Há hoje uma tendência na legislação brasileira e mundial à antecipação da tutela penal e, dentro desse quadro, pululam criações de tipos penais de organização ou associação criminosa tais como se pode exemplificar em nosso ordenamento com as infrações penais de organização criminosa, associação criminosa, associação para o tráfico, associação para a prática de genocídio, formação de milícia ou grupo de extermínio.
Considerando que tais infrações penais realmente antecipam a tutela jurídico - penal e, consequentemente, a punibilidade de condutas que ainda não chegaram a lesionar efetivamente bens jurídicos clássicos, mas constituem-se em atos preparatórios ou até mesmo pré – preparatórios, tangendo à mera cogitação, mister se faz identificar que bem jurídico estaria sendo nesses casos visado pela incriminação. Isso a fim de encontrar a legitimidade para a criação desses tipos penais.
É, portanto, fato que tais incriminações constituem aquilo que se tem costumado chamar de “crimes de atentado ou de empreendimento”, no seio dos quais a mera tentativa ou mesmo a cogitação já é erigida em ilícito com penalidade prevista, independentemente da execução concreta de outros crimes visados pela empreitada. [1]
Algumas teorias vêm sendo desenvolvidas com a finalidade de aprimorar a identificação do bem jurídico tutelado nessas incriminações: [2]
a) Tendo em vista que as Constituições em geral, a exemplo da brasileira, apresentam o “direito de livre associação” como fundamental, desde que não seja para fins ilícitos, formula-se a tese de que o a criminalização se justificaria para coibir e inibir um “abuso desse direito fundamental”. Acontece que embora seja visível que realmente esses tipos penais visam coibir e inibir o abuso do direito de associação que já é inclusive normalmente limitado no texto constitucional com a exigência da licitude, não constituindo, obviamente, um direito absoluto, fato é que essa formulação quanto ao bem jurídico tem apenas uma aparência de coerência. Note-se que o se busca é a identificação de um bem jurídico que seja tutelado pelas normas penais em questão. Pois bem, um bem jurídico pode, grosso modo, ser definido como um interesse ou direito tutelável pela ordem jurídica constituída. Ora, o direito ou bem jurídico em vista é o “direito de livre associação para fins lícitos” e nunca, jamais o “abuso desse direito”. O “abuso de direito” não é um bem jurídico. Ele apenas descreve a forma ou o meio pelo qual se atinge um dado bem jurídico que, no caso, não é claramente o direito à livre associação. Na verdade, aqueles que se organizam ou associam criminalmente estão exercendo, abusivamente, aquele direito constitucional que lhes é conferido. Dessa forma, o “abuso do direito de livre associação” somente pode ser aceito como uma descrição da forma pela qual se atinge algum bem jurídico que se está procurando tutelar com essas normas, mas não o bem jurídico em si.
b) Outro apontamento teórico se refere à chamada “Teoria da Antecipação”, onde o ordenamento jurídico criminaliza certas condutas, visando à antecipação da tutela de bens jurídicos que, futuramente, poderiam ser lesados. Nesse caso o bem jurídico tutelado pelos crimes de organização ou associação criminosa seria um tanto quanto indeterminado, variando de acordo com as finalidades de cada associação ou organização, conforme os crimes ou ilícitos pretendidos por essas organizações ou associações. Ou seja, o bem jurídico seria o mesmo tutelado pelos ilícitos visados pelas organizações ou associações. Exemplificando: uma organização para o tráfico de drogas teria por bem jurídico tutelado a “saúde pública”, uma organização criminosa para a prática de ilícitos patrimoniais teria por bem tutelado o “patrimônio” e assim por diante. Nesse contexto, a organização criminosa seria uma “fonte de perigo incrementado”, já que teria a capacidade de diminuir os freios inibitórios de seus componentes para as práticas delitivas, conferindo-lhes maior segurança e crença na impunidade, afora a facilitação em relação aos meios e recursos para as ações criminais. Resta claro que sob esse enfoque teórico os bens jurídicos tutelados pelos crimes de organização ou associação criminosa são totalmente indefinidos, abarcando todos os bens jurídicos protegidos pela Parte Especial dos Códigos Penais e pela integralidade das legislações penais esparsas. Claramente constituem crimes de perigo abstrato e com bem jurídico protéico e variado.
c) Tem predominado na doutrina (e inclusive foi essa orientação a consignada em obra específica deste autor produzida em conjunto com Marcius Tadeu Maciel Nahur) a tese de que o bem jurídico tutelado nos crimes de organização ou associação criminosa é a chamada “paz pública”, [3] também referida alhures como “segurança pública” ou “segurança interna”. Não obstante o predomínio dessa tese na doutrina, fato é que realmente se trata de um bem jurídico volátil e genérico tal como o conceito tão debatido e criticado de “ordem pública”. Por isso se justifica o presente esforço em retomar a discussão.
Algo que parece indiscutível é que os delitos de organização ou associação criminosa constituem realmente uma “antecipação da punibilidade”. [4]
A grande questão está em encontrar a legitimação para essa antecipação, identificando um bem jurídico que desde logo esteja sendo objeto de proteção legal.
Um argumento está na alegação da necessidade de manter a “tranqüilidade” pública. No entanto, isso não pode ser erigido em fator legitimador de normas penais ou bem jurídico por elas tutelado, a não ser com referência, por exemplo, a normas excepcionais ou temporárias destinadas a episódios específicos (v.g. situação de guerra, catástrofe etc.). Acontece que os delitos de organização ou associação criminosa não são criados para vigência excepcional ou temporária, mas para o fim de integrarem em definitivo o ordenamento jurídico penal. Dessa forma, apontar para a “tranquilização” da população em pânico, com medo ou com uma forte sensação de insegurança, seria permitir que toda a teoria do Direito Penal se rendesse a apelos sentimentais, irracionais e até mesmo histéricos.
É bem verdade que todo o aparato penal não deixa de ter em mira essa sensação de normatização, de expectativa de ordem e tranqüilidade, mas esse é um objetivo geral do sistema e não algo que possa ser determinado como bem jurídico específico para esta ou aquela infração. A agir dessa forma estar-se-ia legitimando qualquer incriminação e destruindo na base o próprio conceito garantista de bem jurídico, o qual se diluiria na generalização.
Como bem destaca Meliá, pode-se concluir que uma tal concepção de bem jurídico seria apenas um envoltório ou uma casca de legitimidade fictícia com o potencial de “abrir caminho para a arbitrariedade”. [5]
O caminho que pode levar a uma especificação do que seria a tal “paz pública” ou “segurança pública ou interna”, é aquele que aponta para uma característica marcante das organizações criminosas, qual seja, a usurpação de direitos que pertencem ao Estado como a criação de normas de conduta e, especialmente o emprego legítimo da força (que no caso das organizações seria a conversão da violência ilícita em força legal por meios clandestinos). As organizações e associações criminosas pretendem e muitas vezes conseguem usurpar gravemente o “monopólio do uso da força pelo Estado”. Desse modo, como lembra Meliá, García – Pablos de Molina apresenta como objeto de proteção dos delitos de organização “o próprio poder do Estado”, “sua primazia enquanto instituição política e jurídica”. [6]
Não obstante, hodiernamente sabe-se que há organizações criminosas que não usam diretamente a violência como meio de execução ou consecução de seus desideratos (v.g. crimes financeiros, ambientais, de corrupção etc.). Porém, é preciso ter em mente que não se pode pensar numa usurpação do poder Estatal tal como se pensava há muitos anos e sim no contexto atual. Dessa forma o próprio conceito de “violência” torna-se muito mais amplo e sutil para poder abarcar outras formas de organização que, mediante uma violência comunicativa ou simbólica são também tão ou certamente mais capazes de se sobrepor ao Estado e suas prerrogativas legítimas. No mínimo as organizações e associações criminosas passam a exercer um poder clandestino, mas real sobre seus membros. Ademais, na perspectiva ora defendida não é necessário que uma organização criminosa tenha fins políticos no sentido estrito da palavra para que abale o monopólio Estatal normativo e de uso da força. Basta seu potencial para criar uma espécie do que se convencionou chamar de “Estado paralelo”, infenso à normalização tradicional. [7]
Conclui-se que o bem jurídico tutelado pelos crimes de organização e associação criminosa pode ser apontado como sendo a “paz pública”. Entretanto, tal apontamento necessita de qualificação, mediante a indicação do perigo causado por essas organizações no que tange à usurpação do poder Estatal legítimo, sustentado nas leis e na Constituição.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos, NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade Organizada e Globalização Desorganizada: curso completo de acordo com a Lei 12.850/13. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 1. 16ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MELIÁ, Manuel Cancio. Sentido y limites de los delitos de terrorismo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 71, p. 147 – 180, mar./abr.,2008.
Notas
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 1. 16ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 293.
[2] MELIÁ, Manuel Cancio. Sentido y limites de los delitos de terrorismo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 71, mar./abr.,2008, p. 155 – 159.
[3] CABETTE, Eduardo Luiz Santos, NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade Organizada e Globalização Desorganizada: curso completo de acordo com a Lei 12.850/13. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, p. 134.
[4] MELIÁ, Manuel Cancio. Op. Cit., p. 159.
[5] Op. Cit., p.163.
[6] Op. Cit., p. 166 – 167.
[7] Op. Cit., p. 167 – 168.