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Aspectos jurídicos da reserva técnica de museus

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Agenda 08/08/2014 às 13:40

III. A proteção jurídica nacional

Além da esfera internacional, que se presta a demonstrar a relevância da temática para os países, o Brasil possui legislação constitucional e infraconstitucional acerca da temática museológica, como decorrência mesmo da construção internacional.

Inicialmente, a Constituição Federal estabelece que a educação e a cultura são direitos de todos e dever do Estado de os fornecer e aprimorar. Justifica-se esta sistemática devido ao reconhecimento de que esses direitos produzem e promovem o desenvolvimento sustentável.

A Constituição Federal, assim como a ordem internacional, além de elencar como direitos assegura a acessibilidade, para que desta forma, os museus não correspondem somente à reunião de obras em acervo:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

(...)

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público que conduzem à:

(...)

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

(...)

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

(destacou-se)

Evidencia-se que o Estado deve produzir bens culturais, assim como, em nome do Direito à Acessibilidade e do Estado Democrático de Direito, preservar, incentivar e difundir esse genêro de bens.

Compreende-se no conceito de patrimônio cultural brasileiro todos os bens materiais e intelectuais que sejam reconhecidos pela sociedade, dentro de um determinado lapso temporal, como identificadores de sua história:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

(...);

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

(...)

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

(destacou-se)

Por patrimônio cultural, conforme Chauí apud Rangel, entende-se “Assim, hoje toma-se a cultura como a transformação, pelo homem, das coisas naturais através das invenções coletivas, num tempo determinado, de práticas, valores, símbolos e ideias. Além disso, é uma avaliação pelo homem de seu próprio mundo das obras do pensamento e da arte.” (Educação patrimonial: conceitos sobre patrimônio cultural. In: MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Reflexões e contribuições para a educação patrimonial. Belo Horizonte, 2002)

Dos artigos 215 e 216 da Constituição conclui-se que é apresentada uma classificação enumerativa dos bens que compõem o patrimônio cultural, ou seja, podem outros serem inclusos, no sentido de que a enumeração apresentada não se esgota. Tanto é verdade que o artigo 216 indica gêneros – modos de criar, fazer e viver e criações artísticas. E como criações artísticas compreende-se todas as obras que derivem da concepção intelectual humana.

A proteção não se encerra com as obras colecionadas, mas, envolve o incentivo a nova produção artística, que é, hoje, a representação do modernismo e, amanhã, fará parte da história da cultura. Por isto mesmo especial atenção é oferecida no artigo 215 à democratização do acesso aos bens de cultura.

O incentivo deve seguir também aos artistas nacionais e locais, na tentativa de fomentar com maior empenho a cultura brasileira, inserindo-se os modos de vida e produção. Por exemplo, a gravura (a arte de sulcar e imprimir a imagem pretendida) como arte é uma realidade internacional e nacional. Todavia, o Brasil apresenta uma metodologia específica sobre essa produção, merecendo, especificamente, o incentivo e proteção.

Exemplifica-se a importância dessas políticas de incentivo com o edital que o SESC – Serviço Social do Comércio -, unidade Belenzinho, em São Paulo, mantém, referente ao projeto “VÃO”. Esta unidade possui um átrio que tem sido ocupado, de modo rotativo e periódico, com obra de arte eleita por convite. No primeiro semestre de 2014, em sua quarta edição, teve como vencedora do respectivo edital a artista plástica Maria Bonomi, que instalou a obra “Circumstantiam”.

Trata-se de magnífica obra, que pode ser inclusa no conceito de criação moderna, que fez uso de xilogravuras na sua concepção, que ao final transformou-se em enormes placas através de processo de digitalização, podendo ser visualizada de todos os andares do edifício no qual se encontra. Este exemplo permite que todos os frequentadores e demais interessados visitem a obra gratuitamente e tenham acesso à criação artística de uma das maiores artistas plásticas, destacadamente gravadora, dos últimos sessenta anos (https://www.sescsp.org.br/programacao/29853_CIRCUMSTANTIAM+MARIA+BONOMI?o=homebelenzinho, acesso em 16/05/2014).

O diferencial da iniciativa do SESC é exatamente o fato de ter provocado não a aquisição da obra, mas a elaboração da mesma, ou seja, a criação de arte para ocupação de espaço determinado.

E neste âmbito apresenta-se o Estado como o responsável pela proteção e, de modo precedente, incentivo da cultura e das obras que esta produza. Proteção feita, destacadamente, através dos acervos, sejam eles municipais, estaduais, federais ou particulares.

Faz-se necessário esclarecer, quanto aos acervos particulares, que esses devem ser mencionados neste contexto porque há a previsão legal, por meio do Decreto n.º 8.124/2013, de que, na íntegra ou parcialmente, podem sofrer a intervenção estatal com a possibilidade de se declarar obras de arte de seu acervo como de interesse público.

Destaque-se que a declaração de interesse público alcança somente obras particulares, isto porque o acervo público é de interesse estatal naturalmente, independentemente de declaração.

Esse Decreto evidencia a importância que o Estado oferece ao patrimônio cultural, certo que se permite, por ato legislativo, a declaração de interesse público de obras de terceiros, em suma sobre a propriedade particular. Situação que poderá estabelecer ônus para a comercialização, doação, empréstimo, circulação e preservação da obra de arte objeto da declaração.

Em outra face, tem-se que mesmo estando a obra sob a guarda do Estado, em razão de sua relevância cultural e social, também à sociedade é permitido exercer a proteção, ainda que contra o ente estatal. É o que prevê a Constituição Federal no artigo 5º, em seu inciso LXXIII:

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LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Isto porque o artigo 23 determina que ao Estado imputa-se a obrigação da proteção:

Art. 23. É competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios:

[...]

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

(destaca-se)

Proteção que pode ser exercida pela sociedade de modo direto ou por meio da intervenção do Ministério Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Esta realidade exige do Estado e possibilita à sociedade a fiscalização para a prevenção de danos, em virtude da responsabilização solidária:

“O princípio da responsabilização decorre do que dispõe a Constituição Federal em seu art. 225 § 3º, verbis: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A ampla responsabilidade pelos danos causados ao patrimônio cultural está relacionada com a autonomia e independência entre os três sistemas existentes: civil, administrativo e criminal, de forma que um mesmo ato de ofensa a tal bem jurídico pode e deve acarretar responsabilização, de forma simultânea e cumulativa, nas três esferas, nos exatos termos do que determina a nossa Constituição Federal.”

(Jorge Miranda, Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes do Patrimônio Cultural, Belo Horizonte: IEDS, 2009)

A solidariedade se justifica pela identidade de responsabilidades entre as partes envolvidas e em razão da importância do direito tutelado. No sentido de não se perquirir quem é o responsável, mas sim, no âmbito da relação jurídica estabelecida, a forma de se satisfazer um direito prioritário.

Vale transcrever o conceito americano, no qual se evidencia que qualquer parte pode ser obrigada ao cumprimento da obrigação:

“No Direito Civil americano, a obrigação solidária é denominada de “joint obligation”, sendo a obrigação pela qual vários devedores prometem ao credor cumprir o acordo. Quando a obrigação é estipulada apenas como solidária e os devedores não pagam inteiramente aquilo que se comprometeram, eles poderão ser forçados judicialmente a cumprir o acordo.”

(https://www.lectlaw.com/def2/o001.htm, acesso em 16/05/2014)

Em que pese toda a regulamentação constitucional, tem-se, ainda, a esfera infraconstitucional que oferece os meios para a execução da proteção, divulgação e acessibilidade. Inicialmente, tem-se o Decreto-lei n.º 25/1937 estabelece que enumera o que se inclui no conceito de patrimônio artístico:

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

(destacou-se)

Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno.

Por sua vez, o Decreto-lei 2.848/1940 acrescenta à temática a abordagem criminal, quando da ocorrência de dano sobre bem de valor artístico:

Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico

Art. 165. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

(destacou-se)

Da legislação infraconstitucional é importante reconhecer que o mal uso ou a inutilização de obras de arte podem ensejar desapropriação, quando a titularidade for do particular, transferindo a obra para acervo público que tenha condições de oferecer à criação os meios necessários de preservação e acessibilidade à sociedade. Por isto, inclusive, o âmbito legislativo penal.

Sabe-se que juridicamente o ato de desapropriação é uma das exceções do Direito sobre a propriedade, e, ainda assim, esta sistemática pode ser aplicada sobre obras de arte, em conformidade ao artigo 5º, inciso XXIV:

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Após discorrer-se sobre a proteção nacional ao patrimônio cultural, constata-se que, quanto as reservas técnicas, equivocadamente, não têm sido tratadas nos mesmos termos que o acervo “oficial” dos museus. Afetando, sobremaneira, a acessibilidade as obras que são nesses espaços “depositadas”.

No contexto cultural a omissão de atos e posicionamentos, seja por parte do Estado como da sociedade, corresponde a ação mais prejudicial que possa ser exercida (agir pela omissão), certo que afeta o âmbito educacional e do desenvolvimento social. E esta realidade deve ser aplicada ao contexto da existência das reservas técnicas, conforme na sequência se analisa.


IV. A realidade das reservas técnicas

Do até então exposto conclui-se que o acervo museológico possui amparo internacional e nacional. Da mesma forma, constata-se que exerce função primordial voltada à colaboração com o desenvolvimento sócio, econômico e cultural e, ainda, de modo sustentável. E diante desta relevância diferenciada deve ser prestado pelo Estado à sociedade, especialmente quanto à acessibilidade. Por sua vez, à sociedade permitido é fiscalizar e demandar o Estado, seja diretamente, seja por meio do Ministério Público.

Neste contexto, oferece-se destaque à realidade das reservas técnicas. Estas, precedentemente, surgiram como os espaços para as obras em restauro. Todavia, com o tempo, assumiram a função de “depósito”, ou seja, área das obras que não estão em exposição.

Até, então, sem problemas. Contudo, necessário reconhecer que existem museus que mantem como que um segundo acervo através das reservas técnicas. Sem que a sociedade tenha conhecimento e acesso sobre essas obras ou sem previsão para que as mesmas sejam expostas à sociedade. Aliás, algumas entidades nem mesmo obedecem ao princípio da transparência, ao deixarem de levar ao conhecimento da sociedade quais obras integram o seu acervo completo.

Para Antônio Mirabile, as reservas técnicas correspondem a:

“Um local que nos parece particularmente importante para a preservação dos bens culturais é a reserva técnica, onde, com muita frequência, cerca de 95% do patrimônio do museu é conservado”.

(A reserva técnica também é museu, Antônio Mirabile, Boletim Eletrônico da ABRACOR, n. 1, junho/2010)

A criação e manutenção de um acervo museológico é uma tarefa trabalhosa, dispendiosa, complexa e ainda em processo de estudo e aperfeiçoamento. Muitas questões fundamentais ainda estão sendo discutidas pelos especialistas, e em muitas delas ainda não se formaram consensos ou regulamentações definitivas. Todo esse campo está em rápida expansão e contínua transformação. O acervo representa o núcleo vital de todo museu, e em torno do qual giram todas as suas outras atividades.

A reserva técnica, como acervo que é, é gerida pelo curador, o mesmo do acervo “oficial”, que tem a função de manter organizada e em bom estado a coleção em seus depósitos. É claro que a depender do tamanho de alguns museus ou acervos algumas estruturas podem ter diversos conservadores com atividades diferenciadas. Contudo, o que importa é a compreensão de que as obras constantes nas reservas técnicas merecem o mesmo nível de proteção e acessibilidade.

Em certas situações a atenção deve ser até majorada, eis que pode se tratar de obras destinadas à restauração e conservação e não apenas para aguardar a agenda de exposição. Agenda que depende da vontade, muitas vezes, “política” ou de interesses particulares sobre quais obras devem se manter acessíveis ao público.

Imagens de obras em reserva técnica (Museu Paranaense)

Atualmente, ao se analisar o conteúdo das chamadas reservas técnicas, depara-se com obras depositadas que aguardam a restauração, mas também, a agenda de exposição.

Necessário que os acervos identifiquem, em nome do princípio da transparência, qual a motivação de uma obra não estar em exposição, ainda que de modo temporário. Ou ao menos, o curador ou conservador deve fornecer o cronograma de exposição, no qual se constate o período de exposição das referidas obras.

O princípio da transparência dos atos administrativos, aqueles praticados por funcionários públicos ou a serviço da administração pública, em conformidade ao artigo 37 da Constituição, corresponde a administração do acervo cultural de modo claro, induvidoso. No sentido mesmo da sociedade conhecer quais obras na íntegra pertencem ao museu, ainda que não todas em exposição.

Faz-se necessária esta sistemática porque as obras públicas ou declaradas como de interesse público são bens estatais ou de interesse estatal, exigindo, assim, o tratamento destinado por todo e qualquer ato administrativo. Por outro lado, esta sistemática evita o desaparecimento de obras de arte, bem como o locupletamento ilícito com a venda de obras no “mercado negro”.

O mau uso pode ser ilustrado, por exemplo, com a constatação de que obras de arte, um total de 15 (quinze), foram encontradas em uma lixeira próxima ao Departamento de Química da Universidade de São Paulo (!). Dentre as obras estavam trabalhos de Edgar Degas, Maurice de Vlaminck, Maurice Utrillo, Paul Gauguin, Maurice Utrillo e Belmonte. (https://www.estadao.com.br/noticias/impresso,marceneiro-acha-obra-de-arte-no-lixo-da-usp,704272,0.htm, acesso em 20/05/2014).

Em outra face, um exemplo de transparência e atividade voltada à acessibilidade: entre 2013 e 2014 o Museu de Arte de São Paulo realizou programação específica, além do acervo permanente, com obras do acervo não exposto, especialmente voltada aos desenhos e gravuras internacionais e nacionais – “Papeis Estrangeiros da Coleção MASP” e “Papeis Brasileiros da Coleção MASP”.

O ideal, efetivamente, seria que o curador indicasse os motivos para que as obras estejam nas chamadas “reservas”, sendo que se deve aceitar apenas, desde que comprovadamente, a finalidade de restauro, conservação ou rotatividade de exposição. Quanto a esta última justificativa, a resposta deve se fazer acompanhar da previsão para inclusão em agenda de exposição.

Percebe-se mesmo, em algumas exposições, que os museus têm um verdadeiro acervo oculto, sobre o qual não se conhece o motivo da ocultação, do porquê não existirem exposições constantes que divulguem todo o acervo, do porquê estarem em separado do acervo oficial, do porquê do acervo técnico ser tratado como um segundo museu ou mesmo depósito, do porquê da dificuldade de se criar o acervo virtual dessas obras, dentre outros questionamentos.

Dominique Poulot esclarece sobre a reserva técnica que:

“Em um tempo em que a exigência da exposição se assimila a um direito democrático, a reserva de museu, que não deixa de ser requerida pela necessidade de estocagem – parece materializar em confisco intelectual (...) Além desse registro museográfico sob a forma de descoberta do tesouro -, aliás, fórmula utilizada abusivamente por alguns estabelecimentos -, a questão das obras não expostas é uma preocupação legítima”

(Museu e Museocologia, pág. 29)

O correto, legalmente falando, seria que o acervo em reserva técnica o fosse por um curto espaço de tempo, o suficiente para restabelecer as condições de uso da obra ou até que se cumprisse a rotatividade do acervo em demonstração. Caso contrário, a medida mais eficiente é a doação do respectivo acervo ou obras para entidades que possam realizar melhor uso sobre essas criações. Isto porque a acessibilidade é o princípio que deve prevalecer.

Na realidade, o que acontece é que alguns museus e galerias mantem em reserva técnica parte do acervo, independentemente de estarem para restauro ou conservação.

Necessário, nesse sentido, que sejam criadas novas categorias de museus que possam abranger esse acervo; revisão dos métodos de pesquisa, preservação e comunicação; ação de comunicação dos técnicos e grupos sociais, visando o entendimento, a transformação e o desenvolvimento social; e incentivo à apropriação do patrimônio cultural, para que a identidade seja vivida na pluralidade social.

Repita-se, não basta a existência de acervos, necessário, primordialmente, que sobre estes ocorra a acessibilidade.

Cristina Bruno sintetiza a transformação vivenciada e necessária dos museus, repercutindo diretamente sobre as obras dispostas em reservas:

"De instituições elitistas, colonizadoras, sectárias e excludentes, os museus têm procurado os caminhos da diversidade cultural, da repatriação das referências culturais, da gestão partilhada e do respeito à diferença de forma objetiva e construtiva. De instituições paternalistas e autoritárias, os museus têm percorrido os árduos caminhos do diálogo cultural e da convivência com o outro. De instituições isoladas e esquecidas, os museus têm valorizado a atuação em redes e sistemas, procurando mostrar a sua importância para o desenvolvimento socioeconômico. De instituições devotadas exclusivamente à preservação e comunicação de objetos e coleções, os museus têm assumido a responsabilidade por ideias e problemas sociais".

(Museu e Patrimônio Universal, Pernambuco: Encontro do ICOM Brasil, 2007, pág. 6/7)

Outros espaços dispõem em reserva técnica parte do seu acervo como forma de se criar um espaço expositivo próprio e diferenciado. Colocando ao acesso de uma parcela mínima da sociedade (associados, mantenedores) ou cobrando, de modo diferenciado, sobre o acesso a essas obras. Sistemática que pode ser declarada ilegal no caso de ser o acervo público ou parcialmente financiado pela esfera pública (local de instalação, por exemplo, parque ou praça estatal).

Esta situação, diante do amparo legal apresentado, é ilegal e, absolutamente distante das orientações dos tratados internacionais e da ordem jurídica nacional. Representando mal uso do erário e do patrimônio público. Passível, por exemplo, de ação civil pública ou mesmo da impetração de mandado de segurança contra ato da autoridade coatora. Porém, se o acervo for privado e sem o incentivo financeiro público a acessibilidade pode sim ser restringida.

O permissivo para a temática do patrimônio cultural poder ser objeto das duas espécies de acionamentos supracitadas é mais um indicativo de sua relevância internacional e nacional. Isto porque, a ação civil pública é o instrumento a ser utilizado pelo Ministério Público e outras entidades (associações e partidos políticos) para a defesa de direitos indisponíveis, em razão de sua importância à ordem pública. Já o mandado de segurança pode ser utilizado pelo cidadão para a defesa de direito afrontado pela autoridade coatora, ou seja, o próprio Estado.

Como resultado desses acionamentos, pode-se ser determinada a imediata transferência da obra para o acervo oficial do museu ou o afastamento da entidade do espaço público ou a perda do incentivo financeiro recebido pelo Estado.

À reserva técnica, pode-se, ao menos, ser exigida a prestação de contas no sentido de se demonstrar os motivos do afastamento da obra das regras expositivas do museu e a obtenção de uma agenda de compromisso para a sua acessibilidade.

Necessário, portanto, que a reserva técnica seja ocupada apenas com obras que estejam para restauro e conservação. Enquanto que áreas próprias sejam criadas, identificadas e inclusas na agenda de exposição para as obras que abrigam.

O Brasil, infelizmente, não possui uma relação das obras artísticas que estão na posse dos museus. Esta situação leva ao mal uso desse acervo, inclusive com o desvio de obras para acervos particulares ou mesmo comercialização ilícita. Bem como, afasta da sociedade o direito de acesso as mesmas. Esta situação é de interesse público e deve ser o quanto antes equacionada como tema de ordem nacional.


V. Conclusões

Derradeiramente, recomenda-se, como prática estatal e social, que os museus apresentem periodicamente, relatório das obras em acervo, oficial e técnico; indiquem quais obras encontram-se no acervo permanente; indiquem a agenda de exposição da obras que se encontram na reserva técnica; indiquem quais obras encontram-se na reserva técnica para restauro e conservação; e, que se determine que os museus aloquem de modo diferenciado as obras que aguardam restauração e conservação, daquelas que aguardam a agenda de exposição.

Recomenda-se ainda que, em razão do princípio da transparência, essas informações estejam atualizadas para acesso dos interessados, especialmente nos endereços eletrônicos dos museus e galerias, ao menos as que possuem obras declaradas como de interesse público ou que façam jus a alguma espécie de financiamento público.

Desta forma, os museus se apresentam de modo mais organizado para eventuais fiscalizações estatais, inclusive do Ministério Público, e para apresentação de prestações de contas, quando requeridas.

Por outro lado, ter-se-á o melhor acesso a todo o acervo museólogo e melhor e efetivo uso sobre o patrimônio cultural, atingindo ele as missões de preservação, divulgação e acessibilidade.


VI. Bibliografia

BRUNO, Cristina. Museu e Patrimônio Universal. Pernambuco: Encontro do ICOM Brasil, 2007.

COLI, Jorge. O que é Arte. São Paulo: Editora Brasiliense, 15ª ed., 1995.

Dicionário de Português Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2014.

IMPERATO, Ferrante. Dell'Historia Naturale. Itália: Nápoles, 1599.

IPHAN - https://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12810&retorno=paginaIphan, acesso em 29/04/2014.

LECTLAW - https://www.lectlaw.com/def2/o001.htm, acesso em 16/05/2014.

MIRABILE, Antonio. A reserva técnica também é museu. Boletim Eletrônico da ABRACOR, n. 1, junho/2010.

MIRANDA, Jorge. Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.

POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

RANGEL, M. M. Educação patrimonial: conceitos sobre patrimônio cultural. In: MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Reflexões e contribuições para a educação patrimonial. Belo Horizonte, 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SESC - https://www.sescsp.org.br/programacao/29853_CIRCUMSTANTIAM+MARIA+BONOMI?o=homebelenzinho, acesso em 16/05/2014.

Sobre o autor
Patrícia Luciane de Carvalho

Advogada e Professora de Direito da Propriedade Intelectual em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Patrícia Luciane. Aspectos jurídicos da reserva técnica de museus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4055, 8 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30598. Acesso em: 23 dez. 2024.

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