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A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdade fundamentais:

linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira

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Agenda 01/07/2002 às 00:00

5. Proteção Penal dos Direitos e Liberdades Fundamentais

Com a exposição das linhas mestras do direito penal, temos já a possibilidade de dar uma resposta à nossa problemática, que consiste em indagar sobre a idoneidade do direito penal para preservar as pessoas das agressões de origem discriminatória. Ora, como já adiantamos, a Lei Fundamental determinou expressamente a criminalização da prática do racismo (art. 5º, XLII, CR), posicionando-se coerentemente em relação aos princípios fundamentais e à orientação filosófica nela plasmados. Mas deixa de orientar o legislador penal com relação às outras formas de discriminação que, como sabido, são inúmeras e capazes de vulnerar a noção que se tenha da dignidade da pessoa humana. Ecoa, então, a indagação: estará o direito penal autorizado a intervir naqueles conflitos referidos a atos de discriminação?

A resposta, ao nosso ver, só poderá ser afirmativa. Isto porque a função do direito penal está para muito além de estabelecer os marcos mais ou menos precisos da liberdade: coordenando-a com um sentido e com uma ordem, de forma a estabelecer uma sociedade consciente de um mínimo ético-jurídico. Sua função vincula-se, ainda, à preservação de bens jurídicos que, grosso modo, se reconduzem à noção mais ampla da(s) liberdade(s) e da esfera de desenvolvimento humano. E, segundo a lição Roxin, "No Estado moderno, junto a essa proteção de bens jurídicos previamente dados, aparece a necessidade de assegurar, se for necessário com os meios do direito penal, o cumprimento das prestações públicas de que depende o indivíduo no âmbito da assistência social por parte do Estado", arrematando seu ponto de vista de que o direito penal ocupa posição de destaque entre as funções do Estado, porque "só com a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e garantia das prestações públicas necessárias para a existência permitem ao cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade, que nossa Constituição [alemã] considera como pressuposto de uma existência humana digna" [45]. As prestações públicas de um Estado, estruturado segundo o modelo de welfare State, como indubitavelmente perseguiu nosso constituinte, incluem uma ampla gama de compromissos do poder político, tendente a tornar efetivos os direitos e garantias fundamentais que, em análise mais atenta, não podem padecer de óbices surgidos com atos de discriminação, sob pena de macular-se o princípio da dignidade da pessoa humana. É nesta área de conflitos que defendemos a hipótese de intervenção penal. Por outro lado, já a um nível mais elementar de análise, podemos dizer, à guisa de exemplo, que a partir da noção do bem jurídico liberdade, poderá verificar-se a idoneidade do direito penal para tutelar a liberdade de fé religiosa ou de ingresso no mercado de trabalho, desde que outros meios do sistema social se mostrem ineficazes, também, desta forma, assegurando a livre esfera de desenvolvimento humano.

Por outro lado, o legislador penal poderá arrimar-se na Lei Fundamental para adotar tal política criminalizante. É que, além de expressamente estar autorizado para reprimir as condutas de racismo, tem a prerrogativa de lançar proteção aos direitos e liberdades fundamentais, muitos deles intrinsecamente relacionados a bens jurídicos. A Lei Fundamental, embora não esclareça a natureza da punição, determina-a contra "(...) qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (art. 5º, XLI, CR).

5.1. Paradigmas Penais

A situação penal em países como a Espanha e Portugal – cujas constituições (de 1978 e de 1976, respectivamente) seguem o modelo de welfare State e que se plasmam a partir do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana – já anda mais bem definida em matéria de proteção daqueles bens jurídicos que tenham repercussão no âmbito da esfera de livre desenvolvimento humano. O código penal espanhol de 1995, estabelece, no título XXI, "os delitos contra a Constituição", onde vão localizar-se, no capítulo V, os "delitos relativos ao exercício dos direitos fundamentais e liberdades públicas e ao dever de cumprimento da prestação social substitutiva". Seus artigos 510 a 512 [46] tratam da fenomenologia dos atos discriminatórios, abrangendo inúmeras condutas relacionadas com o racismo, anti-semitismo, ideologia, religião ou crenças, situação familiar, etnia, origem nacional, sexo, orientação sexual e enfermidade ou menosvalia. De forma que, ao nosso ver, se guiou o legislador penal daquele país pelos princípios humanistas, promovendo a dignidade da pessoa humana e, por conseqüência, a igualdade material, necessária à formação da esfera de livre desenvolvimento humano.

O código penal português de 1995, de inequívoco pendor minimalista, trata, no título III dos "crimes contra a paz e a humanidade", dispondo o seu capítulo II sobre os "crimes contra a humanidade". Menos abrangentes que a legislação espanhola, as disposições penais portuguesas contidas nos arts. 239º e 240º [47], referem-se ao genocídio, com o fim de destruir, no todo ou em parte, grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, além de tratarem da discriminação racial.


6. Situação Penal Brasileira

Parece-nos que num país com formação populacional tão heterogênea como o nosso, onde ingressam diferentes raças, etnias e culturas, o tratamento jurídico-penal dos fenômenos ligados a essa característica ocupam lugar de destaque. É nessa área que também o direito penal exercerá a função de controle dos desvios sociais, a modo de preservar a pax publica e as liberdades. E mais. Estará iniludivelmente orientado por um sentido de preservação da dignidade da pessoa humana.

Entre nós o tema não é novo. A obra de Gilberto Freyre e a iniciativa de Afonso Arinos determinaram o aparecimento da Lei n.º 1.390/51, de 3 de julho, a qual leva o nome deste, tratando de crimes referidos ao preconceito de raça e de cor. A Lei Afonso Arinos, que apresentava problemas de técnica legislativa, especialmente por ser casuísta [48], foi modificada pela Lei n.º 7.437/85, de 20 de dezembro, que a incluiu entre as contavenções penais.

6.1. Lei dos Crimes de Preconceito de Raça ou de Cor

Atendendo ao mandamento constitucional, o legislador editou a Lei n.º 7.716/89, de 5 de janeiro, que não ficava livre de críticas. Nela, como no regime legal que a antecedeu, puniam-se, unicamente, os atos de preconceito referidos à cor e à raça, de modo puramente casuísta. O legislador resolveu estabelecer um rol de situações (talvez as mais comuns) que se identificavam com as discriminações raciais e de cor, de forma a não contemplar inúmeras outras em que o preconceito é factível.

Já em 1990 a Lei n.º 8.081, de 21 de setembro, veio a altera a lei dos crimes de preconceito de raça e de cor, para introduzir o artigo 20, tratando dos casos de induzimento ou incitação à preconceito ou discriminação de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional através dos meios de comunicação social. A melhora qualitativa da lei era parcial, pois apenas contemplou o crime de induzimento ou incitação, deixando de lado as outras condutas que muito bem podiam referir-se aos grupos étnicos, religiosos ou de procedência nacional.

Somente tivemos um avanço significativo da matéria com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9.459/97, de 13 de maio. Punem-se, agora, os preconceitos ou atos de discriminação referidos à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Atualmente, o incitamento ou indução a condutas intoleráveis, são punidos não apenas quando praticados pelos meios de comunicação social, mas quando levados a efeito através de qualquer meio.

Houve, como se vê pelo rápido perpassar de olhos no conteúdo da lei, uma grande abertura do regime penal, de forma a punir variadas formas de discriminação. Mas, ainda, sujeita-se a reparos. O legislador olvidou-se, v.g., dos casos de discriminação decorrentes de enfermidades [49] (e parece-nos existir, em realidade, tais atos discriminatórios quanto às pessoas infectadas com o vírus do HIV), de orientação sexual, de convicções políticas ou filosóficas, sendo que estas representam liberdades fundamentais tuteladas por nossa constituição. Por outras palavras, melhor teria caminhado o legislador penal se tivesse seguido o exemplo espanhol, que destinou proteção penal aos direitos e liberdades fundamentais.

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6.2. Modalidade Especial de Injúria

A referida Lei n.º 9.459/97 também provocou a alteração do art. 140, do Código Penal, acrescentando-lhe o parágrafo 3º. Assim, "Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem", a pena será de reclusão de um a três anos, além de multa. Como se vê, o legislador fundou neste tipo de conduta uma modalidade autônoma de crime. E mais. Com a pena sensivelmente mais elevada em relação às demais categorias de injúria, deixando claro tratar-se de um crime contra a honra que merece especial reprimenda penal. A nós nos parece injustificável a inovação que se fez.

Muito embora a Lei Fundamental estabeleça direitos e liberdades regidos pelo princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, garantindo à diversidade cultural, racial e étnica igualdade de tratamento, repudiando, expressamente, atos de discriminação e de racismo, tal não conduzirá a uma inapelável política de maior intervenção penal. Principalmente nos moldes concretizados no novel apêndice do art. 140, do Código Penal., por três especiais motivos. Primeiro porque, como dito anteriormente, não existe coincidência nas esferas de proteção determinadas pelo ordenamento jurídico-constitucional e pelo ordenamento jurídico-penal: ambos têm por característica a fragmentaridade, por isso não abarcando todos os interesses sociais ou bens jurídicos. Além de que as escolhas do direito penal recaem sobre aqueles bens jurídicos que têm dignidade penal e que carecem da tutela mais gravosa. Disso advindo como conclusão óbvia que, a não ser em casos expressos, a tutela constitucional não determina a necessária intervenção penal. Por outras palavras, os enunciados fundamentais que garantem o respeito ao direito de diferença e ao pluralismo social brasileiro, não determinam a intervenção jurídico-penal. Em segundo lugar, o referido parágrafo 3º acaba por expressar um pendor meramente simbólico do direito penal, já que no campo teleológico não se destina a repreender o racismo e os atos de discrminação, mas, apenas, e de forma especial, as agressões contra a honra, bem jurídico de natureza individual em que se protege o valor social e moral da pessoa [50]. Uma injúria verbal dirigida, v.g., contra um palestino, na qual o ofensor destaca o propalado caráter avarento dos membros de sua nação, atinge unicamente a honorabilidade da pessoa do ofendido. Em terceiro lugar, este dispositivo penal agride, indubitavelmente, o princípio da proporcionalidade e, por conseqüência, aquela noção clássica que se tem do direito, imortalizada nas lições de Radbruch, segundo à qual o direito é considerado como elemento de concretização de um ideal de justiça. Consoante o atual estágio legal, uma ofensa como a referida no exemplo acima será mais grave que uma referida ao caráter mais íntimo do ofendido, v.g., que diga respeito à sua orientação sexual. Será, até mesmo, mais grave (ao menos no plano formal da legislação) do que uma injúria real praticada na presença de muitos circunstantes. Quer dizer, o legislador penal criou categorias diferentes do bem jurídico honra que, ao nosso ver, é injustificável, quer por razões ontológicas [51], quer pela razão do thelos daquele dispositivo penal.


Conclusão

Para nós não resta dúvida de que a (re)definição do direito penal (material), que entre em diálogo constante com a escala de valores axiológicos na qual se enforma a sociedade, nela consultando as áreas de consenso que reclamam a intervenção penal – ali, onde se verificarem bens jurídicos com dignidade penal e carentes de tutela específica – torna-o apto a proteger os direitos e liberdades fundamentais. Mas de forma a respeitar a orientação filosófica e os princípios plasmados na Lei Fundamental, especialmente para que não se criem categorias penais que conflituem com a noção de dignidade da pessoa humana e com o princípio da igualdade. Ao nosso ver, o legislador brasileiro, orientado pela realização de um direito penal simbólico, invade determinadas áreas que não apelam para a intervenção penal e, em outras, simplesmente relega ao olvido fenômenos de discriminação dignos de proteção. Parece-nos que podia, ao modo como fez o legislador espanhol, ter consultado as normas fundamentais e a criminologia.


Notas

1. Cfr. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 23ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1984. passim.

2..O autor da mais célebre obra sociológica sobre a formação nacional, refere alguns mitos, que traçam um estereótipo de malévolo do negro. Menciona que "Ainda hoje [nos idos de 1930, quando surgiu a obra] se afirma em Pernambuco que certo ricaço do Recife, não podendo se alimentar senão de fígado de criança, tinha seus negros por toda parte pegando menino num saco de estopa" (op. cit., p. 328). Outra lenda dos interiores brasileiros, é a do negro do surrão, que raptava meninas, as quais eram exploradas para que conseguisse esmolas (op. cit., pp. 328-329). Por fim, do hábito de as casas coloniais possuírem um negro da mesma idade do filho-família, para servir de companheiro, mas que ao fim e ao cabo era "apertado, maltratado e judiado como se fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano como os judas de sábado de aleluia, e não de carne como os meninos brancos (...)", restaram as brincadeiras das crianças das zonas rurais, destinando os papéis inferiores aos negros, como o de boi que puxa a carroça (op. cit., p. 336).

Interessante notar que, apesar de sua formação de humanista, Gilberto Freyre não deixou de usar o termo popular "judiar", de forte conotação preconceituosa em relação à etnia judaica, para mencionar os atos de crueldade.

3...E no Brasil de população jovem e de maioria branca, os preconceitos já não se restringem à idade e à cor da pele. Já ninguém nega que para a seleção de empregos preponderam a boa aparência e, até mesmo, uma constituição física mais consentânea com os atuais padrões de beleza.

4...Sobre este princípio reitor dos direitos fundamentais, cfr. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. tomo IV. 2ª ed. revista e atualizada. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. Pp. 166-176; o nosso Habeas corpus: Crítica e perspectivas (um contributo para o entendimento da liberdade e de sua garantia à luz do direito constitucional). 2ª ed. revista e ampliada. Curitiba: Juruá, 2001. pp. 93-98. E, por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987. pp. 100-103, 111-113, 130.

5...Referimo-nos aos direitos programáticos, que se acham numa situação compromissória assumida pelo Estado, mas que não são auto-aplicáveis.

6...O constituinte, embora tenha determinado a punição dos atos contra os direitos e liberdade fundamentais (inc. XLI, do art. 5º, da CR) – aí incluindo-se aqueles relacionados às discriminações das mais diversas, como por motivo de religião ou de sexo – determinou um tratamento penal especialmente gravoso contra a prática de racismo, o que não nos parece coerente com o sistema de princípios fundamentais. Primeiro porque há outras formas de discriminação igualmente repudiáveis. A xenofobia que se vai estendendo por boa parte da Europa, já causou até mortes de turcos e de orientais na Alemanha e na França. A Grã-Bretanha vive os horrores da secular luta armada dos irlandeses, gerada por diferenças religiosas. O marroquino que entra em Espanha é muitas vezes maltratado. E muito mais poderíamos falar, mas fiquemos ainda com o mais expressivo fato histórico não muito distante, que foi o genocídio de judeus e ciganos durante a 2ª Grande Guerra, motivado pelos interesses utilitaristas do social-nacionalismo alemão e pelo inegável objetivo de exterminação destas etnias. Em segundo lugar, temos de destacar que um sistema de direitos e garantias fundamentais presidido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, não pode estabelecer graus distintos para sua proteção e efetivação. É que, estando diretamente ligada aos princípios da universalidade e da igualdade, a dignidade da pessoa humana torna-se um suposto do homem "- de toda a espécie humana, sem que haja razões para distinções de grau ou de quantidade de dignidade (...)". (No nosso Habeas corpus: crítica e perspectivas..., cit., p. 94). O que implica afirmar que toda e qualquer discriminação afeta a dignidade da pessoa humana, merecendo repúdio. Em uma palavra, não há discriminações mais graves que outras, apenas expressões com conseqüências diversas.

7...Para análise mais detida sobre a matéria, cfr. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra editora, 1991, p. 51 e ss.; "A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.- Lei 26784 de 20 de janeiro) à luz do conceito de bem jurídico" in Direito Penal Económico. Coimbra: Centro de Estudos Judiciários, 1985, p. 69-105, maxime p. 73-96; DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 56 e ss.; CORREIA, Eduardo. Direito criminal, vol. 1 (reimpressão). Coimbra: Livraria Almedina, 1996, p. 277 e ss.; ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, trad. para o castelhano de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Gracía Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Editorial Civitas, 1997, p. 54 e ss.; CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 41 e ss. Entre nós, PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2ª ed. ver. e ampliada. São Paulo: RT, 1997. Por fim, o nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos rumos e redefinições (em busca de um direito penal eficaz). Curitiba: Juruá, 2000, p. 29 e ss.

8...In Consentimento e acordo, cit., p. 37.

9...Figueiredo Dias refere que o conceito material de crime resulta da função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídico-penais, ou seja, "(...) bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena". In Questões fundamentais, cit., p. 62.

10....Não se pode esquecer que apesar de Feuerbach ter deixado de incluir no Código Penal da Baviera (1813), de sua autoria, condutas como a heresia, a blasfêmia, a bigamia e o incesto, não rompe de vez com o sistema então dominante e remete para o direito penal de polícia – "que zelava pelo bem-estar do cidadão" – a normativização de condutas atentatórias contra a religião e outros desvios da moral reinante. Cfr. o nosso Dogmática penal..., cit., p. 26-27.

11...PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 27-28.

12...Ibidem, p. 28.

13...Neste ponto chamamos atenção, seguindo Regis Prado, para o fato de que Birnbaum introduziu o conceito de bem jurídico, rompendo com a teoria do direito subjetivo de Feuerbach (cfr. Bem jurídico-penal, cit., p. 29). Mas é importante salientar que o conceito de Rechtsgut foi, em realidade, utilizado por Binding, no seu Die Normen.

14...Em nosso Dogmática penal..., cit., p. 33.

15...Ibidem, ibidem.

16...ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo..., cit., p. 39.

17...CORREIA, Eduardo. Direito Criminal, cit., p. 278.

18...Cfr. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., cit., p. 48.

19...DIAS, Jorge de Figeueiredo. Questões fundamentais..., cit., p. 62.

20...ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal, trad. para o castelhano de Diego Manuel Luzón Peña. Madri: Reus, 1976, p. 46-47.

21...Uma tal condição de inflação de leis penais, pode ter como significado aquilo que entre nós, numa atitude combativa, Silva Franco denomina de criação de direito penal simbólico, que se origina de uma "política falaciosa", à qual nossos legisladores recorrem para transmitirem aos cidadãos a idéia de realização da pax publica. Cfr. FRANCO, Alberto Silva. "Arma de brinquedo", Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 5, n.º 20, out.-dez., 1997, p. 71-74 e, ainda, "Do princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, fasc. 2º, abril-junho, 1996, p. 175-187.

Jakobs é mais contundente na sua crítica, chegando a afirmar que o demasiado intervencionismo penal é próprio dos regimes totalitários, onde se cria um direito penal de inimigos, caracterizado pela otimização da proteção de bens jurídicos. Bem diferente, portanto, do que se passa nos regimes democráticos, onde deve vigorar o modelo de direito penal de cidadãos, que tem por objetivo otimizar as esferas de liberdade. Cfr. JAKOBS, Günther. Fundamentos del derecho penal, trad. para o castelhano de Manuel Cancio Meliá e Enrique Peñaranda Ramos. Buenos Aires: Ad-hoc, 1996, p. 190

22...Lembre-se da velha regra de Ulpiano, segundo a qual cogitationis poenam nemo patitur. Desta decorrendo o imperativo de que de internis non judicat praetor, as quais nosso legislador não prestou a devida atenção quando tratou dos crimes de arma de fogo, entre eles incluindo condutas que sequer representam perigo.

23...Cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo. "O direito penal entre a ‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade de risco’". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 9, n.º 33, janeiro-março de 2001, p. 39-65. O autor refere sobre os novos horizontes do direito penal voltado para a proteção de bens postos em perigo pelo avanço da tecnologia, incumbindo ao direito penal o papel de, v.g., punir as condutas que causem dano ao ambiente.

Interessante notar que os dias atuais revelam uma acentuada consciência de preservação do ambiente para as gerações futuras, como paradigmaticamente ficou plasmado no art. 225 da nossa CR que, em seu parágrafo 3º, determina a responsabilidade penal daqueles cuja conduta o lesem.

24...Noção mais desenvolvida em nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos e redefinições, cit., p. 38 e ss.

25...A desjudiciarização plasmada na Lei dos Juizados Especiais (que alguns de nossos juristas teimam em categorizar como sendo lei de índole despenalizadora), imbui-se da tentativa de evitar os estigmas do processo penal contra o delinqüente ocasional e de menor potencial ofensivo. E, neste sentido, apresentando forte propensão para a eficaz prevenção especial.

26...Mais desenvolvidamente em nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos rumos e redefinições, cit., p. 102 e ss.

27...In Lehrbuch Deutschen Strafrechts, apud Roxin. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1986, p. 59.

28...Sobre o tema, além da bibliografia vária estrangeira, pode-se consultar o nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos rumos e redefinições, cit., p. 83 e ss.

29...DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais (...), cit., p. 67.

30...Ibidem, ibidem.

31...Ibidem, ibidem.

32...Só não podendo, como adverte Ferreira da Cunha, "criar uma ordem de bens jurídico-penais de forma a inverter a ordem de valores constitucional". (FERREIRA DA CUNHA, Maria da Conceição. Constituição e crime, cit., p. 328). Assim, o legislador penal não poderá criar um regime mais brando para os chamados crimes hediondos, sob pena de inconstitucionalidade.

33...As inúmeras experiências sobre reprodução humana, avançando para a possibilidade de clonagem de seres humanos, colocam em causa não só o bem jurídico vida mas, também, a dignidade da pessoa humana.

34...O preâmbulo da Constituição Federal de 1967, ao expressar que "O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição do Brasil", deixa clara aquela pretensão do poder político em estabelecer determinada ordem. Maluf, ao analisar o preâmbulo, afirma que ele "Deixa patente que a Constituição origina-se do poder constituído. É uma expressão da autoridade estatal. Em outros termos: provém do Estado, não da Nação; do governo, não do povo". (MALUF, Sahid. Direito constitucional, 17ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1985, p. 72).

35...A prova disso encontrava-se na maciça propaganda patriótica veiculada pelos meios de comunicação e pelo ensino da disciplina de educação, moral e cívica nos bancos escolares.

36...Miranda vai mais para além ao encontrar nos direitos econômicos, sociais e culturais uma "fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas". (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, cit., p. 167).

37...O constituinte andou bem ao proibir a pena de morte, já que reconheceu o valor eminente da pessoa humana e de seu bem maior. Mas ao permitir sua aplicação no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, "a", da CR), deixou de gizar-se por aquelas linhas filosóficas, sugerindo-nos a leitura da existência de dois graus de dignidade: a do criminoso comum e a do criminoso de guerra. Por outras palavras, a Lei Fundamental estabelece uma linha de invencível incongruência com os enunciados ontológicos da dignidade da pessoa humana. Nosso constituinte teria obrado melhor se tivesse seguido o exemplo da CR de Portugal, cujo art. 24º prevê, de forma coerente com o princípio da dignidade da pessoa humana, que: "1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte".

38...Ut supra, p. 169.

39...SABBÁ GUIMARÃES, Isaac. "Tolerância: elemento de intercorrência na redefinição do direito penal", Revista Jurídica. N.º 281, março de 2001, p. 65- 79, p. cit. 65-66.

40...LATORRE LATORRE, Virgilio. Desde la tolerancia. Barcelona: Cedecs Editorial, 1998, p. 83.

41...GARZÓN VALDÉS, apud LATORRE LATORRE, Virgilio, op. cit., p. 85.

42..SABBÁ GUIMARÃES, Isaac. "Tolerância...", cit., p. 70.

43...Basta atentarmos para o fenômeno da derrocado do regime militar nos países sul-americanos.

44...ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal, cit., p. 20-21.

45...ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal, cit., p. 20.

46...Art. 510.1. Os que provocarem a discriminação, o ódio ou a violência contra grupos ou associações, por motivos racistas, anti-semitas, ou outros referentes à ideologia, religião ou crenças, situação familiar, ao fato de pertencerem seus membros a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou menosvalia, serão punidos com a pena de prisão de um a três anos e multa de seis a dose meses. 2. Serão castigados com a mesma pena os que, com conhecimento de sua falsidade ou temerário desprezo em relação à verdade, difundirem informações injuriosas sobre grupos ou associações em relação à sua ideologia, religião ou crenças, à pertença de seus membros a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou menosvalia. Art. 511. 1. Incorrerá na pena de prisão de seis meses a dois anos e multa de doze a vinte e quatro meses e inabilitação especial para emprego ou cargo público por um a três anos particular encarregado de um serviço público que denegue a uma pessoa uma prestação a que tenha direito por motivo de sua ideologia, religião ou crenças, sua origem étnica ou racial, nacional, seu sexo, orientação sexual, situação familiar, enfermidade ou menosvalia. 2. As mesmas penas serão aplicáveis quando os feitos se cometerem contra uma associação, fundação, sociedade ou corporação ou contra seus membros por motivo de sua ideologia, religião ou crenças, a pertença de seus membros ou de um deles a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual, situação familiar, enfermidade ou menosvalia. 3. Os funcionários públicos que cometam alguma das condutas previstos neste artigo, incorrerão nas mesmas penas em sua metade superior e na inabilitação especial para emprego ou cargo público por dois a quatro anos. 512. Os que no exercício de suas atividades profissionais ou empresariais denegarem a uma pessoa uma prestação a que tenha direito em razão de sua ideologia, religião ou crenças, sua ligação a uma etnia, raça ou nação, seu sexo, orientação sexual, situação familiar, enfermidade ou menosvalia, incorrerão na pena de inabilitação especial para o exercício de profissão, ofício, indústria ou comércio por um período de um a quatro anos (texto traduzido livremente por nós).

47...Art. 239º (genocídio) 1. Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal, praticar: a) homicídio de membros do grupo; b) ofensa à integridade física grave de membros do grupo; c) sujeição do grupo a condições de existência ou a tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, susceptíveis de virem a provocar a sua destruição, total ou parcial; d) transferência por meios violentos de crianças do grupo para outro grupo; ou e) impedimento da procriação ou dos nascimentos no grupo. 2. Quem, pública e directamente, incitar a genocídio é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos. 3. O acordo com vista à práctica de genocídio é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. Art. 240º (discriminação racial) 1. Quem: a) fundar ou constituir organização ou desenvolver actividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio, ou à violência raciais, ou que a encorajem; ou b) participar na organização ou nas actividades referidas na alínea anterior ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento; é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 2. Quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social: a) provocar actos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa de sua raça, cor ou origem étnica; ou b) difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua cor ou origem étnica, com a intenção de incitar à discriminação racial ou de a encorajar, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

48...Cfr. as críticas de SZNICK, Valdir. "Contravenção por preconceito de raça, cor, sexo e estado civil", Justitia, vol. 138, 2º trimestre, 1987.

49...Mesmo a Lei n.º 9.029/95, de 13 de abril, que proíbe a prática discriminatória nas relações de emprego, deixa de tratar do problema.

50...Segundo a lição de Heleno Fragoso, a injúria constitui-se de imputação de "(...) vícios ou defeitos morais, que, como em todos os crimes contra a honra, atinge a pretensão ao respeito inerente à dignidade da pessoa" (in Lições de direito penal, parte especial, vol. I. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 191). Magalhães Noronha, em análise mais percuciente e, sem dúvida, com maior inclinação para a doutrina tradicional, afirma que "Além da honra objetiva, isto é, do conceito ou aprêço que a pessoa goza na vida comunitária, tem ela também honra subjetiva, ou seja, a estima própria, o juízo que faz de si mesma, a sua dignidade ou decôro, que podem ser ofendidos pela injúria. Esta exprime sempre uma opinião do agente, que traduz desprêzo ou menoscabo do injuriado" (in Direito penal, 2º vol., 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 123).

51...A honra é insuscetível de graduação, por referir-se a um sentimento pessoal. Por isso que merece proteção destinada a dignificar o valor em si. De forma que não podemos compreender, v.g., que uma injúria contra uma pessoa motivado pelo fato de pertencer à determinada etnia possa ser mais gravosa que outras ofensas à honra ou ao decoro.

Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdade fundamentais:: linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2955. Acesso em: 5 nov. 2024.

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