O Direito é um objeto de estudo multifacetário, que pode ser encarado, entre outros aspectos como ciência, experiência, filosofia ou meio cultural de limitação e garantia das relações humanas.
Kelsen em sua teoria pura do direito faz certeira definição do direito como ciência, desde que partamos da premissa de que existe uma hipótese de estudo onde há a presença de uma norma hipotética fundamental ordenando que a Constituição será o ápice da pirâmide normativa, de uma vez por todas, devendo prevalecer hierarquicamente por sobre todo o ordenamento infraconstitucional, verbalizando tal princípio hipotético podemos dizer: a Constituição sempre deve prevalecer. Com base nesta hipótese, então, toma-se o ordenamento jurídico positivo, válido e vigente, como objeto de estudo de ciência, dentro das limitações inerentes à sua sujeição aos limites constitucionais.
Como bem lembra em seu magistério o tributarista Paulo Barros de Carvalho uma coisa é a ciência do direito, que parte do estudo do direito positivo válido e vigente para divisar as suas finalidades e aplicação, outra coisa é a política do direito, que visa o estudo do Direito para a instauração de novas normas positivas que digam respeito aos anseios e ideais jurídicos preementes, ou seja, enquanto ciência o direito toma por objeto o direito presente, a política do direito visa ao direito futuro.
Por outro lado, o inolvidável Miguel Reale, com a sua teoria tridimensional do direito, que descreve a fenomenologia do Direito de forma tripartite como fato, valor e norma, nos faz perceber que a realização da Justiça mediante a atividade jurídica é uma aplicação da norma, por sobre fatos, de acordo com valores, estes valores, via de regra, são denominados princípios.
O próprio Kelsen, tão injustamente tachado de "positivista" refere que no momento da aplicação do direito deve ser feita uma escolha de valores norteadores da ação prática na realização do direito, entretanto, estes próprios valores devem ser orientados pelos princípios explícitos e implícitos presentes no próprio sistema, ou seja, deve prevalecer o princípio fundador da norma, pois o princípio também é norma, e, entre todos os princípios jurídicos possíveis, o corolário de todos, a sua razão final sempre será a o princípio da segurança jurídica, pois o Direito, em seu aspecto dinâmico, como política do direito, é a permanência na mudança, isto é, a segurança jurídica representada no respeito aos atos jurídicos perfeitos, ao direito adquirido e à coisa julgada, e, em seu aspecto estático, enquanto direito positivo, objeto da ciência do direito, é a garantia de que a mera aparência da legitimidade formal não suplante legitimidade material, ou seja, não será em razão de uma formalidade do processo legislativo, que instaure regularmente uma Emenda Constitucional que um absurdo jurídico será legitimado, em função de sua forma, mas, sim, em razão de seu fundo, em razão da necessidade da garantia das relações jurídicas e da sua segurança, exemplo encontramos no ocorrido com a Emenda Constitucional nº 03/93 e da Lei Complementar 77/93, que intentaram instituir, formalmente, o mal fadado IPMF, desiderato que fracassou em vista da decisão do STF na ADIN939, que fulminou de uma vez por todas a própria Emenda Constitucional 03/93 e demais legislação relacionada, pois padecia de ilegitimidade material perante a Constituição.
Até bem pouco tempo o princípio da segurança jurídica estava na categoria dos princípio implícitos, que emanava da interpretação sistemática do direito posto, sendo revelado na Doutrina e na Jurisprudência, entretanto, desde que a Lei nº 9.868/1.999, entrou em vigor, em seu art. 27, ficou tal princípio pertencente à categoria dos expressos, assim determina a referida lei:
"Art 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado"(grifamos).
Por fim devemos lembrar que a sistemática jurídica toda, sem exceção, visa um ideal de justiça, que na prática, deve ser a busca de um equilíbrio, uma relação sinalagmática para uns, uma série de compensações para outros, sempre levando em conta a proporção e a desproporção dos sujeitos da relação jurídica, e, assim, estabeleceu-se, por exemplo, na Ordem Tributária, um sistema rígido, de base constitucional, relacionado às cláusulas pétreas referidas no art. 60, §4º, da CF.
Entendo que deve prevalecer o princípio de que o contribuinte é a parte mais fraca, e que o seu estatuto é uma garantia individual, conforme aduz o art. 5º, §§ 1º e 2º, da CF, que determinam que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata" , e, que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", em vista disso o regime jurídico tributário do Estado é um reflexo de tais determinações, afinal, é pacífico na Doutrina que as determinações constantes dos arts. 145. e ss. da Carta Magna, que tratam da Ordem Tributária Pátria, são essencialmente dirigidos aos Legisladores e demais agentes públicos, visando justamente a chancela das garantias constitucionais, isto é, as limitações ao poder de tributar não visam garantir receitas cada vez maiores para o Fisco, mas, que tais limitações são um prolongamento das garantias individuais, em particular no que tange à livre iniciativa e ao direito de propriedade e de sua livre disposição, pois tributo demais significa patrimônio de menos ao indivíduo.
Portanto, já que entre as cláusulas pétreas estão os direitos e as garantias individuais (IV, §4º, 60, CF), e, um dos princípios constitucionais tributários mais intimamente relacionados com tais garantias é o princípio da anterioridade do tributo (art. 150, III, b, CF), então, o próprio princípio da anterioridade é uma garantia individual diretamente relacionado com o princípio da segurança jurídica.
O Poder Legislativo, recentemente, aprovou a supressão da noventena em relação à CPMF. Em síntese, podemos localizar o estado da questão da seguinte forma: mediante a proposta original de emenda à constituição nº 407, de 2001, começou a tramitar nova prorrogação da contribuição (eternamente) provisória sobre movimentações financeiras (CPMF), posteriormente, propugnou-se mediante a proposta de emenda nº 21, de 2002, nova redação, que iria mais além, reduzindo a vacância das contribuições sociais para somente 30 (tritn) dias, pois a anterioridade seria uma cláusula pétrea "em si, e não o número de dias que para ela seja fixado", tal alteração se daria modificando-se o art. 195, §6º, da CF. Após, numa demonstração de bom senso constitucional, o Senador Geraldo Melo pelo requerimento n.º 282/2002, que a proposta de redução de prazo fosse retirada, em caráter definitivo da aludida proposta. Para corroborar tal posição, temos o parecer n.º 424 de 2002, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania acerca da proposta de emenda n.º 18 de 2002, que posicionou-se contra a proposta de emenda n.º 06 à proposta objeto do parecer, de autoria do Senador Romero Jucá, onde lê-se no Diário do Senado Federal: "Rejeitamos esta emenda por pretender ela a eliminação do prazo nonagesimal. E o fizemos por simetria ao entendimento já esposado por ocasião do parecer contrário à emenda constitucional n.º 21, de 2002, de autoria do senador Geraldo Melo". Ocorre que em 12/06 do corrente tal supressão foi aprovada em 2º turno de votação da Casa do Senado.
Ora, uma coisa é diminuir a incidência da anterioridade, outra coisa é suprimi-la, e, temos diante de nossos olhos uma Emenda Constitucional de flagrante inconstitucionalidade. No momento em que estas linhas são escritas os últimos detalhes do processo legislativo estão sendo formalizados para que esta figura teratológica vigore.
Argumenta o sapientíssimo Senador Jucá que a noventena seria válida apenas para os casos de criação ou modificação de contribuições. "Nesse caso da CPMF, não estamos implantando nem modificando nada",. Realmente, na atual conjuntura, a Carta Magna e "nada" são a mesma coisa, pois, se uma Emenda Constitucional que suprime garantia individual não está "implantando nem modificando nada", então nada virou sinônimo de Constituição.
Vivenciamos situação poeticamente descrita pelo saudoso tributarista Augusto Becker, que assim já se manifestava há mais de trinta anos no respeitante ao nosso ordenamento tributário: sempre que a juridicidade do Direito Tributário é desvirtuada, ele veste-se de andrajos jurídicos e como Cinderela – envolta num halo de mistério e superstição – foge ao Palácio da Justiça, quando a Despesa ultrapassa a Receita, na meio-noite dos orçamentos públicos".
Uma última nota de estranheza que deve ficar registrada é que a CPMF sendo uma CONTRIBUIÇÃO SOCIAL, é na verdade uma espécie tributária em que se qualifica um imposto com uma destinação específica, e em razão da relevância social de tal destinação, irá possuir um prazo reduzido para atender ao princípio da anterioridade.
"In casu", a receita auferida mediante a aplicação da CPMF destina-se a suprir necessidades orçamentárias relacionadas com a saúde e com assistência social, ora, então porque se tem efetivado cortes orçamentários espúrios que têm impedido a força aérea de voar, a marinha de guerra de navegar e que vem forçando o exército de funcionar meio expediente? Como bem vem sendo noticiado.
Se as verbas da CPMF vêem sendo desviadas para as forças armadas, então, configurar-se-á o desvio de finalidade da aludida contribuição, configurando-se a inconstitucionalidade, conforme o entendimento do tributarista Márcio Severo Marques, em sua obra Classificação constitucional dos tributos. São Paulo, Max Limonad, 2001.
No entender deste autor a contribuição social seria um tributo com destinação social, independentemente de sua base de cálculo.
No meu entendimento, conforme o art. 4º do CTN, a CPMF deve ser desconsiderada como contribuição social, e, se não for considerada inconstitucional, deve ao menos se sujeitar ao regime das limitações ao poder de tributar presente no art. 150. da CF, pois a sua base de cálculo é de imposto, como bem revelou-se na malsinada Emenda Constitucional n.º 03/93, que primeiro tentou instituir um Imposto, e, depois, procedeu-se à instituição deste mesmo impostos na forma de uma contribuição, tendo em vista as vantagens evidentes.
Entretanto, se a Carta Magna abriu a possibilidade para tal instituição, então, o regime das contribuições sociais é todo ele uma cláusula pétrea, conforme o entendimento esposado ao norte, e, se deve prevalecer a classificação constitucional dos tributos, logo, haverá inconstitucionalidade por desvio de finalidade da CPMF, pois nem bem a sua arrecadação foi suspensa e o Governo já revelou que a receita desta contribuição não se dirige ao seu destino.
Resta-nos aguardar, em vista de tal vilipêndio jurídico, a supressão da anterioridade da noventena, a manifestação do STF tal qual o fez a quando da instituição do IPMF.
Para fechar o texto cito a Jurisprudência atinente ao Imposto Sobre Movimentação Financeira foi instituído mediante a Emenda Constitucional n.º 03/93 e Lei Complementar nº 77/93, de 13/07/93, que pretendeu cobrar no mesmo exercício o tributo instituído, sendo tal decisão derrubada liminarmente pela ADIMC939, Relator Ministro Sydney Sanches, D.J. 17.12.1993, pp. 28.066; Ementário vol. 01730-10, pp. 01959, julgado em 15/09/1993, cuja ementa determina:
"Ação direta de inconstitucionalidade (medida cautelar). I.P.M.F. (Imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira). Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993 (art. 2., par. 2.). Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993. Art. 60, par. 4., inciso IV, c/c arts. 5., par. 2. e 150, III, "b", da Constituição. Preliminar de inépcia da inicial. Legitimidade ativa (art. 103, IX, da Constituição Federal). Legitimidade passiva. 1. Se do texto completo da inicial se verifica que impugna a Emenda Constitucional que permitiu a criação do imposto, e a Lei Complementar que o instituiu, torna-se irrelevante o fato de, ao final, referir-se apenas, inadvertidamente, a inconstitucionalidade da lei. 2. Sendo a C.N.T.C. uma Confederação Sindical, tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, IX, da Constituição Federal). 3. Nessa espécie de ação, a Uniao nao e parte e nem se pode deduzir, contra ela, pretensão a restituição de tributos, o que só se admite em ação de outra natureza e no foro competente. 4. Estando caracterizada a plausibilidade jurídica da ação ("fumus boni iuris"), ao menos quanto a alegação de violação do disposto no artigo 60, par. 4., inciso IV, c/c arts. 5., par. 2., e 150, III, "b", todos da Constituição, e de se deferir medida cautelar para suspensão da eficácia do art. 2. e seus parágrafos da Emenda Constitucional n. 3/93, que autorizou a criação do I.P.M.F., bem como de toda a Lei Complementar n. 77/93, que efetivamente o instituiu. 5. Hipótese em que a suspensão deve vigorar ate 31.12.1993, reservando-se o Tribunal para, antes do inicio do recesso judiciário (19.12.1993), examinar se a estendera (a suspensão) ao exercício de 1994, apreciando, inclusive, os demais fundamentos da ação, caso até essa data não tenha sido ela julgada, pelo mérito."
Sendo definitivamente julgado em 15/12/1993, publicado no DJ em 18/031994, Ementário vol. 01737-02, pp. 00160, com o seguinte teor:
Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b", "c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vicio de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, "b" e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. - o principio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, "b" da Constituição); 2. - o principio da imunidade tributaria reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I,e art. 150, VI, "a", da C.F.); 3. - a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: "b"): templos de qualquer culto; "c"): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e "d"): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em conseqüência, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, "a", "b", "c" e "d" da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobranca do tributo no ano de 1993."