INTRODU?ÇÃO
Faz parte da vida em sociedade e, por conseguinte, da natureza humana, a necessidade de estabelecer parâmetros de conduta que subordinam comportamentos em todos os níveis sociais. Para o bom convívio social e a mínima segurança dos cidadãos o homem cria, portanto, o direito.
A história mostra que essa subordinação às regras dos direito foi provocada por diversas forças ao longo da trajetória da civilização. O poder eclesiástico característico da Idade Média baseava a justificação à obediência às regras daquele tempo. O temor a Deus e a autoridade tradicional - na nomenclatura de Max Weber - dos monarcas da época, encerravam as forças que garantiam obediência ao direito.
O Absolutismo, filho da sociedade medieval, enraizou seu conjunto de regras de direito muito em cima de seu aparato coercitivo. Ainda sob a justificativa de que o poder dos governantes era divinamente outorgado e protegido - em outras palavras, o poder do monarca era sagrado - o direito era muitas vezes arbitrariamente editado e violentamente aplicado, o que demonstra a capacidade de a autoridade estatal atribuir a si mesma o poder litiferante e executivo sem controle da população, com conteúdo e forma que lhe fosse conveniente.
Nítida, tanto no Absolutismo quanto na Idade Média, a facilidade com que os governos alijavam a imensa maioria da população de alguma participação nas decisões da coletividade e como o direito parecia apenas instrumento de perpetuação do poder dos clãs reais, não tendo vínculo claro com valores essenciais ao Homem.
Parece inteligente concluir, ademais, que a falta de participação popular era acompanhada de muita miséria: o alijamento político e jurídico também era um alijamento moral e do usufruto das riquezas da nação. Tratava-se de utilizar a pessoa e submetê-la à autoridade estatal e seu aparato coercitivo, o homem era um súdito e não um cidadão.
Foi através de um dos levantes mais significativos da história conhecida que os franceses romperam com grande parte dessa ideia. A Revolução Francesa institui bases novas e promulgou pensamentos modernos acerca do homem e, logicamente, de suas necessidades. Como o pensamento de Hegel enunciou, foi com a Revolução de 1789 que o ser humano é desamarrado de vínculos que não sejam ele mesmo e que a ideia de que existe apenas uma raça humana, com todos os sujeitos titulares de direitos básicos, ganha proporções reais e poderosas.
Para sintetizar os novos valores liberais de então a Assembléia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou em 26 de agosto de 1789 a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Inspirada nos ideais iluministas e na Revolução Americana de 1776, a DUDHC proclama os direitos fundamentais do Homem, abarcando toda a humanidade.
A partir da queda da bastilha o mundo humano ganha dimensões jamais imaginadas, e grande parte das premissas que norteavam o alijamento de grupos sociais dos ganhos e discussões inerentes a toda sociedade foram quebradas. O direito, segundo as novas diretrizes, deveria seguir-se destinado a promulgar valores importantes, tais quais a liberdade e a igualdade. Ganho importante é, sem dúvida, a responsabilização do agente público que não mais está autorizado a utilizar-se da máquina estatal para propósitos particulares, além da possibilidade de o cidadão exigir satisfação daquele que governa e gerencia os fundos coletivos, denotando a submissão do próprio Estado ao direito.
O Estado circunscrito a uma ordem jurídica enunciado na Declaração de 1789 não possui a autoridade transcendental dos senhores feudais nem pode se valer apenas da força para aplicar o direito. Assim sendo, sob quais valores acentaria a obediência às normas? Para entender isso é interessante recorrer ao pensamento de Immanuel Kant.
Segundo o pensador prussiano a pessoa existe como um fim em si mesma, porquanto seja o único ser racional. Os irracionais seriam, portanto, entes cujo valor é relativo, sempre associado ao valor do ser humano. Dessa maneira, constrói-se um raciocínio que precipita a necessidade de acolhimento dos diversos grupo: a preservação do corpo social e do outro, passa a ser sinônimo da dignidade subjetiva.
Desse modo, a produção do direito passaria a ser reivindicada pela população que procuraria preservar valores para além da sobrevivência. Entenda-se que em outros tempos seria impossível a “auto-obrigação” do Estado. Isso só foi possível por conta de uma mudança do pensamento do Homem sobre o que lhe é essencial para viver dignamente, o que outorga força à ideia de preservação dos valores individuais e sociais através do direito.
Como bem disse Flávia Piovesan, o direito “não são um conjunto dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução” , cuja evolução acompanha as mudanças da sociedade e que se aperfeiçoa conforme as necessidades humanas. Embora tenha-se consagrados os direitos humanos em 1789, os séculos XIX e XX foram palco de inúmeras violações a dignidade da pessoa humana. As Grandes Guerras, a colonização africana, são alguns exemplos disso.
Sob os auspícios da proteção ao indivíduo, a Revolução Francesa instituiu a filosofia do “Estado mínimo” onde o direito civil era supervalorizado em detrimento do direito público. Por certo os traumas dos anos de Absolutismo faziam a sociedade municiar de qualquer forma o indivíduo contra abusos do Estado.
O modelo liberal atendia aos anseios do cidadão por liberdade mas não conseguia estancar as chagas da desigualdade material. Assumindo uma postura um tanto quanto indiferente aos marginalizados, o Estado burguês propalava a igualdade formal como sendo a verdadeira igualdade, como se fosse dado a todos oportunidades iguais. Ora, obviamente isso tinha um limite e a um certo tempo não foi mais possível não enxergar a imensa massa de excluídos do sistema econômico e dos ganhos das sociedades capitalistas de então. Inaugura-se com isso o Estado Social, ou Estado Providência.
Esse novo Estado remaneja as atenções do poder público para o social, deslocando o pêndulo legislador do direito civil para o direito público. Acontece que o inchaço da máquina pública e a incapacidade de o Estado promover a completa satisfação das necessidades do sujeito contemporâneo determinam a falência desse sistema político-jurídico.
O resultado disso estamos acompanhado agora. A construção do novo modelo de Estado - o Estado Democrático de Direito - prima pelo equilíbrio das atenções das políticas públicas. Ao mesmo tempo em que políticas afirmativas ressaltam a necessidade de assegurar a toda população o acesso a bens que possibilitem o crescimento interno de cada um - e não só a subsistência -, o indivíduo contemporâneo exige respeito a sua individualidade e cobra do poder público satisfações daquilo que é feito com os instrumentos que a população lhe concede para governar.
Assim leciona o professor Celso Antonio Bandeira de Mello:
“Segundo entendemos, a ideia de responsabilidade do Estado é um consequência lógica inevitável da noção de Estado de Direito. A trabalhar-se com categorias puramente racionais, dedutivas, a responsabilidade estatal é um simples corolário da submissão do Poder Público ao direito.
“Deveras, a partir do instante em que se reconheceu que todas as pessoas, sejam elas de direito privado, sejam de direito público, encontram-se, por igual, assujeitadas à ordenação jurídica, ter-se-ia que aceitar, a bem da coerência lógica, o dever de umas e outras - sem distinção - responderem pelos comportamentos violadores do direito alheio em que incorressem.
“Ademais, como o Estado moderno acolhe, outrossim, o princípio da igualdade de todos perante a lei, forçosamente haver-se-á de aceitar que é injurídico o comportamento estatal que agrave desigualmente a alguém, ao exercer atividades no interesse de todos, sem ressarcir ao lesado”.
Para tanto, o direito contemporâneo, através de um de seus principais institutos, cria maneiras de assegurar ao cidadão o controle daqueles que exercem o poder. Como se pode deduzir, não é suficiente que a administração pública observe a letra da lei, é preciso coadunar as atitudes do administrador com os valores e com elementos que por vezes, ao longo da história, foram frágeis demais para vincular toda uma sociedade, incluindo seus governantes. Fala-se aqui do instituto da Improbidade Administrativa, que estudaremos a seguir.
CAPÍTULO ÚNIC?O
O direito positivo brasileiro há muito reconhece a necessidade de sancionar atos que importem em prejuízo ao patrimônio público. O Decreto-lei n° 3.240, de 8 de maio de 1941, prevê o sequestro de bens de pessoas indicadas por crimes que prejudiquem as contas públicas. A Constituição de 1946 determina, em seu artigo 141, que “a lei disporá sobre o sequestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica”.
Para dar cumprimento ao artigo constitucional foi editada, a 1° de junho de 1957, a lei n° 3.164 que tinha redação muito semelhante ao dispositivo legal anterior mas, diferentemente do Decreto-lei de 1941, responsabilizava a pessoa apenas em âmbito cível, distinguindo o processo cicil por enriquecimento ilícito do processo penal por conduta criminosa.
Outra inovação desta lei é a obrigatoriedade de registro público dos valores e bens pertencentes ao patrimônio privado daqueles que exercessem cargos ou funções públicas da União e entidades autárquicas, eletivas ou não, descrita em seu artigo 3°. Tal dispositivo coaduna-se com a ideia moderna de que o poder não pertence àquele que o exerce, mas sim ao povo que o elege e/ou autoriza suas funções públicas, e que o autorizatário está submetido aos ditames do direito tanto quanto o particular e, por lidar com questões de interesse público, possui deveres para com a sociedade.
Posteriormente, acerca do instituto da improbidade administrativa, tem-se: a Lei n° 3.502, de 21 de janeiro de 1958, que inaugura inovações importantes como a capacidade de se processar por conduta ímproba tanto o servidor público e o dirigente como o empregado de autarquia; o artigo 150, § 11, que após a Emenda Constitucional n°1/69 passou a ser 153, § 11; o artigo 8° do Ato Institucional n° 5, regulamentado pelo Ato Complementar n° 42/69 e pelo Decreto-lei n° 359, de 17 de dezembro de 1968.
Com a Constituição de 1988 incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos na forma positivada, princípios importantes, característicos do Estado Democrático de Direito. A legalidade do ato administrativo, além de seu contorno estrito representativo do texto da lei, adquire importante amplitude abrangendo os princípios e valores consagrados pela Constituição. É nesse contexto que um novo instituto, o da moralidade administrativa, instala-se perenemente no nosso sistema jurídico.
Como disse a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos, de lealdade, de boa-fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública”.
O princípio da moralidade administrativa, prenunciado no artigo 37 da Constituição Federal, é ilustrativo do momento social-político-jurídico pelo qual o Estado brasileiro e a sociedade internacional atravessam. Com ele se consagra a força dos princípios e a exigência de promulgação da proteção a dignidade humana que, por vezes, não podem ser vislumbrada pelos legisladores e, por conseguinte, positivada.
Parece acente na doutrina que, no âmbito jurídico, a Constituição de 1988 recupera o conteúdo axiológico do direito, perdido durante algum tempo muito por conta dos esforços da doutrina do positivismo. Ao extirpar os valores e princípios do direito, o positivismo intentou transformar o direito em mera técnica, destituindo-o de sua alma humana.
As consequências disso foram devastadoras para a humanidade. Exemplo disso é a Alemanha nazista que agira conforme suas leis, mesmo ultrapassando os princípios da dignidade da pessoas humana: transformar o direito em letra fria colabora para ignorar o próprio Homem como ser cujos valores devem ser tão respeitados quanto sua vida.
As lições do III Reich são visíveis na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, que exige obediência à lei e ao direito (art. 20, § 3°). A interpretação desse dispositivo dá clara noção de que não há apenas a necessidade de obediência à lei formal, mas também com à moral, à ética, ao interesse público, enfim, a todos os princípios e valores que decorrem implícita ou explícitamente da Constituição.
Nas palavras de Di Pietro:
“A inclusão do princípio da moralidade administrativa na Constituição foi um reflexo da preocupação com ética na Administração Pública e com o combate à corrupção e à impunidade no setor público”.
Este combate à corrupção na Administração pública tem funcionado como forma de fortalecimento da chamada good governance ou administração proba, processo que busca a promoção de igualdade e justiça social através da condução dos negócios e recursos públicos em obediência ao Estado de Direito.
Uma administração proba está intimamente relacionada com a implentação dos direitos sociais. Hoje, entende-se que já foi ultrapassada a fase legislativa da proteção internacional dos direitos humanos e agora, a presente preocupação é com a implementação desses. Corrobora com esse entendimento Norberto Bobbio quando diz que:
"Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados."
E torna-se imprescindível para esta implementação dos direitos humanos uma atuação ética da Administração Pública, que dirija corretamente seus recursos, pois só existe good governance em um ambiente institucional sem corrupção. E a Lei de Improbidade Admnistrativa, conforme será explicitada mais adiante, representa um verdadeiro esforço da democracia moderna para prevenir e reprimir práticas contrárias a uma administração proba.
Segundo o livro "Improbidade Administrativa - 10 Anos da Lei n. 8.429/92", a improbidade pode ser definida como:
"técnica da chamada corrupção administrativa, pela qual é promovido o desvirtuamento dos princípios basilares de uma admnistração transparente, eficiente e equânime, em prol quer de vantagens patrimoniais indevidas, quer para beneficiar, de modo ilegítimo, servidores ou mesmo terceiros."
Assim, como também já salientado, o termo improbidade administrativa não pode ser limitado apenas aos casos nos quais se constata lesão ao patrimônio do Estado, concepção estrita. Também deve-se englobar neste termo os princípios da boa-fé, honestidade e eficiência, dentre outros. Trata-se de um esforço do direito para trazer para dentro da política a ética e a moral.
Isto parece ir de encontro com o pensamento de uns dos patriarcas da ciência política, Maquiavel, o qual tratou a política e os fenômenos sociais nos seus próprios termos, sem recorrer necessariamente à ética. Para ele, a política tratava-se apenas de conquistar e manter o poder ou a autoridade. A religião e a moral pareciam não importar, com exceção dos casos em que colaborariam para a conquista e manutenção do poder.
Interessante notar em "O Príncipe" o capítulo XVIII, quando Maquiavel trata de que maneira os príncipes devem cumprir sua palavra:
"Todos concordam que é muito louvável um príncipe respeitar a sua palavra e viver com integridade, sem astúcias nem embustes. Contudo, a experiência do nosso tempo mostra-nos que se tornaram grandes príncipes que não ligaram muita importância à fé dada e que souberam cativar, pela manha, o espírito dos homens e, no fim, ultrapassar aqueles que se basearam na lealdade."
Percebe-se claramente que o pensamento maquiavélico se contrapõe justamente ao príncipio da moralidade, que exige da Administração Pública, como explicitado nas palavras de Di Pietro, comportamento não apenas lícito, mas também de acordo com a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios da justiça e equidade e a ideia comum de honestidade.
O instituto da improbidade administrativa, contemplado em vários textos legais no Brasil república, incorpora o princípio da moralidade administrativa como uma consequência inexorável do Estado de Direito. Os esforços para a inclusão da dignidade da pessoas humana entre os direitos constitucionais, atribuindo ao ordenamento jurídico capacidade material para proteger juridicamente bens intangíveis pela norma escrita, denotam a necessidade de consideração de valores éticos em todos os níveis sociais. Trata-se, portanto, de humanizar a produção do direito que fora, outrora, cega à necessidades básicas do ser humano.
SOBRE A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
O artigo 37, parágrafo 4°, da Constituição Federal prevê a promulgação de uma lei específica acerca da improbidade administrativa. A 2 de junho 1992 foi publicada a Lei n° 8.429, que incorporava o propósito constitucional de elevação dos princípios de direito à normas jurídicas válidas.
A Lei em tela, aprovada pelo congresso nacional, é de natureza federal e portanto, vincula todos os entes da federação na medida em que define, nos artigos 1° a 3°, os sujeitos ativos da relação processual; nos artigos 9° ao 11, os atos de improbidade em sentido estrito; no artigo 12 as penas cabíveis; no artigo 14 disciplina a representação; no artigo 19 prevê ilícito penal e no artigo 23 normatiza a prescrição para propositura de ação judicial.
Interessa-nos mais salientar o texto da Lei concernente aos atos de improbidade administrativa propriamente ditos. Diferentemente das Constituições anteriores e as leis que disciplinavam seus referidos artigos acerca do tema, a Lei 8.429/92 não encerra os atos de improbidade administrativa nas hipóteses de enriquecimento ilícito. Este, ditado pelo artigo 9°, é acompanhado pelos atos que causam prejuízo ao erário (artigo 10) e pelos atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (artigo 11), este último explificativo da incorporação de valores e princípios como norma jurídica positivada no direito brasileiro.
A Lei de improbidade administrativa também enumera as sanções para o ato ímprobo que, atendendo ao dispositivo constitucional, não impedem a instauração de processos nas outra duas instâncias, civil e penal. Ademais, acolhe o elemento subjetivo do dolo ou da culpa na aplicação da sanção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIC?AS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2008;
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992;
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2006;
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: DPL Editora, 2008;
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2008;
SAMPAIO, José Adércio; DINO, Nicolao; FREITAS, Nívio de; ANJOS, Roberto dos. Improbidade administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002;