2. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E OS OBSTÁCULOS A SUA EFETIVAÇÃO
2.1 Eficácia jurídica e Eficácia social
A eficácia jurídica significa a possibilidade de a norma desde o princípio produzir seus efeitos jurídicos, em razão do seu enunciado, já dispor de forma suficiente, sobre as situações e comportamentos nela dispostos.
Assim, a eficácia jurídica trabalha com a exigibilidade ou executoriedade da norma, ou seja, na possibilidade jurídica da aplicação da norma, de esta produzir efeitos na ordem jurídica.
A eficácia social, por sua vez, é a efetivação ou realização da norma no mundo dos fatos, ou seja, a efetividade da norma.
As duas facetas (jurídica e social) da eficácia, todavia, não representam categorias estanques; antes, guardam uma estreita relação entre si. A eficácia jurídica situa-se, por assim dizer na antessala da eficácia social, já que, em princípio, não há como falar em efetivar aquilo que sequer é aplicável juridicamente. Donde a afirmação de a eficácia social depende da eficácia jurídica. (DUARTE, 2011, p. 122)
Portanto, não há como falar de eficácia social, sem abordar a questão da eficácia jurídica, ante a íntima relação existente entre elas, e porque não dizer dependência.
A eficácia jurídica trata da necessidade ou não de prévia conformação legislativa das normas que consagram direitos sociais, tendo em vista a (in)suficiente densidade normativa de tais direitos. Discute-se nessa seara a (in)aplicabilidade direta ou imediata dos direitos a prestações sociais, e por consequência, o seu reconhecimento como direitos subjetivos ou não, e, por conseguinte, a sua justiciabilidade.
Isso, porque, predomina o entendimento, que o Judiciário ao deferir um direito subjetivo diretamente da Constituição, estaria a tomar decisões políticas, ferindo a Separação dos Poderes (funções).
A insuficiência de recursos para a efetivação dos direitos fundamentais sociais traz em pauta a teoria conhecida como o da Reserva do Possível.
De forma geral, a eficácia jurídica e a insuficiência de recursos, são os dois principais argumentos levantados contra a efetivação dos direitos fundamentais sociais, pretende-se no presente estudo, ao menos em parte, afastá-los, na busca de maior efetividade dos direitos sociais.
A eficácia jurídica ou aplicabilidade dos direitos fundamentais sociais não tem tanta importância, se considerado o cenário brasileiro, uma vez que quase todas as normas proclamadoras de direitos fundamentais sociais já foram concretizadas ou conformadas, suficientemente ou não, pelo legislador ordinário, não sendo necessária a aplicação direta de preceitos constitucionais de cunho social, salvo na hipótese da intervenção legislativa densificadora mostrar-se insuficiente. (DUARTE, 2011, p. 124)
O entendimento predominante na doutrina e na jurisprudência é que cabe ao Legislativo especificar o conteúdo, delimitar o contorno da prestação, e identificar a quem se destina determinado direito social, não podendo o Judiciário identificá-lo e especificá-lo, por intermédio da interpretação das normas constitucionais, e assim torná-los plenamente eficazes. As decisões técnicas e nomeadamente políticas acerca da utilização de recursos escassos estão confiadas ao Legislativo.
Segundo esse entendimento, o Judiciário ao interpretar determinado direito social direto da Constituição, estaria se imiscuindo na função do Poder Legislativo, o que caracterizaria ofensa à independência dos Poderes. Assim, somente em situações excepcionais, poderia ser extraído diretamente do texto constitucional um direito a certa prestação de cunho social, em situações para preservar o próprio núcleo essencial ou do conteúdo mínimo da norma relativa a um determinado direito fundamental social.
Apesar da competência do Legislativo para especificar e delimitar os direitos sociais, importante ressaltar que há doutrina que defende que todas as normas constitucionais que preveem direitos fundamentais são dotadas de eficácia, e são autoaplicáveis, nesse sentido:
Independentemente – ainda – da discussão em torno da possibilidade de se reconhecerem direitos subjetivos a prestações com base em normas de cunho eminentemente programático (para nos mantermos fiéis à terminologia adotada), importa ressaltar mais uma vez que todas as normas consagradoras de direitos fundamentais são dotadas de eficácia e, em certa medida diretamente aplicáveis já ao nível da Constituição e independentemente de intermediação legislativa. (...) Todas as normas de direitos fundamentais são direta (imediatamente) aplicáveis na medida de sua eficácia, o que não impede que se possa falar de uma dimensão “programática” dos direitos fundamentais. (SARLET, 2012, p. 294)
Portanto, pode-se concluir que todas as normas consagradoras de direitos fundamentais são dotadas de eficácia, mesmo as de cunho programático, uma vez que impõem aos órgãos estatais, de modo especial ao legislador, “imposições legiferantes”, a tarefa de concretizar e realizar os programas, fins, tarefas e ordens nelas contidas.
2.2 Espécies de direitos fundamentais sociais
A Constituição Federal de 1988 traz no artigo 6° os direitos fundamentais sociais, são eles: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados.
Esses direitos são desenvolvidos posteriormente na Constituição, nos (artigos 7° a 11) direitos dos trabalhadores urbanos e rurais e os de liberdade sindical, (artigos 194 e 195) seguridade social, (artigos 201 a 202) previdência social, (artigos 196 a 200) saúde, (artigos 205 a 217) educação, cultura e desporto.
O artigo 6° não é taxativo, sendo meramente exemplificativo, pode-se citar o direito ao transporte público, sem dúvida um direito fundamental social, que está previsto no artigo 7º, inciso IV[1]da Constituição.
A seguir serão abordados alguns conceitos dos direitos sociais previstos no artigo 6° e dispersos pela Constituição Federal, contudo, sem pretender esgotá-los, mas, apenas para trazer alguns comentários importantes para o estudo, procurando fazê-los dentro da teoria do Mínimo Existencial, que ainda será objeto de análise.
2.2.1 Direito à Educação
O direito à educação está previsto no artigo 6° e nos artigos 205 a 214 da CF. Dentre esses artigos qualificam-se como direito fundamental, além do artigo 6°, os artigos (205 a 208). Já os artigos (209 a 214) referem-se aos aspectos procedimentais e organizacionais. (PINHEIRO, 2008, p. 163)
O artigo 205 afirma que “a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para trabalho”.
Nesse sentido, verifica-se que o direito geral à educação abrange uma série de direitos, dos quais o direito à instrução (no sentido de um direito a que o Estado preste ensino, colocando à disposição do titular do direito: escolas, material didático e professores) é apenas um entre outros direitos. Entende-se que referido dispositivo é de norma programática,
O artigo 208 prevê que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante: inciso “I educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”. O inciso IV do mesmo artigo, diz que a ”educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”. Os parágrafos 1° e 2° do artigo 208 afirmam de forma categórica que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, e o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente”.
Há o entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência de que o ensino fundamental obrigatório e gratuito, como no caso da educação infantil em creche e pré-escolas às crianças até cinco anos, consiste em direito público subjetivo, havendo decisões do
STF nesse sentido, conforme no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n° 639.337/SP, Rel. Min. Celso De Mello[2].
Portanto, o STF tem admitido a intervenção concretizadora do Poder Judiciário nos casos de omissão do Estado na implementação de políticas públicas, em especial o direito à educação infantil, previsto na Constituição, entendendo neste caso não haver transgressão ao postulado da Separação dos Poderes, pois o que se protege é o direito fundamental à educação.
2.2.2 Direito à Saúde
O direito à saúde está previsto nos artigos 6° e (196 a 200) da Constituição Federal. Não há dúvidas de que o direito fundamental à saúde é o que levanta as maiores discussões e polêmicas, haja vista sua identificação com o direito fundamental à vida (artigo 5°, caput, da CF) e a dignidade da pessoa humana. (SARLET, 2012, p. 326)
O artigo 196 traz “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Uma das dificuldades para o reconhecimento de um direito subjetivo individual a prestação na área da saúde é a forma aberta pelo qual este direito foi consagrado pelo Constituinte, ou seja, qual o conteúdo e o alcance desse direito, sendo necessária a conformação legislativa. (SARLET, 2012, p. 327)
Não obstante a dificuldade suscitada, importante ressaltar que:
Assim, não devem prevalecer os habituais argumentos em sentido contrário à efetivação, tais como: a forma aberta de positivação do direito à saúde, a escassez relativa dos recursos e a falta de legitimidade do Poder Judiciário para fixar o modo pelos quais os recursos públicos serão alocados ou distribuídos. (PINHEIRO, 2008, p. 156)
Portanto, cuidando-se do direito fundamental à saúde, não se sustentam os argumentos de norma de eficácia limitada, ausência de recursos (Reserva do Possível), incompetência dos órgãos judiciários para alocação e destinação de recursos públicos. A depender das circunstâncias do caso concreto, é possível o reconhecimento de um direito originário a prestações na esfera da saúde. (SARLET, 2012, p. 328)
No que tange à jurisprudência, até pouco tempo atrás, o STJ não reconhecia o direito à saúde como direito subjetivo, pois considerava que as normas constitucionais sobre o tema tinham caráter meramente programático, sem qualquer eficácia[3].
No entanto, houve uma mudança “saudável”, ou seja, o STJ alterou esse entendimento e passou a admitir o direito subjetivo à saúde, independentemente de concretização do legislador ordinário[4], nesses julgamentos foram deferidos fornecimento de medicamentos. (SARLET, 2012, p. 332)
Também o STF[5] tem seguido a mesma orientação do STJ, e reconheceu o direito subjetivo a um portador do vírus HIV ao recebimento de medicamento. O STF limitou o fornecimento de medicamentos apenas dos constantes da lista elaborada pelo Ministério da Saúde, e o complementado pela legislação. Há quem discorde dessa posição do Supremo.
Portanto, revela-se ameaçador à efetividade do direito à saúde o engessamento da atividade judicial para conceder apenas os medicamentos incluídos previamente na lista, pois conforme já observado, alguns remédios apenas incorporados após uma delonga de tempo considerável. Além disso, é factível que possa ocorrer ingerências dos governantes para que não se introduza na lista remédios de alto custo, evitando-se, assim, impactos relevantes no orçamento. (PINHEIRO, 2008, p. 162)
As orientações do STF e do STJ têm sido seguidas pelos diversos tribunais do Brasil. Portanto, apesar de várias críticas recebidas, nas questões referentes ao direito à saúde, o que se tem visto é um ativismo judicial nesta área, de modo a proteger o próprio direito à vida.
2.2.3 Direito à Alimentação
O direito à alimentação foi acrescido pela Emenda n° 64/2010, esse direito também está previsto no artigo 7°, inciso IV, que trata do salário mínimo, e ele está diretamente relacionada ao direito de assistência aos desamparados.
Todo ser humano para sobreviver precisa se alimentar, e se possível com alimentos saudáveis e nutritivos. “Todo indivíduo tem direito a se socorrer do Poder Judiciário no intuito de conseguir alimentos que assegurem sua existência”. Entretanto, são raras as demandas judiciais pleiteando o direito à alimentação. (LAZARI, 2011, p. 100)
Embora a alimentação seja considerada um direito social fundamental, a fome ainda não foi erradicada no Brasil, o que se espera seja solucionado o mais breve possível pelos Poderes instituídos pela Constituição Federal.
2.2.4 Direito ao Trabalho
O direito ao trabalho é o direito social previsto de forma mais extensa na Constituição Federal, nos artigos 7° a 11.
O direito ao trabalho pode ser classificado em blocos: direito de trabalhar, ou seja, o direito de não ficar desempregado, como quando assegura o mercado de trabalho da mulher (art. 7, XX) ou quando protege os trabalhadores contra a automação (art. 7°, XXVII). O direito de trabalhar com dignidade que se refere às condições dignas de trabalho, como, por exemplo, adicional de remuneração para atividades insalubres ou perigosas (art. 7°, XXIII) ou da duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais (art. 7°, XIII). O direito de perceber rendimentos pelo trabalho, isto é, a remuneração, que não pode ser aviltante, exemplos, o salário mínimo (art. 7°, IV) ou o décimo terceiro (art. 7°, VIII). (LAZARI, 2012, p. 101)
O direito ao trabalho é visto como direito de defesa, de proteção do trabalhador, contra eventuais abusos do empregador. A doutrina majoritária não admite o direito subjetivo de pleitear um trabalho no Poder Judiciário.
(...) constata-se que o direito ao trabalho, ao menos em nosso direito constitucional, foi objeto de concretização em diversas outras normas constitucionais, inclusive, na seara dos direitos fundamentais, como bem demonstra o extenso rol do art. 7°, sem que, no entanto, se possa chegar ao extremo de reconhecer a existência de um direito subjetivo a local de trabalho (direito a um emprego). (SARLET, 2012, p. 298)
Seria dizer: todo direito de trabalhar exige, de imediato, uma contrapartida materializada na oferta de emprego pelo Estado ou pelo âmbito privado. Tal pensamento é equivocado, obviamente. Não se pode cobrar o Estado, tão menos a iniciativa privada a receber mão de obra de que não precisa ou, principalmente, de que não pode pagar. (LAZARI, 2012, p. 101)
Argumentam os defensores dessa posição, que o direito subjetivo ao trabalho, implicaria maiores custos ao empregador, que encareceria as mercadorias e produtos, trazendo desequilíbrio na economia, e o resultado seria justamente o contrário do esperado, ou seja, o desemprego e a inflação.
Apesar disso, o direito ao trabalho, como direito fundamental, é endereçado aos Poderes Públicos, seja ao Legislador (quando necessita de concreção legislativa), ao Administrador (para implementação de políticas públicas de trabalho e emprego), e ao Judiciário (quando aprecia as demandas que visam garantir a sua aplicação), não podendo se furtar à tutela judicial das políticas públicas, bem como aos particulares, sobretudo, no âmbito social-trabalhista. (FONSECA, 2006, p. 249)
Logo, mesmo não ensejando o direito subjetivo, o direito ao trabalho não deixa de ser um direito fundamental social, o que implica em obrigações ao Legislativo, Executivo, Judiciário e ao particular.
Pode-se dizer que o salário mínimo está dentro do direito ao trabalho, uma vez que o salário é a contraprestação pelo trabalho.
Já foi objeto de vários debates o art. 7°, inciso IV in verbis “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”, sendo o “maior descompasso da Constituição de 1988 entre norma e fato”. (LAZARI, 2012, p. 103)
No julgamento da ADI n° 737-8, o STF considerou inconstitucional o valor do salário mínimo atribuído pela Lei n° 8149/92, uma vez que não atendia ao conteúdo do inciso IV, do artigo 7°, da CF. Porém, tal ação foi extinta pelo advento de nova lei regulamentando a remuneração impugnada, motivo pelo qual o STF não se manifestou conclusivamente.
Para alguns doutrinadores renomados, como por exemplo, LUIS ROBERTO BARROSO e CELSO ANTÕNIO BANDEIRA DE MELLO, há de se reconhecer a inconstitucionalidade do valor estabelecido pela lei para o salário mínimo:
(...) parece oportuna a referência à posição sustentada por alguns dos nossos mais ilustres doutrinadores, que, dentre outros aspectos chegaram a admitir a possibilidade de reconhecer-se, no caso concreto, a insuficiência e, em decorrência, a inconstitucionalidade do valor estabelecido pela lei para o salário mínimo, condenando-se o empregador ao pagamento da diferença apurada em Juízo, ou mesmo a eventual viabilidade de uma indenização por parte do Estado, no sentido de cobrir a diferença entre o valor previsto na lei e o montante efetivamente necessário para atender os critérios constantes na Constituição. (SARLET, 2012, p. 310)
O salário mínimo precisa atender ao que está previsto na Constituição, já que agindo assim estará atendendo ao Mínimo Existencial.
2.2.5 Direito à Moradia
O direito à moradia, assim como o direito à alimentação, foi inserido na Constituição Federal pela EC n° 26/2000, e representou grande avanço, uma vez que ter direito a um lar, a uma moradia, um cantinho para chamar só de seu, não há dúvida, atende ao princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, já havia previsão da moradia, como uma das condições básicas a ser atendida pelo salário mínimo, art. 7°, inciso IV, da CF.
O artigo 23, IX, da CF diz da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais”. O Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966 (PIDESC), no art. 11, assim dispõe:
Os Estados signatários do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e morada adequadas, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida.
Outros documentos internacionais que previram o direito à moradia como direito básico da pessoa humana são a Declaração de Vancouver (1976) e a Declaração de Istambul (1996), dentre outros.
O direito à moradia pode ser dividido em três grandes grupos (LAZARI, 2012):
1. O direito de ser proprietário/possuidor de um lar
O direito à moradia, de acordo com a doutrina prevalente, e mesmo com os parâmetros internacionais, não se confunde, necessariamente, com o direito à propriedade. Nesse sentido, (PINHEIRO, 2008, p. 169), (SARLET, 2008, p. 254), e (LAZARI, 2012, p. 104) “em razão do alto custo individualizador desta faceta do direito social à moradia, paradoxal à grande quantidade de indivíduos que vivem periferizados”.
Inobstante esse entendimento majoritário da doutrina, a grande maioria dos brasileiros sonha com a casa própria. Vide o sucesso do programa do governo federal “Minha Casa, minha vida”, no qual os imóveis são adquiridos por meio de financiamentos junto a Caixa Econômica Federal, podendo ser usado para tanto o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Talvez, não seja o caso do Estado sozinho arcar com a construção e entrega da moradia aos necessitados, de simplesmente dar a casa, mas, de se pensar em formas alternativas, que garantam maior acesso dos hipossuficientes à moradia, tais como financiamento com maior prazo, ou mesmo o aluguel social, meios para se garantir a posse/propriedade a todo cidadão brasileiro.
Num país, onde grande parcela da população habita em favelas e nas periferias, dar acesso à moradia digna, não há dúvida, é atender ao valor da dignidade da pessoa humana, pois não se pode falar nesta sem o atendimento daquela.
2. O direito de não perder um lar
A questão aqui tratada é o da impenhorabilidade do bem de família. Todavia, no RE n° 407.688-8/SP, de Relatoria do Ministro Cezar Peluzo foi considerada constitucional a penhora do imóvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislação que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de família (art. 3°, inciso VII), da Lei Federal n° 8009/90 (impenhorabilidade do bem de família), na versão dada pela Lei Federal n° 8245/91 (locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes).
Diante da importância do referido Recurso Extraordinário serão feitos alguns comentários sobre essa decisão do STF. Por questão de espaço para o artigo científico, não se transcreverão os votos dos Ministros proferidos naquele recurso extraordinário, contudo, é preciso enfatizar que o Ministro Cezar Peluzo para fundamentar seu voto favorável à penhora do bem de família do fiador, disse “que castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantia mais custosa para as locações residenciais, com consequente desfalque no campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia”. (grifo nosso)
Em determinado momento do julgamento, o Ministro Eros Grau disse ao Ministro César Peluzo “A minha discordância do voto de Vossa Excelência é que não estou me apegando à lógica do mercado no meu voto, mas, sim ao que diz a Constituição. É nesse ponto que discordo de Vossa Excelência”, e estava coberto de razões o Ministro Eros Grau.
Infelizmente, por maioria de votos, vencidos os Ministros Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Mello, o STF considerou constitucional a penhora do imóvel residencial do fiador dado como garantia em contrato de locação.
Essa decisão do STF desrespeitou o direito fundamental social à moradia, incorrendo até mesmo na violação da dignidade da pessoa humana. Não foram respeitados os princípios da proporcionalidade, uma vez que ao Estado é vedado intervir de modo excessivamente insuficiente, ou o que é pior nem atuar, e também o da necessidade, tendo em vista que poderia haver outros meios disponíveis para garantia do crédito em execução, de modo a recair a obrigação no meio menos gravoso, não atingindo o único imóvel do fiador, ou seja, a moradia dele e de seus familiares. Poderiam ser exigidas outras garantias. (SARLET, 2008, p. 255)
Assim como essa decisão, o STF desrespeitou o Mínimo Existencial, o qual veda o confisco, a moradia é necessidade vital da pessoa humana, tratando-se de direito indisponível, e não sujeito à expropriação via penhora embasada em contrato de fiança.
Haja vista, que o fiador, e seus familiares, ao perderem seu único imóvel, que foi dado em garantia em contrato de locação, se tornarão mais pobres, e com a transferência do referido imóvel ao credor, que não raras vezes, já detém outros, o tornará mais rico, portanto, no limite, haverá aumento da concentração de renda.
(...) se não ocorrer uma reformulação radical do entendimento ora prevalente e expresso pelo voto da maioria dos seus Ministros, pelo menos que haja sensibilidade suficiente para uma possível flexibilização à luz das circunstâncias do caso concreto, pena de, no limite acabarem sendo chanceladas situações de extrema injustiça. (SARLET, 2008, p. 259)
Realmente após a injusta decisão no RE 407.688-8/SP houve mudança de entendimento do STF, havendo aumento dos julgados que passaram a entender ser possível a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação. Espera-se que com a mudança de alguns Ministros do STF, possa ser modificado esse entendimento, a fim de que não sejam “chanceladas situações de extrema injustiça”, conforme SARLET.
3. O direito de que o lar seja servido por realizações estatais de absoluta necessidade
Nesse grupo estão englobados os serviços públicos de asfaltamento, energia elétrica, água encanada, saneamento básico, calçamento, coleta de lixo, dentre outros. Não basta ter a moradia, se ela não estiver dotada dos serviços estatais básicos.
Muitas vezes, assistem-se à programas de desfavelamento, nos quais são urbanizadas as áreas de favelas, ou os moradores são alocados em outro lugar, porém, faltam os serviços essenciais básicos, ou seja, de infraestrutura, de escolas, postos de saúde, áreas de lazer, dentre vários outros. As pessoas simplesmente são “contempladas” com o direito à casa própria, mas, sem que o princípio da dignidade da pessoa humana seja atendido por completo.
2.2.6 Direito ao Lazer
O direito ao lazer está previsto no artigo 6° da Constituição Federal, e também é uma das necessidades vitais básicas a ser atendida pelo salário mínimo, art. 7°, inciso IV, da CF. Não existe tópico específico a explicar o que vem a ser o direito social ao lazer, mas, é possível extraí-lo dos direitos à cultura (art. 215 e 216) e do desporto (art. 217). (LAZARI, 2012, p. 107)
O direito ao lazer tem conceito amplo podendo abarcar desde uma quadra poliesportiva, praças públicas, parques, feiras de livros, teatro, cinema, show, shopping centers, internet, programas televisivos, viagens, dentre vários tantos outros.
2.2.7 Direito à Segurança
O direito à segurança, a que se refere o artigo 6° da Constituição Federal é o da segurança pública. (LAZARI, 2012, p. 107)
De acordo com o artigo 144 da CF “é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, goza de exígua carga principiológica, não podendo o Poder Judiciário, após o requerimento de uma comunidade de moradores, por exemplo, determinar, isolada e sem analisar prováveis efeitos colaterais, o policiamento de uma região, deixando desguarnecido outro setor da municipalidade. (LAZARI, 2012, p. 108)
Assim, de acordo com a conveniência e oportunidade, com base em estatísticas, cabe a Administração Pública a obrigação de prestar segurança pública aos cidadãos, sendo a insegurança pública um dos males que mais afligem os brasileiros nas últimas décadas, ante a escalada da violência, e o surgimento e crescimento do crime organizado.
A questão da segurança pública é complexa, o que se verifica é que a doutrina não o admite como direito subjetivo, talvez, até mesmo pela falta de trabalhos científicos nesta área.
2.2.8 Direito à Previdência Social
O direito à previdência social tem previsão no artigo 6º, e está regulamentado nos artigos 201 e 202 da Constituição Federal, assim com na legislação Lei n° 8213/1991 e nos regulamentos do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS).
O direito à previdência social liga-se ao direito ao trabalho, pois irá se beneficiar aquele que já trabalhou fazendo jus ao recebimento do benefício pleiteado, ou que por um infortúnio não possa mais trabalhar. (LAZARI, 2012, p. 110)
O direito à previdência é direito público subjetivo, nos casos em que o trabalhador preencher os requisitos fará jus a ele.
2.2.9 A proteção à maternidade e a infância
O direito à proteção à maternidade e a infância estão dispersos por todo o texto constitucional. Como se denota dos artigos, 5°, L, art. 7°, XVIII e XX, 201, II e 203, I e II, todos da CF.
O constituinte, de forma equivocada, qualificou os direitos à moradia e à infância como gênero, quando na verdade são espécies dos direitos fundamentais sociais da educação, previdência social e assistência social. Os direitos à proteção da maternidade e a infância não necessitariam de condição autônoma, uma vez que já se encontram dentro de algum grupo maior de direito social. (LAZARI, 2012, p. 112)
2.2.10 A assistência aos desamparados ou Direito à Assistência Social
O último direito social previsto no extenso rol do artigo 6° é a assistência aos desamparados ou direito à assistência social, também previsto no artigo 203 da CF, conforme Ana Paula de Barcellos é o “direito tampão”, por representar o último recurso na preservação da dignidade humana. (LAZARI, 2012, p. 113)
2.3 Os principais obstáculos à eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais.
2.3.1 Direitos sociais são normas programáticas?
Durante o século XIX predominou conceitos da ideologia liberal, segundo a qual os direitos sociais não eram dotados de qualquer normatividade, devendo ser relegados a normas programáticas. Referidas normas eram dirigidas apenas aos poderes políticos (Executivo e Legislativo), aos quais caberia a função de atribuir efetividade a elas.
Apesar da natureza aberta e indeterminada das normas fundamentais que preconizam direitos sociais prestacionais, estas devem ser concebidas como princípios que emanam mandados de otimização, ou seja, deve-se buscar a maximização dos efeitos da norma, dentro das possibilidades fático-jurídicas do caso concreto. (PINHEIRO, 2008, p. 101)
A definição de normas programáticas
Cuida-se, portanto, de normas que apresentam a característica comum de uma (em maior ou menor grau) baixa densidade normativa, ou, se preferirmos, uma normatividade insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado, ou que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigida ao Legislador. (SARLET, 2012, p. 292)
Ao se falar em normas programáticas, destaca-se a classificação de normas constitucionais de eficácias plena, contida e limitada. (SILVA, 1998, p. 82)
As normas constitucionais de eficácia plena são àquelas que independem de provimento legislativo integrador para que possam gerar efeitos. O exemplo é o art. 7°, inc. XVIII, da CF, que dispõe sobre a licença-gestante com prazo de 120 dias. Nesta hipótese não é necessária à lei, pois os efeitos decorrem automaticamente do texto constitucional.
As normas constitucionais de eficácia contida são aquelas que estão aptas a gerar efeitos até que sobrevenha legislação restritiva. O exemplo é o art. 5°, inc. XIII, da CF que possibilita o livre exercício profissional, até que o legislador regulamente àquela profissão, podendo estabelecer requisitos. Como por exemplo, o art. 8°, da Lei n° 8906/91 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), o qual estabelece, dentre outros requisitos, a aprovação no exame da Ordem, para que se possa exercer a profissão de advogado.
As normas constitucionais de eficácia limitada são as que necessitam de provimento legislativo ou executivo superveniente para gerar efeitos. O exemplo é o artigo 5°, inc. XXXII, da CF, “O Estado promoverá, na forma da lei, a proteção do consumidor”, o que foi feito posteriormente com o Código de Defesa do Consumidor, Lei n° 8.078/1990. Dentro deste último grupo estão as assim chamadas “normas programáticas”, as quais estabelecem programas sociais a serem implementados pelo Estado.
JOSE AFONSO DA SILVA defende que as normas programáticas teriam uma eficácia negativa, podendo o Judiciário atuar apenas nos casos de ação, do Poder Público, contrária à norma, não admitindo a concretização judicial nos casos de omissão do Estado.
No entanto, num tom de crítica às “normas programáticas”, o ex-ministro do STF EROS GRAU, (2012, p. 357/358)
Penso já ser tempo de abandonarmos o uso dessa expressão “normas programáticas”, que porta em si vícios ideológicos perniciosos. Essas assim chamadas normas “programáticas” são normas dotadas de eficácia normativa, seguramente. O adjetivo não desqualifica o substantivo a que vem acoplado. A propósito, revendo texto que escrevi há mais de 20 anos [Grau 1981] seguidamente pergunto-me por que terá sido esquecida a lição do Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, que, em acórdão já de 29 de janeiro de 1969 (NJW 1969, Heft 14, pp. 597-604), assumiu o entendimento nos seguintes termos enunciado, parcialmente, na síntese de Rolando E. Pina: [1973:72 e ss]
(a) Quando a teoria sobre normas constitucionais programáticas pretende na ausência de lei expressamente reguladora da norma esta não tenha eficácia, desenvolve estratégia mal-expressada de não vigência (da norma constitucional), visto que, a fim de justificar-se uma orientação de política legislativa – que levou à omissão do Legislativo – vulnera-se a hierarquia máxima normativa da Constituição.
(b) O argumento de que a norma programática só opera seus efeitos quando editada a lei ordinária que a implemente implica, em última instância, a transferência de função constituinte ao Poder Legislativo, eis que a omissão deste retiraria de vigência, até a sua ação, o preceito constitucional.
(c) Não dependendo a vigência da norma constitucional programática da ação do Poder Legislativo, quando - atribuível a este a edição de lei ordinária -, dentro de um prazo razoável, não resultar implementado o preceito, sua mora implica violação da ordem constitucional.
(d) Neste caso, tal mora poder ser declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário, competindo a este ajustar a solução do caso sob judice ao preceito constitucional não implementado pelo legislador, sem prejuízo de que o Legislativo, no futuro, exerça suas atribuições constitucionais.
(…) A Constituição do Brasil é – tem sido – uma Constituição dirigente, e vincula o legislador.
Portanto, nessa perspectiva EROS GRAU defende que as normas de direitos sociais são capazes de gerar direitos subjetivos aos cidadãos, pois são diretamente aplicáveis e vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Também de acordo com SARLET, há quem aceite, dentre os quais o próprio CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO e LUIS ROBERTO BARROSO, um direito subjetivo individual à prestação, nas hipóteses em que a norma definidora de um direito fundamental determine o conteúdo da prestação, e que o procedimento para sua realização esteja expresso ou, no mínimo, implicitamente regulado na Constituição.
FLÁVIA PIOVESAN realça que os direitos econômicos, sociais e culturais são “autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis e exigíveis”, não sendo meras caridades. (PINHEIRO, 2008, p. 108)
CANOTILHO estabelece uma distinção entre normas programáticas e os direitos fundamentais sociais, as primeiras são diretrizes ao legislador, mas, que não teriam o condão de gerar direito subjetivo, de exigir sua implementação, a título de exemplo o direito ao emprego. Já os direitos fundamentais sociais conferem aos indivíduos a prerrogativa de exigir do Estado à prestação material, por exemplo, o direito à saúde. (PINHEIRO, 2008, p. 105)
ROBERTY ALEXY empreendeu a tentativa de harmonizar os argumentos favoráveis e contrários a direitos subjetivos a prestações sociais numa concepção calcada na ideia da ponderação entre princípios. Assim, se de um lado temos o princípio da liberdade fática (ou liberdade real), do outro se encontram os princípios da competência decisória do Legislativo, o princípio da Separação dos Poderes e os princípios materiais relativos à liberdade jurídica de terceiros, outros direitos sociais ou mesmo bens coletivos.
O modelo ponderativo de Alexy oferece-nos, para além do exposto, talvez a melhor solução para o problema, ao ressaltar a indispensável contraposição dos valores em pauta, além de nos remeter a uma solução calcada nas circunstâncias do caso concreto (e, portanto, necessariamente afinada com as circunstâncias da proporcionalidade), já que estabelecer, nesta seara, uma pauta abstrata e genérica de diretrizes e critérios efetivamente não nos parece possível. Assim, em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo (assim como o da separação dos poderes e as demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais, ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassado, tão somente um direito subjetivo prima facie, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de um tudo ou nada. (SARLET, 2012, p. 356)
SARLET defende, ainda, que a exigibilidade dos direitos prestacionais em juízo não se limita à garantia do mínimo social necessário a uma vida digna. De forma que, pode-se inferir que todos os direitos fundamentais sociais prestacionais podem ser demandados em Juízo, e no caso concreto incidirá a ponderação dos princípios.
O princípio da dignidade da pessoa humana, nesse aspecto, assume importante função demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar qual o padrão mínimo dos direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos individuais) a ser reconhecido.
2.3.2 Da legitimidade do Poder Judiciário
No Estado Democrático de Direito os Poderes Públicos estão estruturados de modo a preservarem sua independência, sem deixarem, contudo, de atuar de forma harmônica, isso é o que está previsto no art. 2°, da CF, “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Ao Judiciário cabe a função de “garantidor dos direitos constitucionais”, ou seja, assegurar os direitos fundamentais, quando os Poderes constituídos forem omissos ou agirem em desconformidade com o preceito constitucional. (PINHEIRO, 2008, p. 135)
A nossa Constituição cidadã também prevê no art. 102 “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”, bem como no artigo 5°, inciso XXXV “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”. Também a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no artigo 8°, assim prevê “todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei”.
Portanto, diante da não realização dos direitos sociais prestacionais pelos Poderes Públicos (Executivo e Legislativo), ao Judiciário caberá determinar a sua concretização desde que presentes os requisitos fáticos e jurídicos exigidos. (PINHEIRO, 2008, p. 136)
Porém, não há consenso na doutrina e jurisprudência acerca da possibilidade do Poder Judiciário determinar ao Estado o fornecimento de prestações materiais. Nesse contexto, faz-se necessário, ainda que de modo superficial, a análise de duas correntes doutrinárias divergentes: o procedimentalismo e o substancialismo.
A corrente procedimentalista tem nos professores JÜRGEN HABERMAS e JONH HART ELY os seus principais defensores, nessa perspectiva, a visão material da Constituição e o próprio controle de constitucionalidade, enfraqueceriam a noção de democracia, na medida em que magistrados não foram legitimados democraticamente pelo povo, e, portanto, não poderiam determinar as condutas do Poder Público (Legislativo e o Executivo), e por consequência, aos cidadãos.
HABERMAS censura a interpretação construtiva das normas jurídicas por parte dos juízes, porquanto, tal postura abalaria a separação dos poderes, e, por conseguinte, a própria democracia. Ele se coloca contra a politização dos juízes. A Constituição deve ser interpretada apenas de uma concepção procedimentalista, de modo a resguardar a construção democrática do Direito. Os próprios cidadãos devem chegar a um consenso sobre seus problemas e como resolvê-los. (PINHEIRO, 2008, p. 137)
Diante da visão procedimentalista da Constituição, na qual a preocupação maior reside na busca pela igualdade de participação no debate travado no jogo democrático, exsurge o natural questionamento se tal concepção seria efetivamente capaz de garantir a justiça social. Considerando a indagação acima formulada, defendemos que a corrente procedimentalista, apesar de louvável por objetivar o fortalecimento da democracia, não se revela como a mais adequada para a garantia da justiça social, sobretudo nos países em que a democracia se apresenta frágil pelo fato de a população não gozar de liberdade no sentido real, ou seja, quando a população não tem à sua disposição as prestações materiais básicas para uma existência digna. Assim, quando ausentes os aludidos ingredientes sociais numa democracia, os cidadãos assumem o papel de meros espectadores das decisões políticas, de modo que a democracia passa a apresentar caráter apenas formal. (PINHEIRO, 2008, p. 139)
Portanto, a concepção procedimentalista é aceitável em países desenvolvidos, nos quais os cidadãos tem sua plena existência assegurada, com a população escolarizada o suficiente para saber fazer suas escolhas e serem ouvidos politicamente. Já nos países em desenvolvimento, como no caso do Brasil, onde há grande número de analfabetos, incluídos os funcionais, existindo um abismo social, o procedimentalismo deve ser aplicado com reservas.
Por seu turno, a corrente substancialista defende que a Constituição imponha o direcionamento das ações do Poder Público, assim como de todos os cidadãos. Destarte, a Constituição traça os rumos da sociedade, e não é apenas o reflexo desta.
Nesse sentido, “A partir de tais premissas, pode-se inferir que a referida corrente teórica é a que melhor se amolda à concepção do dirigismo constitucional, uma vez que prescreve que o Estado deve se pautar pelas diretrizes fixadas no texto constitucional”. (PINHEIRO, 2008, p. 141)
MAURO CAPELLETI defendeu arduamente a concepção material de Constituição, bem como a possibilidade do Judiciário impor ao Poder Público a realização dos direitos fundamentais. Entre nós, destaca-se PAULO BONAVIDES que enaltece o papel do Judiciário na efetivação dos direitos fundamentais, não devendo ser eles só interpretados, mas, principalmente, concretizados. Portanto, no contexto socioeconômico brasileiro, é aceitável maior aplicabilidade da concepção substancialista. (PINHEIRO, 2008, p. 141/142)
Quanto à legitimidade do Poder Judiciário para a efetivação dos direitos sociais, para alguns, ela esbarra no princípio democrático, ou seja, os juízes não foram eleitos democraticamente pelo povo para exercer suas funções. Também argumentam que os magistrados não têm conhecimento técnico para implementar as políticas públicas, além disso, suas decisões trarão consequências macroeconômicas. Em que pese esses argumentos, a princípio, serem verdadeiros, a seguir eles serão relativizados.
O princípio da legitimidade democrática dos magistrados merece reflexão, ainda mais em tempos de crise de representatividade, ora, o que vemos atualmente é o Legislativo submetido ao lobby de interesses privados e do mercado, descompromissado com a ética e o interesse público, mais interessado em legislar em causa própria. O Executivo, quase sempre, se utiliza do subterfúgio da falta de recursos financeiros, de que o orçamento é curto, para a implementação de políticas públicas.
Nesse diapasão, mesmos que não tenha legitimidade democrática, os magistrados devem atender aos princípios fundamentais estabelecidos nas normas constitucionais, independentemente da concretização pelo legislador ordinário. Nesta direção, EROS GRAU, aduz ter o Judiciário o poder-dever de conferir aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais no caso concreto, de modo assegurar-lhe sua eficácia. (PINHEIRO, 2008, p. 145)
Por outro lado, o Poder Judiciário não pode ser o protagonista, que rouba a cena dos atores principais (Poderes Legislativo e Executivo). Assim, é preciso encontrar o ponto de equilíbrio, de modo que as normas constitucionais, que preveem os direitos fundamentais não sejam esvaziadas, e que também não haja a ruptura do princípio da Separação dos Poderes.
Deste modo, em situações excepcionais, é possível ao magistrado avaliar se os meios empregados pelo governante são contrários às finalidades previstas no texto constitucional. A título de exemplo, estão os gastos com as propagandas institucionais dos governos, seja Federal, Estadual ou Municipal, e os recursos destinados às propagandas educativas (doenças, trânsito etc), estes tem por escopo a proteção dos direitos fundamentais, tais como vida, saúde, educação, enquanto que os primeiros não atendem a nenhum direito fundamental.
O Judiciário somente deverá intervir na formulação de políticas públicas, quando restar evidente que os outros Poderes se abstiveram de cumprir as normas constitucionais de direitos fundamentais.
Portanto, não existe vedação para que o magistrado determine a realização de despesas públicas para satisfazer direitos fundamentais sociais, pois as normas colidentes, obrigatoriamente de previsão orçamentária e direito fundamental social, se encontram em plano hierárquico equivalente, de modo que cabe ao juiz fazer a devida ponderação, sendo que, na maioria dos casos, a balança penderá em favor da realização do direito fundamental social, tendo em vista sua evidente superioridade axiológica.
2.3.3 Reserva do possível
A origem da Reserva do Possível é na jurisprudência da Corte Constitucional Alemã, mais precisamente, no célebre caso Numerus Clausus, julgado em 1972. O cerne principal desse julgamento não foi a escassez de recursos financeiros, mas, o fato de não ser razoável impor ao Estado a obrigação de garantir a todos os interessados uma vaga no curso de medicina nas universidades de Hamburgo e da Baviera.
O Estado Alemão, apesar das liberdades de escolha de profissão que pressupunha o livre acesso às instituições de ensino, não tinha condições de matricular todas as pessoas interessadas no curso de medicina nas referidas universidades, razão pela qual foi garantido pelo menos o tratamento igualitário de acesso ao ensino superior.
No Brasil, contudo, a Reserva do Possível foi adotada numa outra compreensão, ou seja, passou a ser sinônimo de escassez de recursos públicos. Essa transposição dessa teoria da Alemanha para o Brasil não foi a mais adequada, haja vista as gritantes diferenças socioeconômica e cultural desses dois países.
Não é à toa que os estudiosos do Direito Comparado insistem em lembrar que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de um contexto cultural e socioeconômico diferente, o que exige um máximo de sensibilidade. O mundo “em desenvolvimento” ou periférico, de que o Brasil (ainda) faz parte, significa uma realidade específica e sem precedentes, à qual não se podem descuidadamente aplicar as teorias científicas, nem as posições políticas transladadas dos países ricos. Assim, a discussão europeia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, o Estado Providência nunca foi implantado. (KRELL, 2002, p. 54)
Portanto, o que se percebe é que a teoria da Reserva do Possível, criada na Alemanha, foi distorcida no Brasil, e o que é pior, o que era exceção naquele país desenvolvido, virou regra neste país em desenvolvimento, e passou a ser usado como pretexto para de negar a efetivação dos direitos fundamentais sociais.
2.3.3.1 Conceito
A Reserva do possível no Brasil tem como conceito a insuficiência de recursos financeiros, ou seja, a limitação econômico-financeira do Estado para atender aos direitos prestacionais. Ela é uma invocação de um dado econômico da realidade, segundo alguns, um limite fático, e se configura num dos principais obstáculos à efetivação dos direitos fundamentais sociais.
A Reserva é matéria exclusivamente de defesa do Estado, uma vez que cabe a Administração Pública a efetivação dos comandos prestacionais contidos na norma, em especial os de caráter fundamental, portanto, a ela caberá o ônus de desincumbir dessa obrigação, não pode a Reserva ser alegada pelo particular. O ônus de prová-la é exclusivo do Estado, sem qualquer possibilidade de inversão do ônus. Somente comporta alegação excepcional, o Estado não pode se utilizar da defesa da Reserva para toda e qualquer demanda social que lhe é formulada. (LAZARI, 2012, p. 44)
A Reserva do possível tem dimensão tríplice:
(...) a assim designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice que abrange: a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra também da razoabilidade. (SARLET, 2012, p. 288)
As três dimensões tem de ser equacionadas conjuntamente para que não se tornem barreiras intransponíveis à efetivação dos direitos sociais prestacionais.
Não existe consenso na doutrina quanto à natureza jurídica da Reserva do Possível, se regra, valor, metanorma, tendo a prevalecer como condição da realidade.
A reserva do possível corresponde a um dado de realidade, um elemento do mundo dos fatos que influencia na aplicação do Direito. O Direito corresponde a um fenômeno prescritivo, ou seja, as normas jurídicas têm por fundamento uma determinada realidade fática, a partir da qual prescrevem condutas a serem obedecidas. Dentro desta concepção, é certo que o Direito não pode prescrever o impossível – e é neste sentido, em um primeiro momento, que se pode abordar a temática da reserva do possível, embora trazendo a discussão para o campo dos direitos fundamentais sociais a prestações. (OLSEN, 2006, p. 212)
Para o Supremo Tribunal Federal a Reserva do Possível não pode ser condicionante de direito fundamental social: nesse sentido está a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 45/DF[6].
2.3.3.2 O uso excessivo do argumento da reserva do possível
Embora o argumento da Reserva do Possível deva ser reconhecido como obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais sociais. O que se critica, como dito alhures, é o uso excessivo deste argumento, utilizado como subterfúgio para a não prestação dos direitos de cunho social.
Por mais que, na maioria das vezes, os direitos fundamentais sociais já terem sido concretizados pelo legislador ordinário, (DUARTE, 2011, p. 160)
(...) quase todos os direitos fundamentais sociais previstos na Constituição já foram objeto de intervenção do legislador ordinário, ainda que, em alguns casos, de forma insuficiente. Para ficar em três exemplos expressivos, basta conferir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), a Lei de Assistência Social (Lei n° 8742/93) e a Lei Orgânica da Saúde (Lei n° 8080/90). A questão da não efetivação dos direitos sociais, pois, está muito mais afeta ao não cumprimento da legislação que já existe. Trata mais de um problema de formulação, implementação e manutenção das respectivas políticas públicas.
No que discorda (PINHEIRO, 2008, p. 126)
(...) Conforme já deduzidos, os direitos fundamentais sociais estão dispersos pelo texto constitucional (art. 6°, 7°, 203, 205, dentre outros), sendo que alguns deles já foram concretizados pelo legislador infraconstitucional. No entanto, a maioria dos direitos fundamentais a prestações não recebeu a devida conformação pelo legislador, o que não exime o Poder Executivo da sua realização, inclusive com a execução de programas sociais que busquem a efetivação de dignidade da pessoa humana.
Falta vontade política para que esses direitos sociais conformados pelo legislador infraconstitucional sejam efetivamente prestados com qualidade à população, ainda mais se considerado o cenário socioeconômico do Brasil, com gritantes desigualdades sociais, não se pode simplesmente importar uma teoria da Alemanha, país de primeiro mundo, e aplicá-la num contexto social, cultural e econômico muito diferente, no qual está inserido o Brasil.
Logo, a Reserva do Possível não pode ser considerada uma restrição absoluta, uma barreira intransponível, aos direitos fundamentais sociais, visto que está sujeita a um exame de proporcionalidade. O magistrado ao julgar o caso concreto deve analisar, sob o prisma da proporcionalidade, a prestação requerida pelo indivíduo e a alegação estatal da falta de recursos para cumpri-la.
Resumindo, há que ser feita uma ponderação dos direitos (igualmente)_ fundamentais envolvidos, utilizando como critério o princípio maior da dignidade da pessoa humana. Assim, havendo duvida, por exemplo, em destinar os sempre escassos recursos públicos em prol da efetivação de um direito social deve a escolha ou opção pender em favor do direito cuja não realização, no caso específico, prevê-se como a mais violadora da dignidade da pessoa humana. (DUARTE, 2011, 189)
Destarte, a dignidade da pessoa humana está a balizar as escolhas trágicas do Legislador, o qual traça as diretrizes para realização dos direitos prestacionais sociais, ao Executivo caberá implementá-los, por intermédio de políticas públicas, e ao Judiciário, o guardião da Constituição Federal caberá fazê-los cumpridos.
No Brasil, vive-se um momento de contradição, por um lado é comum por parte do Estado a alegação da Reserva do Possível, já que determinados setores públicos como saúde, educação, segurança, moradia, dentre outros, funcionam precariamente, em face da não alocação de recursos mínimos necessários.
Por outro lado, gastam-se bilhões, como por exemplo, na propaganda institucional, e nos grandes eventos como a Copa do Mundo de 2014, que de acordo com o portal transparência[7], terá gasto previsto de quase R$ 27 bilhões de reais, e as Olimpíadas que terá um dispêndio, até a presente data, 2013, em torno R$ 12 bilhões de reais. Na verdade chega a ser paradoxal, o Estado alegar que não tem recursos para efetivar os direitos fundamentais sociais, mas, o tem para outros fins que não atendem a preceitos constitucionais.