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Vitimização do menor infrator

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Agenda 12/12/2014 às 15:12

Este trabalho expõe a situação de agressão do menor infrator e do menor em situação de rua, que constitui abuso de poder em face do princípio-base da Proteção Integral, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Notas Introdutórias

“O bedel Ranulfo, que o tinha ido buscar na polícia, o levou a presença do diretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior. Mas ia satisfeito, por que nada tinha dito, porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam. Lembram-se da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida.

(…)

Pela janela Pedro Bala via o sol. A  estrada passa adiante do grande portão do reformatório. Aqui dentro é como se fosse uma eterna escuridão. Lá fora é a liberdade e a vida. E a vingança, pensa Pedro Bala.

O diretor entra. O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala uns minutos:

-- Afinal… Faz bastante tempo que espero este pássaro, Ranulfo.

O bedel sorri aprovando as palavras do diretor.

-- É o chefe dos Capitães de Areia. Veja… O tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu Lombroso… Mas se lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com essa idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos… Não pode ser tratado como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais…[2]

Neste trecho da clássica obra de Jorge Amado, escritor baiano, vê-se um tratamento muito cruel para um preso. Sabendo que Pedro Bala é uma criança a crueldade torna-se muito maior. Não bastando a agressão de policiais a um menor, ainda há o reformatório, instituição pública de cunho educacional, que, neste caso, mais se parece com uma prisão. É, inclusive, comparada a uma, por ser escura e não haver liberdade.

Essa história é ambientada em Salvador, anos 1930. Não é aceitável, mas, se se pensar na época, é compreensível. Entretanto, situações como essas não acabaram por completo.

Menores infratores (adolescentes que cometem ato infracional – conduta tipificada no Código Penal como crime ou na Lei das Contravenções como contravenção penal) continuam sofrendo na mão de agentes do Estado. E, se for pensar do lado de fora do instituto de cumprimento de medida socioeducativa, há, ainda, a agressão e repressão de possíveis menores infratores; os menores abandonados ou em situação de rua. É, também, o caso da obra de Amado, pois os Capitães da Areia vivem no Trapiche, por si sós, ajudando uns aos outros, com um sistema hierárquico bem definido.

É o presente trabalho para expor a situação atual do abuso de poder (desvio e excesso) pela agressão do menor infrator em função do princípio-base do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Proteção Integral; e analisar a sua gênese, perante o menor em situação de rua.


2.A gênese sociológica da Delinquência Juvenil

Trindade classifica, em seu livro Delinquência Juvenil, criminalidade como conduta desviada, isto é, a criminalidade vai além da conduta normativa, vai além do saber das normas legais e judiciais sobre a punibilidade. A par desta definição, pode-se definir o contexto das relações humanas pelo modelo sociológico da gênese da delinqüência; o contexto seria definido pelos fatores exógenos, a saber, as circunstâncias ambientais e o elemento situacional da conduta. Adolphe Jacques Quètelet formulou (dentre várias) uma regra de probabilidade chamada “Lei Térmica da Criminalidade”; na qual a criminalidade é influenciada, principalmente, pelo meio geográfico, fatores como clima, temperatura e latitude[3] [o que se vê nesta teoria é um exagero, extensão, do naturalismo – como pode ser analisado muito bem na obra de Aluízio Azevedo, O Cortiço].

Entretanto, quando Enrico Ferri inaugura a sociologia criminal, seu “determinismo” não se prende a fatores estritamente sociais. Ao contrário do que comumente se diz, abarca uma vasta e heterogênea gama de fatores que influenciam o crime, até porque nem todos que passam por uma rua escura cometem delito (circunstância apropriada para tal ato). Deve-se pensar nas características particulares de uma sociedade e considerar também os fatores biológicos e psicológicos. O delito é fenômeno exclusivo da vida do homem-em-relação, isto é, da sociedade humana. E o que, também, explica a delinqüência é a desorganização, a desintegração social analisada por Durkheim, a ineficácia dos controles sociais. Em Merton, encontra-se a teoria da anomia social, a estrutura social estimula aspirações em comum ao mesmo tempo em que limita os meios legítimos para alcançá-las; resumidamente, a televisão mostra produtos que muitos não podem comprar. As crianças são tão vulneráveis às propagandas (veiculadas por todos os meios de comunicação) que merecem proteção especial – inclusive no âmbito do Código de Defesa do Consumidor; exemplifica-se assim: uma criança, ao ver um produto que lhe chama a atenção, pede aos pais (ou a um deles) que sane o problema da vontade comprando o produto; se o pai ou mãe possui recursos suficiente, o desejo fica saciado; se não há recursos (ou não há pais), a criança pode deixar, é claro, de desejar o produto, ou contentar-se em não o ter. O que, também, pode acontecer nesta última ocasião, entretanto, é a criança – leia-se, aqui, criança ou adolescente – obter sua satisfação por meio ilegítimo. A frase encontrada em Trindade pode resumir melhor, “a conduta delinqüencial se produz não só por falta de regulação dos objetivos e metas culturais, mas sobretudo pela dissociação entre esses objetivos e os canais que lhe dão acesso.”[4] (sic) (grifo nosso).

Com a teoria do controle, de Hirschi, que tem a mesma linha da teoria da contenção (social), de Reiss, Re-ckless e Nye, há a ideia de que a delinquência juvenil é um ato no qual se verifica o rompimento ou fragilização do vínculo com a sociedade.

A contenção social é feita pela pressão dos aparelhos da sociedade, enquanto a contenção interna desenvolve-se por meio de uma socialização adequada. As pressões externas e internas são capazes de controlar as desigualdades sociais e econômicas, a força que provém das subculturas, bem como impulsos agressivos derivados da frustração.

Como notou Empey (1978), todas as versões da teoria do controle pressupõem que os membros da sociedade compartilhem de um mesmo sistema de valores. A delinquência, então é o resultado da refutação da ordem convencional, por causa de uma socialização incompleta ou ineficaz às normas consensuais.[5] (grifo nosso)

Em continuidade, há a teoria ecológica, remontando o que foi dito anteriormente, com referência a circunstâncias ambientais. Esta teoria teve diversos defensores, dentre eles, Robert Ezra Park, que aplicou o ecossistema natural ao urbano. Ele concluiu que a instabilidade, perda do padrão de obediência às normas pelas dificuldades de internalização do contrato social, ou constatação de que a sua quebra não implica castigo (falha dos órgãos de controle), favorecem a delinquência, em zonas predispostas de uma grande cidade. Em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, é costume saber as regiões em que há maior probabilidade de ocorrência de um delito, vide gratia.

Encontra-se, ainda nesse prisma, a tese da subcultura da violência, de Marvin Wolfgang e Franco Ferracuti, exposta por Trindade; tese

(…) segundo a qual alguns segmentos da sociedade adotaram valores subculturais violentos. Tais valores fornecem um suporte normativo para o comportamento violento, aumentando a probabilidade de que impulsos de natureza hostil culminem numa interação agressiva. Os membros de uma subcultura da violência aprendem a usar armas, a litigar com mais frequência e a responder de modo mais agressivo aos estímulos do meio, particularmente nos grandes centros urbanos.[6]

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Remontando Merton, há, ainda, a teoria da tensão, que parte de pressuposto semelhante à teoria do controle, afirmando que a sociedade é caracterizada por um consenso de valores. Há metas de sucesso, tais quais educação, profissão e independência econômica, para serem perseguidas pelas crianças (de classes baixa, média ou alta). Quando as oportunidades convencionais para atingir as metas são obstaculizadas, ocorre a delinquência (como mostrado sucintamente acima). “A causa da delinquência não está no indivíduo ou na sua família, mas nas barreiras ou nos obstáculos estruturalmente determinados, que precluem as oportunidades legítimas para o sucesso.”[7] Há uma resposta individual de adaptação, a qual Merton – feitor do trabalho em que aparece a teoria da tensão – chamou de “Inovação”; há um sistema social com objetivos – metas culturais – e meios – instituições ou meios institucionais – para obtê-los. Quando o indivíduo está inserido no meio cultural, ao ponto de ter as mesmas metas culturais impostas pelo meio, e não possui recursos suficientes para obtenção dos objetivos, ele [indivíduo] tende a utilizar-se de outros meios que não os institucionalizados, surge aí o crime ou, no caso do adolescente, o ato infracional.

No conflito de funções [ausência de norma clara que guie o comportamento], manifesta-se um cruzamento de normas que geram um profundo conflito humano. A opção depende da importância que o sujeito dá a cada função. Produz-se uma tensão entre desejo e sua satisfação. Se opta por uma, desvia-se da outra, e vice-versa.

Desequilíbrio meios-fins: o sistema social não oferece nenhum meio adequado para resolver a questão. Assim, porá exemplo, a sociedade americana gera anomia ao prescrever o êxito sem proporcionar a todos os meios adequados. O meio é buscado por outros canais. A estrutura social, pois, gera a anomia.[8]

Em bela exposição das ideias de Merton e Durkheim, Trindade fala da sociedade americana como sociedade anômica; sociedade a qual foi tratada por Merton, por ser a da sua nacionalidade. Entretanto, não se pode esquecer que a sociedade brasileira, hoje, segue os mesmos padrões, tendo – em grande parte – os mesmos ídolos e metas, se não semelhantes ou adaptados. A obtenção de um bem alheio pode trazer prestígio social – não pelo ato, mas pela possibilidade de exteriorizar o bem. Apresenta-se, também, a pirâmide hierárquica das necessidades, de Maslow, onde uma necessidade inferior precede uma superior; ao passar de uma necessidade à outra, a última passa a ser mais importante; v.g., um indivíduo possui necessidades fisiológicas, se não as têm sanadas não irá pensar na sua segurança, ao passo que se põe a pensar na segurança, as necessidades fisiológicas ficam em segundo plano – até lhe serem privadas. Ainda segundo Trindade, nas crianças e adolescentes a compreensão dos valores é limitada e suas necessidades pedem por satisfação mais imediata, pois presididas pelo princípio do prazer. Com isso, podem ser explicadas as infrações juvenis contra o patrimônio, uma vez que o meio social é escasso de necessidades básicas.

Entretanto, há, segundo Durkheim, na organização social e moral o desvio, implicitamente. É um processo que inicia pela afinidade e prossegue pela afiliação; não há contágio, então, há convicção. Converte-se na prática de uma nova conduta preestabelecida; existe, portanto, autodeterminação. Segundo David Matza, quando realizado ato infracional, é assumida a identidade de delinquente. Trindade afirma – pelo prisma da teoria da tensão – que

A delinquência, portanto é o produto da tensão que se estabelece a partir do impedimento para atingir essas oportunidades. Os bandos juvenis formam-se especificamente nas áreas onde as oportunidades legítimas são mais limitadas. Por exemplo, supõe-se que os membros da subcultura criminal sejam jovens racionais e inteligentes, que cometem ações delinqüentes para obter bens materiais e status social.[9] (sic)

Existe ainda o viés marxista, por Turk, que diz que há divergência entre as aspirações das classes dominante e dominada, e que a delinquência seria um produto da ordem estabelecida; somente com uma sociedade socialista e o colapso do capitalismo cessaria a delinquência.[10]


A proteção ao Menor Infrator

Conforme as Regras de Beijing (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude), “infração é todo comportamento (ação ou omissão) penalizado com a lei, de acordo com o respectivo sistema jurídico” (art. 2.2 – b), e “jovem infrator é aquele a quem se tenha imputado o cometimento de uma infração ou que seja considerado culpado do cometimento de uma infração.” (art. 2.2 – c). No ponto seguinte – dentro do mesmo artigo “Art. 2. Alcance das regras e definições utilizadas” – esse ato normativo fala

Art. 2.3 Em cada jurisdição nacional procurar-se-á um conjunto de leis, normas e disposições aplicáveis especificamente aos jovens infratores, assim como aos órgãos e instituições encarregados das funções de administração da Justiça da Infância e da Juventude, com a finalidade de:

Satisfazer as diversas necessidades dos jovens infratores, e ao mesmo tempo proteger seus direitos básicos;

No Brasil, esse conjunto de leis, em vigor, que é aplicável especificamente a jovens infratores é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que “perfilha a ‘doutrina da proteção integral’, baseada no reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas as crianças e adolescentes (v. art. 3º).”[11] Anteriormente, vigorava (até 1990, quando entrou em vigor) o Código de Menores. José Barroso Filho expõe bem as diferenças entre os dois códigos, em um quadro comparativo. Enquanto a base doutrinária do ECA é a “Proteção Integral”, para o Código de Menores era o “Direito tutelar do menor”, isto é os menores eram objetos de medidas judiciais quando se encontrassem em situação irregular. Em disparidade com a intenção de “desenvolvimento social” do ECA, o antigo código servia como “Controle Social”; assim, também, era diferente a visão que se tinha da criança e do adolescente, enquanto no ECA estes são sujeitos de direito como pessoas em desenvolvimento, antigamente eram, simplesmente, objeto de medidas judiciais. O Código de Menores preconizava a Prisão Cautelar, enquanto o ECA restringe esta à dois casos, o flagrante de ato infracional e ordem expressa e fundamentada do juiz (base na Constituição Cidadã de 1988).

Seguem as mudanças mais relevantes para o foco deste artigo: (a) quanto à Infração – se não houver grave ameaça ou violência, pode ocorrer remissão concedida pelo Ministério Público (sujeita à homologação judicial), excluindo o processo, pelo Código de Menores, todos os casos de infração passavam pelo juiz; (b) Vulnerabilidade sócio-econômica – existe, hoje, o Conselho Tutelar, órgão que atende os casos de situação de risco pessoal e social, antigamente, os menores carentes, abandonados e infratores deveriam passar pela mão do juiz; (c) Internamento provisório – antigamente, era a medida mais rotineira, a partir do ECA só haverá internamente provisório em caso de infração cometida com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de ato infracional.[12]

Pelas Regras de Beijing, limita-se o uso da força ou coerção física a casos excepcionais, quando já não houver mais outros meios de controle, sendo que este uso não pode levar a lesão, dor, humilhação, nem degradação e deverão ser usados de forma restrita pelo menor período de tempo possível. (art. 64) Não é o que ocorre, como frequentemente se vê, em São Paulo (restringe-se, aqui, a territorialidade, para que não se amplie exageradamente as possibilidades) – houve grande caso de tortura na extinta Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) em 2000, com condenação aos torturadores em 2006[13]; entretanto, no mesmo ano da condenação, não se deixou de aplicar os mesmos métodos de tortura[14], mas não houve mais tortura em massa, teoricamente, não se pode saber, também se continua existindo tal fato na Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), que substituiu a antiga Febem no tratamento de internação do menor infrator.

O artigo 65, também das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, prevê a proibição do porte e uso de arma por parte dos funcionários dos “centros” onde haja jovens detidos. Isto ocorre hoje no Brasil, mas não é vontade unânime. Há, arquivado, na Câmara dos Deputados, projeto de lei[15] que permite o porte de arma justamente para os Agentes de Segurança Socioeducativos; insta-se que o projeto somente está arquivado porque a legislatura de seu criador – Márcio França do PSB-SP – chegou ao fim[16]. Não só há a vontade, como existe, também, ação para que haja mais repressão interna aos adolescentes infratores. O que se pode ver é uma sociedade que fica dividida (até mesmo por classes ou etnias) e que não absorveu, ainda, o conceito de Proteção Integral trazido há mais de 20 anos pelo ECA.


A gênese do menor infrator no Brasil

Segundo Magalhães Noronha, a “gênese do crime está, em grande parte, na infância e na adolescência abandonadas.”[17] O problema do menor abandonado é, conforme Guaracy Moreira Filho, um dos mais graves a ser enfrentados pela sociedade brasileira. Com as condições com as quais crescem e convivem – a vida na (ou pela) rua, lidando com sustento e sobrevivência por si sós, necessidades básicas precaríssimas (restos de comidas, falta de saneamento) e a companhia de bandidos, v.g. – não se pode esperar um avanço muito grande ou competitividade dos menores abandonados, ou infratores.

As políticas governamentais, muito aquém da necessidade, não conseguem atingir os internos, sendo a maior dificuldade para a reinserção do infrator na sociedade; os atendimentos a menores infratores são feitos por instituições muito ruins, com recursos precários [em condições de higiene, e, como mostrado, havendo excesso de poder por parte dos funcionários].

Segundo o autor, é possível – para as cidades – abrigar os milhares de menores abandonados que existem no Brasil – não há, ainda, um estado irreversível. Entretanto, a origem desse fato (o abandono) é a falência da família; o que, provavelmente, gerou essa falência foi a falta de condições para se manter ou conseguir um emprego, má distribuição de renda e terra, isto é, a fomentação de uma economia agressiva em detrimento da garantia de direitos fundamentais. Faltará, portanto, o que realmente necessitam essas crianças e adolescentes, isto é, mãe, pai, casa, cama, carinho, amor. É possível, contudo, que sejam criados meios e instituições que sanem, em parte, esse problema. Há capacidade para construção de escolas de permanência por período integral, na qual haja boa alimentação e instrução vocacional; que os instrua para a vida – que não haja exploração dos pais ou outros maiores de idade. Nas condições atuais, não há possibilidade de competição no mercado de trabalho, por exemplo, com menores que cresceram com lar. Necessita-se, para atingir tais objetivos [que mais parecem utópicos, à realidade que presenciamos], vontade política; isto é, mudança de mentalidade dos governantes[18] [e da sociedade, pois esta impulsiona os atos políticos, incentiva os governantes a agirem, nem que para serem mantidos no poder; ou, na melhor das hipóteses, é a sociedade quem escolhe seu governante, podendo escolher um com nova mentalidade].

Apesar dessas constatações, há quem defenda a redução da maioridade penal. Atualmente, o Código Penal adota o critério biológico-normativo, bastando não ter completado a maioridade penal (18 anos) para não estar afeto ao Código Penal (sendo adequando ao Estatuto da Criança e do Adolescente), não interferindo nessa questão o real poder discernimento do menor.

Ressalta-se que nem todo menor em situação de rua (na rua, da rua, v.g.) tem a mesma condição social; por diferenciação entre moradia, infração, trabalho e lazer, Patrícia da Matta observa que os “limites foram alargados, estendidos a tal ponto que a condição de pobreza era a única característica comum entre as crianças e adolescentes incluídos nesta categoria.” (grifo nosso)[19]. Segundo a autora, essa pobreza é uma situação de riso, com uma relação histórica de pobreza-periculosidade. Essa situação de rua aproxima-se da situação irregular contida no extinto Código de Menores;

(…) a infância pobre permanecia no trânsito entre o abandono e a infração; e, consequentemente, marcada pela noção de carência no abandono – e hoje, também, vitimização – associada diretamente, ou como potencialidade, à periculosidade na infração.[20]

As diferenças entre as infâncias que são vividas na rua são tamanhas que se podem traçar algumas características que são, na maioria das vezes, comuns em crianças e adolescentes que nascem e crescem em um lar, uma família, uma residência física. Patrícia da Matta aponta algumas realidades que conheceu quando de sua pesquisa em rua. Viu crianças que queriam bens de consumo e uso para a família (uso coletivo), mas outras que pensavam em bem pessoal (como minigame). Ela distingue “níveis de aproximação com o universo da rua e a acessibilidade ao consumo”, existindo: (a) sobrevivência e inscrição pelas “bordas” na sociedade de consumo – como, e.g., alguém que trabalha em um restaurante, fica próximo, mas alheio, a este modo; (b) acesso aos bens de consumo por uma via secundária – pegar o que jogam fora de estabelecimentos, ou “pegar escondido”; (c) interdição ao uso e consumo pela limitação ao assistir ao que é visto no outro e ser expulso de estabelecimentos – como ver uma marca na camiseta de alguém que perambula na rua. Outra característica que lhes permeia é uma cultura própria, mais caracterizada com o rap[21], via que permite que sejam expressadas as opiniões próprias e que revelam grande aversão a oficiais da polícia, justamente pela repressão que estes lhes fazem.[22]

O abandono do menor não, infelizmente, é exclusividade brasileira – Selma Aragão relembra a triste história das duas irmãs indianas (Amala e Kamala) que nasceram em meio à selva e, quando levadas à civilização, não se adaptaram completamente à sociedade humana. Faz, ela, grande comparação com a infância abandonada no Brasil, in verbis:

A história de Kamala, a menina-lobo, para mim é atualíssima. Ela me lembra os milhões de menores abandonados soltos pelas selvas das cidades brasileiras. São milhões de meninos-lobos pelas esquinas e avenidas, dormindo em praça e debaixo de marquises, sobrevivendo do melhor jeito que podem. São meninos-lobos cheios de astúcia, lambendo o prato raso da miséria, rosnando para os pedestres apressados e alheios a seu drama. Não nos cansamos de indagar de que forma a sociedade brasileira vai incorporar esses meninos-lobo? Como retirá-los da selva e acomodá-los em salas? Como arrancá-los da indigência e trazê-los para a cultura? Como transformar esses meninos-lobo em seres humanos?[23]

A autora caracteriza de “cidadania vazia” o que se passa no Brasil. “São exércitos de infratores e carentes, guerrilheiros de luta sem ideologias, mártires de uma sociedade que os vitimiza e os trata na tipologia da ‘coisificação’.”[24]

Sobre o autor
Pedro de Sylos Bonecker

Estudante universitário, graduando do décimo semestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONECKER, Pedro Sylos. Vitimização do menor infrator. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4181, 12 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31251. Acesso em: 15 nov. 2024.

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