei expressamente veda sua aplicação à justiça estadual (art. 20).
Mais ainda, conforme o Entendimento Uniforme n°. 08/02, da 3ª. Procuradoria de Justiça do Estado de São Paulo (autores: Carlos Eduardo Fonseca da Mata, Fábio Antonio Pineschi Hermann Herschander, Marco Antônio Garcia Baz, Tharcilio Toledo Neto, tornado público pelo Aviso n°. 62/02 da Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo, no DOE de 05.02.2002, p. 35), cuja transcrição parcial segue, o julgador – ao abrigar a tese de que houve ampliação do conceito de menor potencialidade criminal – não só esquiva-se de aplicar a lei, indo mais além e fazendo as vezes de legislador positivo, o que é absolutamente inadmissível:
"Em outras palavras, se por hipótese uma lei ofende o princípio da isonomia e se revela inconstitucional, não pode o Juiz estender o benefício decorrente da inconstitucionalidade a outros crimes e a outras penas, não previstos pelo Legislador. É que nesse campo o juiz atua como legislador negativo, apenas lhe sendo lícito declarar a inconstitucionalidade da lei. É defeso ao Julgador atuar como legislador positivo, com poder criador, ampliando os efeitos da decisão de forma a açambarcar outras hipóteses não previstas na lei. De outro modo o Judiciário se tornaria um superpoder, quebrando a independência e a harmonia entre os poderes da República".
.Vem a pêlo, por absoluta identidade de razões, o entendimento do STF aventado por Jorge Assaf Maluly e Pedro Henrique Demercian (A lei dos Juizados Especiais criminais no âmbito da Justiça Federal e o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, disponível na internet: http://www.direitocriminal.com.br, 17.08.2001), quando o STF enfrentou a progressividade da pena da Lei n°. 9.455/97, que criou os delitos de tortura:
"A Primeira Turma da Suprema Corte, julgando o Habeas Corpus nº 76.543, DJU de 17/04/98, em acórdão relatado pelo Ministro SYDNEY SANCHES decidiu contrariamente a essa pretensão, apresentando os seguintes argumentos:
‘4. A Lei n° 9.455, de 07.04.1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências, no § 7° do art. 1°, esclarece: ‘o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2°, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado’.
Vale dizer, já não exige que, no crime de tortura, a pena seja cumprida integralmente em regime fechado, mas apenas no início.
Foi, então, mais benigna a lei com o crime de tortura, pois não estendeu tal regime aos demais crimes hediondos, nem ao tráfico de entorpecentes, nem ao terrorismo.
Ora, se a Lei mais benigna tivesse ofendido o princípio da isonomia, seria inconstitucional. E não pode o Juiz estender o benefício decorrente da inconstitucionalidade a outros delitos e a outras penas, pois, se há inconstitucionalidade, o juiz atua como legislador negativo, declarando a invalidade da lei. E não como legislador positivo, ampliando-lhe os efeitos a outras hipóteses não contempladas.
5. De qualquer maneira, bem ou mal, o legislador resolveu ser mais condescendente com o crime de tortura do que com os crimes hediondos, o tráfico de entorpecentes e o terrorismo.
Essa condescendência não pode ser estendida a todos eles, pelo Juiz, como intérprete da Lei, sob pena de usurpar a competência do legislador e de enfraquecer, ainda mais, o combate à criminalidade mais grave’
As ponderações feitas pelo Ministro SYDNEY SANCHES sugerem que, segundo entendimento vitorioso no Supremo Tribunal Federal, a eventual incoerência do legislador, sendo mais condescendente com os possíveis autores de crimes federais, não autoriza o Poder Judiciário, a pretexto de restauração da isonomia, a substituir-se aos poderes políticos para a construção de uma regra que não foi editada: a ampliação dos rígidos limites que figuram no art. 61 da Lei nº 9.099/95" (os grifos são nossos).
Não fosse tudo isso, verifica-se que todo o trabalho parlamentar de discussão da norma dizia respeito à criação dos juizados especiais federais somente. Houve exaustivos debates. Não se cogitou em nenhum momento da ampliação de conceitos dados na Lei n°. 10.259/01, sendo inclusive que consignou a aplicação da Lei n°. 9.099/95 somente naquilo que não lhe contrariasse (art. 1°.).
.Ao longo de todo o exposto, a exegese dos processos interpretativos não deixa outra conclusão senão no desacerto da tese que defende a ampliação do conceito de crime de menor potencial ofensivo.
No que tange ao plano gramatical, pela letra do parágrafo único do art. 2°. da Lei n°. 10.259/01; no plano lógico, vez que há coerência do texto infraconstitucional com o constitucional, notadamente o parágrafo único do art. 98, e dos dois textos infraconstitucionais; no enfoque sistemático, vez que a novel lei é um microssistema normativo em compasso com a Carta Política; no contexto histórico, dado que todo o trabalho preparatório e de discussões só dizia respeito à criação dos juizados especiais federais e não à ampliação do conceito de crimes de menor potencial ofensivo; e no âmbito teleológico, considerando cristalino que a intenção do legislador não foi ampliar o conceito de menor potencial ofensivo, mas sim de instituir os juizados especiais federais.
Não só por todos esses, mas também pela caráter absoluto da norma constitucional que autoriza situações discriminatórias (in casu, pelo parágrafo único do art. 98), o que deve ser entendido como válido, à luz do poder de direito conferido ao constituinte derivado e também da discricionariedade do legislador penal, que é federal e no concreto não deu tratamento mais brando aos delitos praticados contra outros entes federativos (o que inversamente suscitaria graves repercussões no plano republicano).
Cumpre salientar que já em idêntico trilhar o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo no HC n°. 398.760-7, 11ª. Câmara, rel. Ricardo DIP, d.j. 25.02.02.
V – Componente social e sua desconsideração: riscos
Atravessa o direito penal um difícil momento em termos de credibilidade. A sociedade clama por maior efetividade. Contrapondo-se a tanto, a doutrina penalista de uma maneira geral tende a minimizar a intensidade ou a forma do jus puniendi.
A ineficácia crônica do sistema penitenciário – não do sistema penal, que à míngua do devido inteiro transpasse do plano normativo-axiológico para o pragmático ainda carece de informações científicas precisas quanto à sua falibilidade – redunda na busca do legislador por mecanismos diversos de maneira a contemporizar a situação.
Só que todas as soluções têm caminhado, a contrario sensu da expectativa geral da população, em medidas de descriminação ou parcimônia com os chamados delitos que de uma ou de outra forma se entendem pouco ou nada ofenderem a ordem jurídica.
Muito difícil e muito arriscado é implantar tamanha ideologia no nosso país, ao menos na esfera judicial, sem que se tenha a exata noção do que acontece nos mais diversos rincões do Brasil (um furto em uma cidade pequena tem um reflexo social bem diverso daquele praticado em uma grande cidade, assim como a utilização de drogas, entre outras hipóteses facilmente cogitáveis), substituindo-se à própria comunidade na tarefa de dizer o que lhe ofende ou não, penalmente falando.
Certo é que tem-se defendido que medidas de endurecimento das sanções penais (como a Lei n°. 8.072/90) não têm diminuído a criminalidade. Mas, ninguém a não ser o legislador tem autorização para representar ou tentar representar os anseios sociais. Quando é o julgador quem assim procede, temos uma dupla e grave repercussão: a) a interferência indevida na função estatal diversa; b) a ausência de mecanismos do povo para se opor ao entendimento jurídico com o qual não compactua – no legislativo, pelo menos, ele pode eleger os membros, que vindos de locais diversos, terão legitimidade para dizer o que é ou não penalmente relevante.
VI – Arremates
É legítima a Lei n°. 10.259/01, criando um microssistema normativo constitucionalmente assegurado e que não ofende o princípio da isonomia.
Justamente por ser um microssistema normativo, oriundo do legislador competente para fazê-lo, não cabe invocar sua aplicabilidade a outros tipos penais que não os ali previstos, reconhecida embora o tratamento dicotômico dado em função de situações concretas.
Em assim o fazendo o Judiciário, estará vestindo a roupagem de legislador positivo e ferindo frontalmente o princípio da separação de poderes.
O contexto social brasileiro há de ser levado em conta na construção jurídica que pretenda representar os anseios penais dos membros da comunidade.
Tanto subverte a Carta Maior o que ofende o princípio da isonomia como o que afronta o da separação de poderes, mormente quando se fere este crendo-se equivocadamente assegurar àquele.