3. Conclusão
Com pertinência ao Estado, como instituição especial, à qual se reserva o monopólio da força, também carece de um estatuto de autoproteção. Justamente por deter o monopólio da força, as constituições políticas não necessitam deferir-lhe o poder para autodefender-se, mas o contrário, limitam e condicionam o seu exercício.
O direito de Autoproteção será tanto mais legítimo, quanto forem transparentes as regras de excepcionalidade constitucional, limitadas pelo direitos das gentes e pelas normas de forma do instituto heróico.
Daí a diferença entre o estado de necessidade privado e o público. Naquele, abre-se uma exceção à regra de não-executoriedade do esforço; no público, contrariamente, a execução é regra natural dos atos governamentais, estabelecendo-se um procedimento constitucional em que convivem normas de executoriedade com técnicas de controle político 34.
Portanto, a necessidade de arquitetar um modelo próximo ideal, ajustado e coerente com os princípios maiores existentes na Ordem Maior, tem a conotação futurista, funcionando como sensor a diagnosticar, prevenir e, no mais tardar, amenizar os efeitos traumáticos das revoluções. Nesse sentido, aproveitamo-nos dos profundos ensinamentos de Bobbio 35:
"A mudança de um modelo político que dominou a história da humanidade até a presente data para um modelo político em que o Estado e a sociedade necessitarão da exata dimensão de deveres e obrigações, de um lado, e de governantes dispostos a servir, e não apenas deter o povo, de outro lado não será pacífica, crendo mesmo que a percepção aguda da necessidade de um novo modelo somente ocorrerá de forma traumática."
Não há dúvidas que as atuais regras dispostas na Constituição da República de 1988 conferem imperatividade aos arts. 136 e 137, independentemente do concurso ou colaboração dos sujeitos e da verificação de qualquer forma de validade.
Servimo-nos dos ensinamentos do Prof. Tércio Sampaio 36 para, antes de criticar a atual disposição do sistema constitucional de crises, analisá-lo dentro de uma dogmática analítica.
Nem toda situação de fato favorável explica uma norma-origem, mas apenas aquela situação institucionalizada pelas regras, ou seja, não são meras situações de fato, por exemplo,situações de força, que exemplificam as normas-origem são normas efetivas (ocorrem numa situação de fato favorável), dotadas de império e primeiras de uma série. Como não guardam nenhuma relação com qualquer norma antecedente, não são válidas, apenas imperativas, isto é, têm força impositiva. E as regras responsáveis por sua imperatividade são regras estruturais do sistema ou regras de calibração. Daí poder-se dizer que a imperatividade expressa uma relação de calibração, ou seja, uma relação não com outra norma, mas com uma regra de ajustamento.
Faz-se necessário, portanto, a regulagem ou ajustamento das atuais disposições constitucionais vigente. Graças às "regras de calibração", é possível mudar o sistema de padrão, sem desintegrá-lo, perpetrando sua capacidade de (auto)funcionamento.
Este processo de mudança, conforme expõe o Prof. Tércio Sampaio, é dinâmico. O sistema poderá sair de um padrão para outro (ex: alterar forma conferir legitimidade para adoção medidas de emergência: Decreto presidencial para lei); voltar a um padrão anterior (ex: adotar o modelo da Constituição de 1946); adquirir um novo (ex: alterar o texto dos arts. 136 e 137, por intermédio de Emenda Constitucional) num processo de "câmbios estruturais", cuja velocidade dependerá da flexibilidade de nossas atuais "regras de calibração".
Para concluir, reforçamos nosso desejo de ver o referido tema ser rediscutido, pelos inúmeros motivos – fatores – de ordem jurídica, política e circunstancial aqui apontados. Tal providência, por certo traria benefícios incomensuráveis ao ordenamento pátrio, a estabilidade institucional e a todo o Estado Democrático de Direito edificado a partir de 1988.
A panorâmica geral da constituição deve ser constantemente avaliada. Não apenas com o fito, ou a explicação que deva ser reformada para não tornar-se obsoleta, mas principalmente porque precisa ser coerente e afinar-se perfeitamente com os diversos assuntos por ela regulamentados.
Anexo A – Declaração, Prorrogação e suspensão do estado de sítio de 1891 a 1963 no Brasil *:
Ano |
Período de governo |
Dias de regime |
1891 a 1894 |
Mar. Floriano Peixoto |
295 |
1894 a 1898 |
Prudente de Moraes |
104 |
1906 a 1909 |
R. Alves |
121 |
1910 a 1914 |
Mar. Hermes da Fonseca |
268 |
1914 a 1918 |
Wenceslau Braz |
71 |
1922 a 1926 |
Artur Bernardes |
1.287 |
1926 a 1930 |
Washington Luiz |
87 |
1934 a 1937 |
Getúlio Vargas |
658 |
1955 a 1956 |
Nereu Ramos |
68 |
1956 a 1961 |
Juscelino Kubitschek |
15 |
TOTAL (70 anos) |
- |
2.974 |
Obs: * Dados fornecidos pela Revista Brasileira de Estudos Políticos; separata n. 17. Belo Horizonte, 1964.
" Se o Estado, no cumprimento da sua tarefa elementar, se mostra tão pouco eficiente, o bom-senso está a ordenar que não lhe devem exigir coisas ainda muito mais difíceis. Concluir-se-á, então, que o Estado, o poder, deve ter o objetivo limitado ao mínimo ...."
Notas remissivas e referências bibliográficas
1. Por todos, Aricê Moacir Amaral Santos. O estado de Emergência. São Paulo: RT, 1980. p. 32.
2. Síncope, de acordo com o ensinamento de Aurélio B. de Holanda (Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981), é palavra derivada do grego sigkopé, ‘ação de cortar’, pelo latim: syncope. "Queda súbita da pressão arterial ou colapso circulatório, acompanhado de anemia cerebral e perda mais ou menos completa de consciência; lipotimia."
3. Said Maluf. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 201.
4. Manuel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 328.
5. A. Machado Paupério. Anatomia do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 94-95.
6. Kildare Gonçalves Carvalho. Direito Constitucional Didático. 6a edição. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.420.
7. Bluntschli. Le Droit Public General (trad). 12a edição. Paris, 1885.
8. Ivo Dantas. A defesa do Estado e das instituições democráticas na nova Constituição. Rio de Janeiro: Aide, 1989. p. 36.
9. Este instituto foi utilizado pelo Exmo Sr Presidente João B. Figueiredo, com a vigência do Dec. n. 88.888 de 19 Out a 17 Dez 1983, no Distrito Federal.
10. José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 738.
11. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. A defesa, guarda e rigidez das constituições. RDA 4/3.
12. José Afonso da Silva. Aplicabilidade das normas constitucionais. 4a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p.136-137.
13. Segundo o mesmo autor, as normas de estabilização constitucional podem ser encontradas, ainda, nos arts: 34-36; 52,X; 85-86; 97; 102,I,a e III; 136-141 – estes últimos mais voltados para sustentação do regime).
14. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A reconstrução da democracia. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 215-216.
15. Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 9a edição. São Paulo: Atlas, 2001. p. 621.
16. Ato discricionário na lição de De Plácido e Silva (Dicionário Jurídico. 3a edição. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 235): "Assim se entende todo ato que, praticado pelo poder público, não se subordina à apreciação de outro poder, e mais se funda numa razão de ordem política, que jurídica. Várias as modalidades do ato discricionário, que se indica, assim, uma expressão genérica. Compreende, por isso atos políticos, atos de governo, atos de polícia e de todos quantos se pratiquem tendo arbítrio da autoridade como elemento característico".
17. Ives Granda Martins ; Celso Ribeiro Bastos. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 6.
18. Assim leciona Kildare Gonçalves Carvalho (Op. cit., p. 421), citando Oscar Dias Correa (A defesa do Estado e a emergência constitucional. Rio de Janeiro: Presença, 1980.): "Vale lembrar, contudo, que a Constituição não impede golpes de estado, sendo assim, não há dispositivo legal que impeça os riscos de abuso das medidas excepcionais. Adverte, a propósito, Oscar Dias Correa que nessa perplexidade – entre a hipótese de prever a emergência e vê-la utilizada com ou sem real necessidade e conveniência, o que será difícil de distinguir, na realidade, e ocorrendo o risco de não retornar, facilmente, à normalidade, e a hipótese de não a prever, com o risco de subversão e dissolução do regime, pela vitória, sobre ele, das forças, internas e externas, que o enfrentam e minam – claro que a democracia só poderia optar pelo risco menor da primeira alternativa".
19. De Plácido e Silva. Op. cit. p. 209.
20. Alexandre de Moraes. Op. cit. p. 623.
21. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6a edição. Coimbra: Almedina, 1993. p. 1146.
22. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Op. cit. p. 327.
23. Legitimidade, segundo Plácido e Silva (Op. cit., p. 61), derivado de legítimo, exprime em qualquer aspecto, a qualidade ou o caráter do que é legítimo ou se apresenta apoiado em lei... Afinal, é o que deriva da lei ou o que é introduzido pela lei, "qui ex lege aliqua descendut: per eminentiam autem legitimi dicuntur qui ex lege duodecim tabularum introducutur".
24. Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 4a edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 270.
25. Ivo Dantas. Op. cit. p. 17.
26. Antônio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. 3a edição. São Paulo: RT, 1995. p. 89-90.
27. Fernando Whitaker da Cunha . Teoria Geral do Estado (Introdução ao Direito Constitucional). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1990. p. 461-462.
28. Konrad Hesse. A força normativa da Constituição. (Trad. Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p. 31-32.
29. Ives Granda Martins ; Celso Ribeiro Bastos. Op. cit. p. 14.
30. Said Maluf. Op. cit. p. 37.
31.Em sentido semelhante, De Plácido e Silva. Dicionário Jurídico. 3a edição. Vol. III e IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 245
32. Jacques Maritain. El hombre y el Estado. Trad. Manuel Guerea. Buenos Aires, 1952. p. 148
33. A. Machado Paupério. Teoria Geral do Estado. 8a edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 343.
34. José Carlos Cal Garcia. Linhas mestras da Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 141.
35. Nesse sentido, Noberto Bobbio. A era dos Direitos.
36. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Introdução ao estudo do Direito. 2a edição. São Paulo, 1994. p. 190.