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A vulnerabilidade social como elemento de valorização da culpabilidade.

Proposta de desconsideração do Estado como agente passivo secundário do delito praticado por vulnerável social

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Agenda 12/12/2014 às 09:44

4. ESTADO COMO AGENTE PASSIVO – DESCONSIDERAÇÃO

Além dos elementos que integram ontologicamente o delito em si, tem-se os sujeitos ativo e passivo da conduta ilícita. Nesta senda, em pólos subjetivos opostos, existem os sujeitos ativo e passivo do delito.  O sujeito ativo do delito seria quem praticou a ação, o fato descrito como crime e causador de um mal injusto a outrem; ao passo que o sujeito passivo seria o titular do bem jurídico lesionado pela conduta delituosa.

Lecionando sobre o tema, Bintencourt explica que:

Sob o aspecto formal, o Estado é sempre o sujeito passivo do crime, que poderíamos chamar de sujeito passivo mediato. Sob o aspecto material, sujeito passivo direto é o titular do bem ou interesse lesado. Nada impede, no entanto, que o próprio Estado seja o sujeito passivo imadiato, direto, como ocorre quando o Estado é o titular do interesse jurídico lesado, como, por exemplo, segundo a doutrina majoritária, nos crimes contra a Administração Pública.[11]

Como bem explana o insigne professor, numa visão clássica, o Estado sempre estará numa posição de sujeito passivo na relação delituosa. Assim se coloca por ter contra si uma conduta que, em tese, atingiria seus objetivos fundamentais e seus esforços no sentido de evitá-la, notadamente com a publicação de diplomas legais inibidores da ação criminosa.

Mesmo sendo agente passivo formal, a lesão a ele causada é valorada pelo Estado no momento de estabelecer o quantum de pena a ser aplicado. Assim, leva-se em consideração a lesão causada ao Estado como sociedade (mesmo sendo figuras diferentes), como ente representante de todo o corpo social. Desta forma, a premissa incutida na pena, ainda em seu conceito abstrato, anterior à lesão concreta, é de que nela também há a análise do desvalor causado à sociedade (na forma do agente passivo mediato “Estado”).

A esta premissa não se pode refutar, pois toda lesividade da conduta tem de ser valorada quando atingido o bem jurídico, mesmo que atingido indiretamente. Em um sistema penal inserido em um Estado Democrático de Direito, a lesividade tem de ser analisada por todos os seus pontos e dosada ainda no momento da seletividade das condutas a serem proibidas, como bem fala Ferrajoli:

A necessária lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, condiciona toda justificação utilitarista do direito penal como instrumento de tutela e constitui seu principal limite axiológico externo. Palavras como “lesão”, “dano” e “bem jurídico” são claramente valoradas. Dizer que um determinado objeto ou interesse é um “bem jurídico” e que sua lesão é um “dano” é o mesmo que formular um juízo de valor sobre ele. (grifos do autor do artigo)[12]

Como se depreende, dizer que o Estado é o agente secundário do delito é o mesmo que valorar a lesão a ele causada, seja no bem jurídico segurança pública, ordem social ou quaisquer outros que, oportunamente, sejam classificados.

Noutro giro, o próprio ente político se beneficiará da reprimenda a ser aplicada. Mesmo não adentrando ao estudo da vitimologia, há que se frisar que a própria vítima estatal, que será a persecutora da reparação do dano, beneficiar-se-á com a pena aplicada ao possível agente infrator. Na busca de um de seus objetivos, o aparelho estatal usará sua força armada, organizada e disciplinada (LASSALE, 1862) para capturar e retirar do convívio aquele que não respeitou os mandamentos penais impostos pela própria “vítima”.

            Neste ponto, cabe um redirecionamento de raciocínio para se perquerir a legimidade valorativa estatal como vítima da ação delituosa. Isto porque, atendendo aos princípios da culpabilidade acima ventiladas, o juiz, no momento de dosimetria, deverá analisar a condição antropológica do indivíduo quando do cometimento do injusto. Assim, tanto maior será sua culpa quanto lhe for exigível uma conduta em sentido contrário. E esta exigibilidade perpassará, inevitavelmente, pelas condições sociais a ele propiciadas durante a sua formação como ser humano. A título de exemplo, deparando-se o juiz com dois cidadãos nascidos na mesma data, do mesmo sexo e de porte físico semelhante que tenham incidido no caput do art. 155 do Código Penal (furto simples), porém sendo um portador de educação formal e oriundo de classe média e outro, de nível fundamental, oriundo de comunidade onde há completa falta de serviço público, não poderá aplicar o magistrado a mesma pena aos dois agentes, caso contrário estaria violando o supracitado princípio constitucional da individualização da pena. Em que pese o sistema penal ser predominantemente do fato (e assim deve ser), condições subjetivas do autor têm de ser levadas em consideração para uma melhor aplicação da justiça no caso concreto. Não em vão, o próprio Código Penal já prevê a análise de tais condições no seu atr. 59, onde o juiz é obrigado a fazer o primeiro juízo de culpabilidade para estabelecer a pena-base do acusado.

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            É neste ponto que o presente trabalho propõe a mudança de paradigma na análise da culpabilidade do agente. O que se ventila é o fato de não poder o Estado alegar-se vítima indireta contra determinados sujeitos, notadamente os que se encontram em vulnerabilidade social. Isto porque, ao se encontrarem assim, parte-se da presunção de que levam esta qualidade devido a omissão do ente político que tinha por principal encargo garantir o mínimo existencial por ora lhes faltante. Em verdade, há verdadeiro venire contra factum proprim estatal em levar em consideração a lesão social causada pelo autor do fato delinqüente; motivo pelo qual deve ser desconsiderada tal lesão, seja pelo venire ou seja por uma suposta causa supralegal de atenuação da culpabilidade, que seria o consentimento indireto (por omissão) da vítima mediata do delito. Assim, estar-se-ia respeitando, em sua integralidade, o princípio da culpabilidade, norteador do Direito Penal no Estado Democrático.


5. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE E POSICIONAMENTO DOGMÁTICO DA PRESENTE PROPOSTA

            A co-culpabilidade é uma teoria criada no sentido de compartilhar a responsabilidade do delito entre o autor da infração e a sociedade que o marginaliza. Seu surgimento está diretamente ligado à Revolução Francesa e a defesa de seus ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, sendo a primeira concepção (também chamada de “primeira geração de direito”) – a liberdade – consubstanciada numa prestação negativa do Estado, ou seja, a obrigação deste não interferir na esfera do indivíduo para privá-lo de direitos de forma abusiva; a segunda – igualdade (segunda geração) – uma prestação positiva na garantia dos direitos sociais e econômicos; e a terceira – fraternidade (terceira geração) – relacionada à convivência harmônica e solidária entre os componentes do corpo social, sendo dever de cada um zelar pela paz, meio ambiente e demais direitos de ordem transcendental à esfera individual.

            Pautado nas ideias contratualistas do estado liberal, nasce o embrião da co-responsabilidade, haja vista ter o cidadão o dever de respeitar as leis do Estado soberano, sucessor do monarca, mas também o direito de exigir a contrapartida deste mesmo ente, no sentido de salvaguardar e garantir seus direitos, inclusive os sociais. Assim, não cumprindo sua contraparte social, estaria a sociedade em co-responsabilidade com os que, sediciosamente, levantam-se contra a ordem estabelecida.

            Como se pode notar, os defensores de tal corrente defendem sua aplicação para o caso dos desprovidos de meios de existência digna por conseqüência da inércia estatal em lhes garantir as condições mínimas de vida, para os hipossuficientes; e não para todo e qualquer delinqüente que se alegue revoltoso com o papel do Estado. Como proposto também no presente trabalho, de acordo com tal doutrina, há de se estabelecer a diferenciação de tratamento de acordo com as condições de vida de cada infrator, sendo-lhe dada a reprimenda na medida de sua vulnerabilidade, sendo esta maior à medida que a sociedade vai deixando à margem de serviços fundamentais determinados estratos sociais.

            Bebendo em tal fonte, a presente dissertação defende, como propósito, a mesma finalidade, qual seja: a redução da culpabilidade daqueles que esse encontram desassistidos dos direitos constitucionais formalmente garantidos, mas materialmente negados pelo Estado. A grande diferença encontra-se na argumentação dogmática exposta por estas linhas, a qual visa inserir uma quarta variante na composição do elemento “culpabilidade” do delito.

            Como exposto, a culpabilidade seria o juízo de reprovação do agente frente à sociedade em que vive. No entanto, esquematizando e subdividindo este juízo, a sistemática penal diz ser ele formado por imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude do fato. Assim, não havendo excludente ao ponto de esvaziar o conteúdo de quaisquer destes itens, restará comprovada a culpabilidade do indivíduo, levando-se em conta que já tenha praticado o fato típico, bem como que sua conduta não esteja amparada por qualquer permissivo legal (conduta antijurídica).

            Para além destes três elementos integradores da culpa, o trabalho propõe que seja perquerida, no momento do juízo de reprovação, a qualidade de agente passivo do “Estado-vítima”. O que se busca, em última análise, é trazer para a dogmática um juízo de política criminal (corresponabilidade estatal) que geralmente é aplicado em momento anterior.

            Mesmo não sendo dada a devida importância pela doutrina, ou até mesmo negligenciada, a construção do conceito de agente passivo indireto do delito faz com que o juízo de reprovabilidade seja potencializado no momento da pena em abstrato, quando o legislador penal estabelece o preceito secundário do tipo no diploma legal. Assim, para parte da população, que não conta com a simpatia deste mesmo agente que busca salvaguardar-se no momento da seleção das condutas, há claro e ululante venire contra factum proprium estatal, haja vista a gradação embutida na pena-base reprimir uma conduta que, de maneira indireta, foi facilitada pelo Estado omisso. Assim, mesmo sendo tomada esta expressão (venire) do Direito Civil, outra não poderia melhor definir a conduta contraditória denunciada por estas linhas.

            Neste diapasão, não obstante inexistir resistência, no presente trabalho, quanto à argumentação acertada da teoria da co-culpabilidade, pelas mesmas premissas, mas por outro prisma, defende-se a redução da culpabilidade pela desconstituição do elemento passivo caracterizador da posição de “vítima” do Estado. A sedimentar tal descaracterização, além do venire acima esposado, pode-se falar até numa fática causa supralegal de mitigação da culpa: o consentimento tácito (por omissão) do ente político.

            Seguindo esta linha, a culpabilidade, na visão do artigo, teria a formatação clássica, com os elementos essenciais de sua existência (potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade), porém acrescida do juízo de gradação da gravidade de culpa “estado caracterizado ou não como agente passivo”. Apesar de sutil, a diferença reside na topografia da presente argumentação e a localização do juízo de co-responsabilidade, quando inserido na dogmática. Isto porque, quando se fala em co-responsabilidade, em essência, busca-se a atenuação da culpabilidade pela mitigação da exigibilidade de conduta idônea, reta. Olha-se a figura do autor e, desta, parte-se para o estado/sociedade negligente. Noutro giro, ao tentar despir o Estado de sua roupagem vitimológica, analisa-se uma premissa “supraexigibilidade”, um substrato fora e de natureza diversa dos três componentes da culpabilidade, parte-se da desconstituição da idéia de “sociedade-vítima” para, depois, deduzir-se essa descaracterização. Mesmo sendo ambas as argumentações teleologicamente dirigidas para o mesmo fim, a mitigação da pena pela redução de culpa da pessoa em vulnerabilidade social, as fundamentações são diversas e têm de ser vistas cada uma de sua posição dogmática.


6. CONCLUSÃO 

            Mesmo formalmente garantidos no texto constitucional, os mais básicos direitos ainda são negados a grande parte da população, que não consegue sobreviver de maneira digna, morando em ambientes insalubres e inseguros onde inexiste os mais elementares serviços públicos a lhes assistir. Tal quadro acaba por empurrar estas pessoas para a condição de vulnerabilidade social, haja vista lhes faltar a formação educacional necessária para se qualificarem para o mercado de trabalho e, assim, conseguirem bem viver na sociedade de consumo.

            Não raro, pela formação ética deturpada pelos valores mal sedimentados pela privação absoluta de políticas governamentais no sentido de orientar suas vidas num sentido ético, pessoas hipossuficientes acabam por realizar condutas típicas e, assim, atingem bens jurídicos alheios na procura de uma suposta melhora de suas condições de vida, ou praticam o mal pelo mal, de acordo com a lei do mais forte, para se imporem da única forma com que podem ser respeitadas em seus convívios: através da força.

            Querer o Estado dizer-se uma “vítima indireta” de tais ações é o mesmo que omitir sua responsabilidade e, sorrateiramente, desviar o foco de sua incompetência. Não pode o ente estatal valorar a lesão indireta causada à sociedade pelo vulnerável social, pois a mesma sociedade que se diz violada fomentou, com sua postura passiva e irresponsável, a criação desta “anomalia social” que, em verdade, é apenas um sintoma social de uma patologia que existe dentro do próprio organismo coletivo detentor da violência legalizada, da qual não pode lançar mão para proteger o próprio erro.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1]ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Culpabilidade por Vulnerabilidade. Argentina. 2003.

[2]GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. A Culpabilidade Compartilhada como Princípio Mitigador da Ausência de Efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais. NEJ – Vol. 14 – n. 3 – p. 150-160 / 3º quadrimestre de 2009.

[3]GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Ob. Cit.

[4]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, volume I: parte geral / Eugênio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007 – p. 520.

[5]BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17ª ed. São Paulo. Saraiva. 2012. p. 269.

[6]TAVARES, Juarez. Teorias do delito. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1980. p. 1.

[7]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. Cit. p. 521.

[8]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

[9]Dados capturados no sítio do Palácio do Planalto, 2011. Disponível em: <http://blog.planalto.gov.br/brasil-sem-miseria-foco-sera-16267-milhoes-de-brasileiros-que-vivem-na-extrema-pobreza/>. Acesso em: 12 de janeiro. 2014.

[10]JORGE, Wanda. Revista Ciência e Cultura, Jun. 2005, vol.57, n. 2, p. 9-12.

[11]BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17ª ed. São Paulo. Saraiva. 2012. p. 293.

[12]FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3ª edição. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2010. p. 428.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ramon Fernandes. A vulnerabilidade social como elemento de valorização da culpabilidade.: Proposta de desconsideração do Estado como agente passivo secundário do delito praticado por vulnerável social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4181, 12 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31036. Acesso em: 22 nov. 2024.

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