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Tutela jurídica dos direitos transindividuais em um Estado Democrático de Direito

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Agenda 07/10/2014 às 17:07

Há que se curar a surdez do “legislador”, para que ouça os gritos das novas demandas sociais.

1. DOS DIREITOS INDIVIDUAIS AOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

O desenvolvimento do Direito encontra-se estreitamente ligado à evolução do Estado, de modo que dificilmente se pode visualizar um fenômeno sem tomar em conta o outro.

A primeira forma de Estado Moderno foi o Absolutista, organização que centralizava o poder no soberano, uma vez que seu estabelecimento deu-se desacompanhado de Constituições. Foi apenas com o Iluminismo que sobreveio a elaboração de Constituições, de Estados constitucionais, portanto. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho: “a ideia de lei fundamental é inseparável da razão iluminista que acreditava ser possível, através de um documento escrito (produto da razão), organizar o mundo e realizar um projecto de conformação política.” [1]

Assim, em uma configuração inicial, a partir de um Estado Liberal, o Direito, também de cunho liberal – produto de um Estado absenteísta – privilegiava os direitos e liberdades individuais, criando, assim, um espaço de proteção dos indivíduos contra o Estado. Espaço de não-atuação estatal, proporcionava a auto-regulação dos indivíduos, que encontrava limite na esfera de incolumidade alheia.

Liberdade e propriedade são exemplos desses direitos negativos, campo de não ingerência, de inércia estatal, representando a primeira dimensão[2] dos direitos.

Ao Poder Legislativo bastava a criação de normas que garantissem um espaço de não atuação. Possuía liberdade de conformação, não encontrando muitos limites em sua tarefa, característica típica do Positivismo Jurídico. Separação entre Direito e Moral, entre política e economia, e entre Estado e sociedade civil, também constituem traços marcantes dessa fase Liberal.

Forçado por um quadro em que se sucederam grandes guerras mundiais, além de regimes autoritários, o Direito passa a exercer função positiva, acompanhado por um Estado que, além de um caráter negativo em face dos direitos e liberdades individuais, assume postura de promoção de novos direitos, que, nessa quadra, representam anseio por ações sociais.

As transformações e evolução sociais reclamam por um modelo de Direito e Estado que responda às demandas de direitos de natureza positiva, tais como direitos econômicos, sociais, culturais, fundamentados em parâmetros de igualdade. Segundo Norberto Bobbio:

ocorreu a passagem dos direitos de liberdade - das chamadas liberdades negativas, de religião, de opinião, de imprensa, etc. - para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado. (…) passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus (…) para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (...) até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais.[3] (p. 63-4)

Já não basta apenas o respeito aos direitos e liberdades individuais, senão que se faz imprescindível a concretização desses direitos sociais, conhecidos como de segunda dimensão.

O centro de atuação estatal passa do Poder Legislativo, e sua tarefa de criação de normas de proteção em sentido negativo, ao Poder Executivo, exigindo-se deste não apenas o respeito às liberdades individuais, mas, sim, a materialização de comandos voltados à promoção dos desígnios de igualdade material-social. Nas palavras de Jose Luis Bolzan de Morais:

no limiar do século XX (...) nova idéia de Estado – em muito ainda próxima do perfil liberal – o qual passará a ter funções positivas, deixando de lado o seu feitio minimalista atrelado às seguranças interna e externa. O papel do Estado passa, então, a regulador e promotor do bem-estar social. É a idéia do welfare state que se comporá efetivamente no pós-45, onde o aspecto promocional passa a integrar definitivamente o vocabulário jurídico-político do século XX. [4]

O decorrer do século XX revela, entretanto, a crise da era dos direitos sociais, denunciados e desacreditados em razão de sua inefetividade. Daí, volta-se o olhar a direitos pautados por novos ideais.

Os direitos de terceira dimensão exsurgem de alvitres de solidariedade e fraternidade. São direitos de titularidade transindividual, coletivos e difusos, relacionados ao desenvolvimento, qualidade de vida, meio ambiente, mercado consumidor etc.[5] Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, a partir da década de 60 "começou a desenhar-se uma nova categoria de direitos humanos vulgarmente chamados direitos da terceira geração. Nesta perspectiva, os direitos do homem reconduzir-se-iam a três categorias fundamentais: os direitos de liberdade, os direitos de prestação (igualdade) e os direitos de solidariedade"[6].

A tensão entre os poderes estatais passa a residir no Poder Judiciário, mormente na jurisdição constitucional, não havendo mais plena liberdade de conformação do Poder Legislativo (Estado Liberal), limitado que se encontra em sua tarefa pelos ditames constitucionais. Ao Executivo tampouco é suficiente uma atuação de respeito às liberdades individuais e promoção de ações sociais (Estado Social). Está-se diante de um novo modelo: Estado Democrático de Direito.

A Constituição de 1988 inscreve em seu dispositivo de abertura: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”.

O advento da Carta de 1988 estabelece novo modelo de Estado; não mais – apenas – liberal, tampouco social, mas, sim, Estado Democrático de Direito. O que se extrai de tal expressão é a superação das duas primitivas formas de Estado (e Direito), com a superveniência de novos lindes e novas expectativas relativamente aos modelos pretéritos. Consoante Lenio Streck, "se no paradigma liberal o Direito tinha a função de meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado-Sociedade, no estado Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Welfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão (...) passa para o Poder Judiciário ou os Tribunais Constitucionais".[7]

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Em razão mesmo da crise de inefetividade da feição Social[8], não mais é suficiente a proteção da esfera individual dos cidadãos em face do Estado, tampouco a promoção de seus direitos sociais é medida satisfatória. O Estado Democrático de Direito, sem abdicar as dimensões individuais e sociais dos direitos, assume papel compromissário, dirigente e, principalmente, transformador diante de uma sociedade em que se impõe a iminência de direitos transindividuais, de direitos fundamentais-sociais. Valho-me novamente da lição do professor gaúcho ao afirmar que, mais do que procedimentos, "a Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito apresenta, a partir de uma revolução copernicana do direito constitucional, a determinação da realização substantiva dos direitos sociais, de cidadania e aqueles relacionados diretamente à terceira dimensão de direitos. Para tanto, o Direito assume uma nova feição: a de transformação das estruturas da sociedade".[9]

Os compromissos inerentes a um Estado Democrático de Direito são denunciados por classes de – novos – direitos. Coletivos[10], difusos[11], individuais homogêneos[12], enfim, direitos transindividuais, emergem de uma sociedade de relações complexas, sedentos por proteção e concretização.

Muitos desses direitos de terceira dimensão são também direitos fundamentais (como o direito do consumidor e o direito ambiental). E como direitos fundamentais, a preocupação com sua proteção e concretização revela-se ainda maior, na medida mesma de sua importância e do locus jurídico ocupado por tais direitos.

Sua dimensão objetiva reflete dois imperativos: “obrigatoriedade de o legislador actuar positivamente, criando as condições materiais e institucionais para o exercício desses direitos”[13], e “fornecimento de prestações aos cidadãos, densificadoras da dimensão subjectiva essencial destes direitos e executoras do cumprimento das imposições institucionais”[14].

Segundo Luís Roberto Barroso:

Nas últimas décadas verificou-se o desenvolvimento florescente de uma nova categoria de situações subjetivas que passou a merecer proteção judicial: a dos interesses coletivos e difusos. A princípio, evitou-se o emprego do termo direitos para identificar tais bens jurídicos, por refugirem eles ao esquema clássico dos direitos subjetivos, quer quanto à sua titularidade quer quanto à sua fruição. É que os direitos difusos – e esta foi a expressão que prevaleceu – apresentam singularidades, assim do ponto de vista subjetivo como objetivo. De fato, caracterizam-se eles por pertencerem a uma série indeterminada de sujeitos e pela indivisibilidade de seu objeto, de forma tal que a satisfação de um dos seus titulares implica na satisfação de todos, do mesmo modo que a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade. Integram essa natureza de interesses a preservação do meio ambiente, a defesa da qualidade dos produtos e a garantia contra manipulações de mercado (proteção ao consumidor) e a salvaguarda de valores culturais e espirituais (proteção ao patrimônio histórico, artístico e estético).[15]

Em face da emergência dos direitos transindividuais, não apenas a postura Estatal adquire novos contornos, senão também a própria sociedade, mediante a modificação de consciência individual e coletiva. Certo que tal reviravolta é incipiente, porém não despercebida.

Tome-se como exemplo o bem jurídico meio ambiente. Não se pode ignorar sua ingente relevância presente e futura; local e global.

E as ações humanas não mais possuem conseqüências restritas, pois seus efeitos não respeitam limites espaciais e temporais. A degradação ambiental presente e determinada pode não – mais – representar um dano atual e tópico, senão que se projeta para as gerações futuras, e até mesmo para locais muitos longínquos daquele em que se desenvolveu a ação degradante.

Justamente em razão disso, um novo imperativo ético permeante da ação humana é necessário, para que se agregue à conduta a consciência de seus possíveis efeitos, cuja expansão temporal e espacial não podem ser previamente aquilatados. É o que pondera Hans Jonas:

Um imperativo que desse resposta ao novo tipo de acção humana e dirigido ao novo tipo de intervenção que a comanda poderia exprimir-se como segue: ‘Age de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína’; ou, expresso negativamente: ‘Age de tal maneira que os efeitos da tua acção não sejam destruidores da futura possibilidade dessa vida’; ou simplesmente: ‘Não comprometas as condições de uma continuação indefinida da humanidade sobre a terra’; ou de modo mais geral: ‘Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do Homem entre os objetos da tua vontade’.[16]

Fraternidade e solidariedade são imperativos que devem pautar as ações humanas no que concerne aos direitos de terceira dimensão. A responsabilidade e a consciência global nas condutas ambientais, por exemplo, é necessidade que emerge cristalina.

À utilização do meio ambiente, mediante a ampliação das técnicas de produção e da expansão de sua utilização, corresponde também uma majoração da responsabilidade por tal proveito.

Nenhuma ação humana em tal sentido é imune a conseqüências, na medida em que, pautadas por solidariedade e fraternidade, deve contas à sociedade globalmente considerada, bem assim às gerações futuras, e à própria sobrevivência e perpetuação humanas.


2. TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

A partir desses básicos pressupostos emerge a relevância do âmbito processual para a efetivação e salvaguarda jurisdicional em face de – eventual – violação desses direitos transindividuais fundamentais.

Em que pese sua autonomia, não se pode perder de vista que o direito processual presta-se, em última análise, à proteção do direito material, como forma de combater e até mesmo evitar jurisdicionalmente possíveis violações.

O direito processual, assim, deve responder ao direito material como forma de efetivação do direito – também fundamental – à tutela jurisdicional efetiva e adequada, o qual encontra respaldo no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

E com razão é de se questionar e de se buscar a concretização de tutelas jurídicas efetivas e adequadas quando em tela direitos fundamentais transindividuais, uma vez que, dada a sua natureza complexa (em comparação aos lineares direitos individuais), tal tarefa mostra-se tão dificultosa quanto imprescindível.

E no seio de um Estado Democrático de Direito, em que o direito à tutela jurídica efetiva e adequada revela-se inclusive como cláusula pétrea, o processo não pode ser alheio ao direito material e à sua complexidade, pois isso seria lhe subtrair o valor, isso “porque ser indiferente ao que ocorre no plano do direito material é ser incapaz de atender às necessidades de proteção ou de tutela reveladas pelos novos direitos e, especialmente, pelos direitos fundamentais.”[17]

Mais que a própria positivação de tais direitos, é imposta ao Legislador a tarefa de previsão de meios de proteção dos direitos transindividuais, como forma de sua promoção, o que, em certa medida, é concretizado por meio das ações para a sua persecução em juízo.

Nesse viés, o papel de proteção e de promoção dos direitos transindividuais, em um Estado Democrático de Direito, não passa apenas por ações estatais emanadas exclusivamente do Poder Executivo, mas demanda, concomitantemente, ações tipicamente legislativas de previsão de meios para a sua proteção em caso de violação. E esses meios, por sua vez, devem responder ao direito fundamental à tutela jurídica adequada e efetiva.

As ações coletivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro (como as ações contempladas pelo Código de Defesa do Consumidor, Ação Civil Pública, Ação Popular) representam uma resposta Legislativa protecionista – de garantia – dos direitos fundamentais transindividuais.

Não se pode deixar de mencionar que referidas ações concretizam uma maior participação popular – direta ou indireta – na função jurisdicional, como forma até mesmo de proporcionar uma maior democratização. Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:

As ‘ações coletivas’ – como podem ser chamados os modelos concebidos para a tutela dos direitos transindividuais – têm importante relação com os direitos fundamentais prestacionais. Tais ações permitem a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais que exigem prestações sociais (direito à saúde etc.) e adequada proteção – inclusive contra os particulares (direito ambiental etc.) –, mas, além disso tudo, constituem condutos vocacionados a permitir ao povo reivindicar os seus direitos fundamentais materiais.[18]

Mas o Poder Judiciário não se encontra isento em tal empreitada, uma vez que a necessidade de contrastar as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional, “e, assim, considerando as várias necessidades de direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material”[19].

A prestação de uma tutela jurídica adequada exige, portanto, a busca por técnicas processuais que também se mostrem adequadas e efetivas à concretização do direito material, e isso, por – muitas – vezes, imprescinde de interpretação das regras processuais de acordo com a Constituição.

Conquanto existam ações coletivas (e, em certos casos, previsão de tutelas específicas ao alcance do poder jurisdicional) para a salvaguarda judicial dos direitos transindividuais, é clara ainda a insuficiência das regras processuais para a proteção dessas classes de direitos.

O que se pode constatar é que o “legislador brasileiro” ainda não se apercebeu dos novos reclames sociais, tampouco da nova configuração que respeita aos paradigmas de Estado, de Direito, e de prestação jurisdicional inscritos na Constituição Federal de 1988.

A legislação processual brasileira, em sua grande parte, encontra-se ainda estreitamente vinculada aos ideais liberais, em que o individualismo (e os direitos individuais) é o carro-chefe da produção legiferante. A dogmática jurídica, em plena “sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos”.[20]

Voltada para a resolução de conflitos individuais lineares, deixou ao léu situações em que a contenda não envolva apenas dois – ou mais, mas não uma coletividade, determinada ou não de – sujeitos. Ainda prevalece no Brasil o modo de produção de Direito “instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima”.[21]

Grande parcela da legislação processual civil brasileira foi idealizada sob os auspícios de uma fase histórica muito diversa da atual; não foi cogitada a existência de litígios em que pudessem figurar uma multiplicidade indeterminada de sujeitos, em um espaço que talvez não correspondesse a um hectare, alqueire, propriedade rural ou imóvel urbano, mas, sim, um espaço cibernético.[22]

A situação do processo civil na “‘era das massas’, é precária. Idealizado para uma sociedade cuja historicidade era outra, o Direito Processual não resistiu à sua finitude”.[23] Ovídio A. Baptista da Silva asseverou que, para o direito processual civil, a história parou no século XIX: “Daí porque não devemos depositar demasiada esperança na ‘Reforma do Poder Judiciário’, se não estivermos dispostos a repensar os fundamentos do sistema, superando os ideais do Iluminismo.” [24]

São parcas as legislações especiais que possibilitam a defesa dos direitos transindividuais. Constatação que vem sendo reiteradamente denunciada, a legislação processual civil, não apenas o Código de Processo Civil, não responde satisfatoriamente às necessidades impostas pelos direitos de terceira dimensão. Tudo isso, sem dúvida, atestando a omissão do Poder Legislativo em seu papel de promoção/proteção dos direitos transindividuais.

Parece – ainda – olvidar-se que a Constituição Federal é o centro gravitacional ao qual todo ordenamento deve conformação. Somente há legalidade constitucional, isto é, não há que se cogitar de legalidade desconectada de constitucionalidade. Impende fazer e refazer uma filtragem constitucional do ordenamento jurídico, a fim de que o modo de criação/produção do Direito seja adequado ao conteúdo do locus irradiante de legitimidade, bem como às novas feições do Estado, não mais social ou liberal, mas Democrático de Direito.

A ausência de eco do Direito aos gritos sociais é revelada não apenas na omissão/deformação que macula a fonte formal de sua produção, mas se encontra arraigada também em sua aplicação. Essa – lamentável – circunstância é apontada pelo processualista Ovídio Araújo Baptista da Silva:

Faz parte deste pressuposto ideológico a exigência, religiosamente observada pelos juristas que se prezem, de que não manchem com exemplos concretos a exposição dos resultados de sua pesquisa; ou a defesa de seus pontos de vista. O máximo que se lhes permite é que, quando se mostre indispensável a utilização de casos concretos que possam auxiliar na compreensão do que eles expõem, as hipóteses concretas sejam descritas, por exemplo, como uma compra e venda entre Tício e Caio, ou um contrato de locação ajustado entre Semprônio e Caio. (...) há cento e cinqüenta anos, ao jurista que esteja a fazer ‘ciência’, é-lhe vedado sequer pronunciar a palavra vida. A distância entre a realidade e a construção conceitual deve ser intransigentemente observada. [25] (grifo no original)

Ao que parece, apenas Caio e Tício (e quiçá também Semprônio!) são destinatários das normas processuais civis, que apenas as relações entre eles travadas podem ser verdadeiramente jurídicas, e tão-somente elas podem adquirir condição de litígio judicial.

Direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, permanecem na periferia do ordenamento processual, alimentando-se das sobras dos banquetes servidos aos direitos individuais (simples) – mormente de caráter patrimonial e real – pelo Código Processual Civil.

Não consegue se desvencilhar, o processo civil, de uma perspectiva objetificante e reducionista, que subtrai a complexidade das relações sociais, atentando apenas aos direitos individuais. É o senso comum, teórico e prático, que se encontra preso às amarras dos ideais do Estado e do Direito de natureza liberal, obstando a devida e necessária filtragem constitucional de institutos processuais como, por exemplo, coisa julgada e intervenção de terceiros, para citar apenas alguns[26].

Essa tentativa – ou tendência –, que labora para o velamento das complexidades, acaba por trair a própria razão existencial do Direito, uma vez que exclui de seu manto situações que necessitam tratamento, proteção e concretização jurídicas. O saber jurídico da modernidade “organizou o lado masculino do imaginário do direito. Mobiliza o social negando as incertezas e o novo, impede a inscrição do direito na temporalidade.” [27]

Certo é que esse modo de produção/aplicação do Direito – se não em sentido francamente contrário – não labora na direção da plenitude dos nortes constitucionais, o que enfraquece e debilita sua força normativa, circunstância que – para dizer o mínimo – é inadmissível, pois essa postura acarreta a fragilização da legitimidade do ordenamento processual civil.

Ausente uma conduta pautada em tal consciência, os direitos transindividuais continuarão no ostracismo jurídico, sem, no entanto, desaparecerem da esfera do fático-social.

As rédeas do modo de criação/aplicação do Direito devem ser (re)tomadas, tendo-se em mente que a Constituição Federal, instituidora de um Estado Democrático de Direito, é o ponto de partida e de chegada de todo ordenamento jurídico.

Sobre o autor
Rochele Vanzin Bigolin

Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá<br>Procuradora Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIGOLIN, Rochele Vanzin. Tutela jurídica dos direitos transindividuais em um Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4115, 7 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29763. Acesso em: 25 nov. 2024.

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