Com a criação da Lei 12.015 de 07 de agosto de 2009 o legislador brasileiro incorporou as condutas antes descritas no crime de atentado violento ao pudor (art. 214 CP) ao crime de estupro (art. 213 CP). Desta forma, não subsiste mais o crime de atentado violento ao pudor, pois sua tipicidade está contida no atual art. 213, tornando-o tipo misto alternativo. Houve, portanto, uma revogação formal do art. 214 do Código Penal, que comumente é chamado de continuidade normativo típica, em que a conduta continua a ser típica, mas descrita em outro artigo da lei.
Entretanto, deve-se ressaltar, que não se extinguiu o delito de atentado violento ao pudor, não houve uma abolitio criminis, mas apenas uma novatio legis, que reuniu as condutas que caracterizavam o atentado violento ao pudor e o estupro, em apenas um tipo penal.
Anteriormente a vigência da Lei 12.015/09, entendia-se que o agente que no mesmo contexto fático obtivesse conjunção carnal, e logo em seguida outro ato libidinoso com a vítima, mediante violência ou grave ameaça, deveria responder por concurso material dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, nos termos do art. 69 do Código Penal, pois havia duas condutas distintas.
Nesse sentido, imagine-se o caso em que um homem adentrasse a casa de sua vitima e utilizasse de sua força física para manter conjunção carnal contra a vontade da moradora, e logo após para satisfazer a sua lascívia mantivesse também o coito anal, estariam caracterizados simultaneamente os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, devendo o agente responder por dois crimes em concurso material, conforme entendimento do STF.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENA. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. IMPOSSIBILIDADE DE ABSORÇÃO DE UM DELITO PELO OUTRO. HIPÓTESE DE CONCURSO MATERIAL.
É pacifico o entendimento no Supremo Tribunal Federal no sentido de que estupro e atentado violento ao pudor, praticados contra a mesma vítima, caracterizam concurso material de delitos. Habeas corpus indeferido. (Grifo nosso)(HC 71802, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 12/03/1996.
Entretanto, a nova lei criou um crime único, desta forma, o sujeito que adentrou a casa da vítima para manter com ela conjunção carnal e coito anal estaria cometendo apenas o crime de estupro, pois se trata de um crime de ação múltipla, ou seja, há vários verbos que podem tipificar o crime no mesmo artigo penal, que acaba por beneficiar o agente, conforme considera o professor Flávio Monteiro de Barros (2010, p.19):
Com a Lei 12.015/2009, o atentado violento ao pudor passou a ser também estupro, figurando no mesmo tipo penal. Trata-se da lei mais benéfica, retroagindo para beneficiar o réu, ainda que o fato esteja acobertado pela coisa julgada. Insustentável, a meu ver, o posicionamento de Vicente Greco Filho preconizando o concurso de crimes, quando o agente praticar, no mesmo contexto, a conjunção carnal e outro ato libidinoso autônomo.
Portanto, o crime de estupro pode ser consumado de várias formas, por meio de constranger alguém a ter conjunção carnal, constranger alguém a praticar outro ato libidinoso, ou constranger alguém a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, desta forma, se houvesse concurso de crimes entre esses atos, a pena descrita no tipo deveria ser aplicada várias vezes, afrontando os princípios da legalidade e proporcionalidade, conforme ensina o Profº Guilherme de Souza Nucci:
Visualizar dois ou mais crimes, em concurso material, extraídos das condutas alternativas do crime de estupro, cometidos contra a mesma vítima, na mesma hora, em idêntico cenário, significa afrontar o princípio da legalidade (a lei define o crime) e o princípio da proporcionalidade, vez que se permite dobrar, triplicar, quadruplicar etc., tantas vezes quantos atos libidinosos forem detectados na execução de um único estupro. (NUCCI, 2010, p.816)
Neste sentido, é posição consolidada que não há que se falar em concurso de crimes nessas situações, pois o art. 213 descreve um único delito. NUCCI (2009, p.19) explica que naturalmente, deve o juiz ponderar na fixação da pena, o número de atos sexuais violentos cometidos pelo agente contra a vítima.
Deve-se ressaltar ainda, que mesmo com essas mudanças, ainda há a possibilidade de continuidade delitiva ou concurso de crimes no delito de estupro, como no caso do agente que mantém conjunção carnal com a vítima em três dias diferentes. Poder-se-ia estar diante de três crimes em continuidade delitiva ou três crimes em concurso material, dependerá da análise do caso concreto.
A continuidade delitiva estará caracterizada se presente os requisitos dispostos no art. 71 CP, sendo aplicada uma única vez a pena disposta no art. 213 CP, aumentada de um sexto a dois terços. Não caracterizado o crime continuado, restará a aplicação do concurso material, nos moldes do art. 71 CP, imputando três penas referentes ao crime de estupro de forma cumulativa.
Assevera-se ainda, que o condenado pelos crimes de atentado violento ao pudor em concurso material com estupro deve ser beneficiado pela nova redação do art. 213 CP, baseando-se no Princípio da lei penal mais benéfica.
Por isso, a figura do art. 213, com a nova redação dada pela Lei 12.015/2009, é favorável ao réu e deve retroagir, atingindo todos os que foram condenados, antes, pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, contra a mesma vítima, no mesmo contexto, em concurso material de infrações penais. (NUCCI, 2010, p.818)
Portanto, a Lei 12.015/2009 beneficia o réu, e deve retroagir para favorecer as pessoas que foram condenadas pelo crime de estupro em concurso material com o atentado violento ao pudor, no mesmo contexto fático, conforme já se manifestou o STJ:
HC 167517 / SP
2010/0057558-8
Ministro HAROLDO RODRIGUES
HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. LEI PENAL MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. CONDUTAS PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA E NO MESMO CONTEXTO. CRIME ÚNICO. ORDEM CONCEDIDA.
1. A Sexta Turma desta Corte, no julgamento do HC nº 144.870/DF, da relatoria do eminente Ministro Og Fernandes, firmou compreensão no sentido de que, com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, a conduta do crime de atentado violento ao pudor, anteriormente prevista no artigo 214 do Código Penal, foi inserida àquela do art. 213, constituindo, assim, quando praticadas contra a mesma vítima e num mesmo contexto fático, crime único de estupro.
2. Tendo em vista que o paciente foi condenado por ter praticado, mediante grave ameaça, conjunção carnal e coito anal contra a mesma vítima e no mesmo contexto, é de rigor, pelo princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, o afastamento da condenação pelo atentado violento ao pudor.
3. Habeas corpus concedido para determinar que o Juízo das Execuções proceda à nova dosimetria da pena, nos termos da Lei nº 12.015/2009, destacando que deverá ser refeita a análise das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Portanto, a lei deve retroagir para beneficiar os condenados pelos crimes de estupro em concurso material com o atentado violento ao pudor, devendo ser redimensionada a pena disposta em sentença condenatória.