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A coisa julgada inconstitucional no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 07/09/2014 às 14:24

Objetiva-se analisar o instituto da coisa julgada inconstitucional, abordando seu conceito, sua natureza jurídica, os principais mecanismos de impugnação existentes no ordenamento e sua distinção em relação à teoria da relativização da coisa julgada.

Da Noção de Coisa Julgada

 Haja vista a necessidade de garantia da estabilidade das relações jurídicas, foi criado pelo Estado instituto que impede as decisões judiciais (sentenças) de permanecerem eternamente instáveis. A tal fenômeno atribuiu-se a denominação de coisa julgada, ou res iudicata, sendo por meio dela que o processo atribui um bem jurídico ao sujeito. A formação da coisa julgada é característica exclusiva das decisões jurisdicionais. Os atos administrativos podem ser revistos pelo Poder Judiciário, mas apenas este pode rever seus próprios atos.

Uma vez proferida a sentença pelo órgão julgador, inicia-se a denominada fase recursal, cuja característica fundamental consiste na mutabilidade da decisão judicial proferida, por meio da utilização das diversas espécies recursais previstas no ordenamento jurídico. Após a interposição de todas as espécies recursais que seriam cabíveis na espécie, ou tendo deixado transcorrer em branco o prazo para interposição de qualquer dessas, ocorre o trânsito em julgado da decisão judicial.

E é no momento em que se dá o trânsito em julgado da decisão que surge a coisa julgada, e, a partir de então, tem-se a denominada fase rescisória, haja vista ser a ação rescisória o único meio processual cabível para alteração do que foi estatuído no julgado. A fase rescisória, por sua vez, tem por característica fundamental a imutabilidade da decisão judicial.

Em se passando o período de dois anos, contado do momento em que se deu o trânsito em julgado da decisão, a sentença, que antes ainda poderia ser alterada por meio de ação rescisória, torna-se imutável, surgindo, então, o que podemos chamar de coisa soberanamente julgada.

Muito se discutiu na doutrina acerca do sentido da coisa julgada, tendo sido adotado pelo Código de Processo Civil Brasileiro o entendimento do autor italiano Enrico Tullio Liebman, segundo o qual a coisa julgada consiste numa qualidade da qual se reveste a sentença, sendo “sua essência a imutabilidade da sentença, do seu conteúdo e de seus efeitos que fez dela o ato do poder público que contém em si a manifestação durável da disciplina que a ordem jurídica reconhece como pertencente à relação sobre a qual ocorreu o julgado”[1].

Segundo Liebman, não se podem confundir os efeitos da sentença, mais precisamente o efeito declaratório, com a autoridade da coisa julgada, ou seja, a imutabilidade que qualifica esses efeitos[2]. Vê-se, assim, que, segundo o autor italiano, a imutabilidade não seria um efeito da sentença, mas sim uma qualidade deste efeito, e é em razão desta qualidade que aqueles se tornam imutáveis.

De fato, o Código de Processo Civil Brasileiro adotou expressamente a teoria de Liebman[3], senão vejamos: Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Contudo, muito embora tenha sido esta a teoria adotada pelo CPC, há, ainda, no direito brasileiro, duas outras formas de se entender a coisa julgada: a) como um efeito da decisão judicial; b) como uma situação jurídica.

A primeira corrente diz ser a coisa julgada um efeito da sentença. Crítica bastante interessante a esse entendimento é a formulada pelo doutrinador Alexandre Feitas Câmara[4], afirmando que não são os efeitos da sentença que se tornam imutáveis, mas sim o seu conteúdo.

De fato, não se pode olvidar que os efeitos da decisão, que seriam as consequências geradas pela sentença, podem ser alterados a qualquer tempo, bastaria que as partes atingidas pela coisa julgada assim o quisessem. No entanto, a matéria veiculada na sentença, esta sim, torna-se imutável, de forma que, ainda que as partes desejassem, após a formação da coisa julgada, não poderiam alterá-la. Como exemplo, poderíamos pensar na seguinte situação hipotética: uma sentença condena o réu a cumprir determinada obrigação de fazer, e ao pagamento de quantia indenizatória no valor de R$ 2.000,00 (dois mil) reais, mas o autor, ao executar a sentença, requerer apenas que seja cumprida a obrigação de fazer, dispensando o cumprimento da obrigação de pagar. Nesse caso, os efeitos gerados pela sentença foram alterados, mas não o seu conteúdo em si, que continuará sendo o de condenar à obrigação de fazer e de pagar.

Há ainda os que entendem ser a coisa julgada uma situação jurídica do conteúdo da decisão. Seria a imutabilidade do conteúdo da decisão, ou seja, das determinações contidas em seu comando dispositivo. São adeptos dessa teoria Alexandre Freitas[5], Fredie Didier[6], entre outros.

Parece-nos a teoria mais adequada, levando-se em consideração que, conforme já analisado anteriormente, não serão os efeitos da sentença que permanecerão inalteráveis, mas sim o seu conteúdo. Podemos, assim, entender que a coisa julgada faz surgir uma nova situação jurídica, algo que antes não existia, e cuja imutabilidade adviria do conteúdo da decisão judicial. Sendo assim, temos que os efeitos podem ser alterados, mas a situação jurídica não, pois o comando contido na parte dispositiva da sentença tornou-se imutável, sendo esta a autoridade da coisa julgada.

Deve-se ressaltar, ainda, na correta lição do doutrinador Fredie Didier[7], que não é a coisa julgada uma garantia de justiça das decisões judiciais, mas tão somente da segurança desta decisão, que se torna imutável, não mais passível de alterações.

Da Coisa Julgada como Garantia Constitucional

 Encontram-se, na doutrina, diferentes posicionamentos acerca da natureza jurídica da coisa julgada, dividindo-se os estudiosos entre os que entendem ser a coisa julgada uma garantia de ordem constitucional, e aqueles que alegam ser a coisa julgada uma garantia de ordem infraconstitucional.

Dentre os que entendem ser a coisa julgada uma garantia de ordem infraconstitucional estão Humberto Theodoro Junior[8] e José Augusto Delgado[9], alegando este último que, acaso a coisa julgada fosse uma garantia constitucional, a ação rescisória e a revisão criminal seriam inconstitucionais. Argumentam os referidos doutrinadores que o art. 5º, XXXVI, da CF quis apenas impedir que lei posterior prejudicasse a res iudicata, - preservando, assim, o princípio da irretroatividade da lei - sendo esta a única questão relativa à coisa julgada que recebeu tratamento constitucional. O restante da disciplina do instituto foi legalmente previsto.

Assim, apenas diante de leis novas deveria a coisa julgada prevalecer, pois o que pretendeu o Estado, em sua dimensão ética, não foi proteger sentenças judiciais que afrontam os princípios da moralidade e da legalidade, espelhando única e exclusivamente a vontade pessoal do julgador, indo de encontro à realidade dos fatos[10]. Tem-se, dessa forma, que a sentença inconstitucional jamais poderá prevalecer, pois afronta a ordem máxima do ordenamento jurídico.

Não é este, porém, o entendimento defendido pela maioria da doutrina, que vê na coisa julgada uma garantia de ordem constitucional, estando intrinsecamente relacionada ao Estado Democrático de Direito.

De fato, sendo o Estado Democrático de Direito aquele em que se objetiva a garantia do bem-estar da sociedade, e se busca solucionar os conflitos de forma justa, não se poderia conceber que as decisões judiciais pudessem ser eternamente alteradas, fazendo surgir um processo de grande insegurança no meio social.

Filio-me, nesse sentido, àqueles, dentre os quais estão Fredie Didier[11], Cândido Rangel Dinamarco[12], Luiz Guilherme Marinoni[13] e Teresa Arruda Alvim[14], que veem a coisa julgada como garantia de ordem constitucional. No mesmo sentido, temos o seguinte precedente jurisprudencial:

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO RESCISÓRIA - ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA - INDEFERIMENTO - GARANTIA DA COISA JULGADA.

1. Entendo que por ser a coisa julgada um princípio constitucional de maior segurança jurídica, a sua cláusula não pode ser molestada por provimentos acautelatórios, só passíveis de modificação por ação própria.

2. A despeito desse entendimento, a Lei n. 11.280, de 16.02.06, deu nova redação ao art. 489, do CPC, que passou a dispor expressamente sob a possibilidade de deferimento de medidas cautelares ou antecipatória de tutela, em casos imprescindíveis e sob os pressupostos previstos em lei.

3. A decisão rescindenda não é suscetível de causar lesão grave e de difícil reparação, sobre não revelar risco de perecimento de direito.

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(TRF 1a Região; AGRAR - 20060100375417; Relator Desembargador Federal JOSÉ AMILCAR MACHADO; DJU em 08.06.2007, p. 2).

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Decerto, não se pode conceber um Estado Democrático em que as relações jurídicas possam ser constantemente alteradas, sendo a coisa julgada requisito indispensável à segurança jurídica, e, por conseguinte, à garantia de paz social. Por outro lado, deve-se ressaltar que, muito embora a coisa julgada esteja constitucionalmente protegida, é na legislação infraconstitucional que está contido o seu conteúdo material e sua regulamentação, in verbis:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. FORMA DE CÁLCULO DO ADICIONAL POR TEMPO DE SERVIÇO. LEIS ESTADUAIS 1.102/90 E 2.157/2000. Arts. 5º, XXXVI, e 37, XIV, da CF/88. OFENSA INDIRETA.

I - A Corte tem se orientado no sentido de que o conceito dos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada não se encontram na Constituição, mas na legislação ordinária (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º). Assim, está sob a proteção constitucional a garantia desses direitos, e não seu conteúdo material (RE437.384-AgR/RS, Rel. Min. Carlos Velloso; AI 135.632-AgR/RS, Rel.Min. Celso de Mello).

II - A apreciação do recurso extraordinário, no que concerne à alegada ofensa ao art. 37, XIV, da Constituição, encontra óbice na Súmula 279 do STF.

III - A ofensa à Constituição, acaso existente, seria reflexa, o que inviabiliza o recurso extraordinário.

IV – Agravo regimental improvido (grifo nosso)

(STF; RE-AgR – 461286/MS; Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI; DJU em 15.09.2006). (grifos nossos).

Devemos entender, assim, que, nos casos de sentenças inconstitucionais, vai-se estar diante de um conflito de disposições constitucionais.  

 Da Coisa Julgada Inconstitucional

 Da noção de coisa julgada inconstitucional

 Conforme foi esclarecido, a coisa julgada foi instituída como elemento garantidor da estabilidade das relações jurídicas, tendo por escopo a preservação da paz social. Afinal, não se pode conceber justiça numa sociedade, cujos conflitos possam prolongar-se ad infinito.

Questão, porém, que sempre desafiou a doutrina foi o tratamento que deveria ser dispensado à decisão judicial, sobre a qual se operou a imutabilidade da coisa julgada, quando esta se mostra eivada do vício da inconstitucionalidade.

O doutrinador Uadi Lammêgo Bulos[15], analisando os efeitos das decisões inconstitucionais dentro da sociedade, assim dispõe:

A coisa julgada inconstitucional fulmina a obra do poder constituinte originário. Desestabiliza as relações sociais, convertendo a certeza jurídica num subprincípio, sem maior vigor ou valimento. Cria a atmosfera de um direito que, em rigor, não existe, inculcando, no intelecto humano a falsa verdade de que há “segurança”, em vez de fomentar a paz social, proporciona a dúvida, o medo, o engano.

Defende-se, na doutrina, que a coisa julgada inconstitucional gera severos problemas de ordem principiológica, pois, de um lado, tem-se um título executivo judicial revestido da imutabilidade da coisa julgada, esta garantida pela própria Constituição Federal – art. 5º, XXXVI –; e, de outro lado, tem-se uma decisão judicial que ofende as determinações dispostas no diploma legislativo máximo existente no ordenamento jurídico, representando, assim, uma ofensa direta ao princípio da Supremacia Constitucional.

Discorrendo sobre a matéria, com o intuito de defender a inoponibilidade de decisões inconstitucionais ao sistema jurídico, leciona Carlos Valder do Nascimento[16]:

Havendo simetria entre segurança e justiça na perspectiva lógica da aplicação do direito, o conflito que se procura estabelecer entre ambas é de mera aparência. De fato, inadmissível a segurança servir de pano de fundo para impedir a impugnação da coisa julgada, imutável, imodificável e absoluta na percepção dos processualistas mais conservadores. Mas torna-se necessário enfrentar tais resistências, desmistificando essa idéia de superação do Estado Democrático de Direito pelo Poder Judiciário.

O doutrinador Cândido Rangel Dinamarco[17], idealizador da teoria que se convencionou chamar de relativização da coisa julgada, entende ser necessário um tratamento extraordinário destinado a estas situações extraordinárias, objetivando-se, assim, evitar profundas injustiças. Esclarece o autor que não é correto eternizar injustiças sob o pretexto de não se eternizarem litígios.

Inúmeras são as soluções apresentadas pela doutrina, objetivando solucionar esta problemática jurídica, dentre as quais destacamos a ação rescisória, o mandado de segurança, a querela nullitatis, a ação declaratória de inexistência de ato jurídico, e, em razão das inovações introduzidas pela Lei nº 11.232/05, os embargos à execução, a impugnação à fase de cumprimento de sentenças, e ainda, a exceção de pré-executividade.

A coisa julgada inconstitucional - ato jurídico inexistente, nulo ou ineficaz?

 Analisando-se o instituto da coisa julgada inconstitucional, viu-se que ela consiste na formação de um título executivo judicial, por meio do qual foram cristalizadas determinações contrárias à Constituição Federal, mostrando-se necessário, nesse sentido, definir a espécie de vício que inquinará a coisa julgada - se de inexistência, de invalidade ou de ineficácia.

Defende a doutrinadora Teresa Arruda Alvim[18] que a sentença inconstitucional será inexistente, e, por conseguinte, a coisa julgada dela decorrente. A renomada autora entende que, quando ausentes elementos que constituem a essência de um ato jurídico, deverá este ser tido por inexistente, e, no caso da decisão judicial, ter-se-ia como elementos essenciais a sua formação, as condições da ação e os pressupostos processuais. Nesse sentido, entende Teresa Arruda Alvim que a sentença inconstitucional seria inexistente, por ausência de elemento essencial a sua formação, qual seja a possibilidade jurídica do pedido, e, por conseguinte, a coisa julgada dela decorrente jamais teria o condão de se formar, razão pela qual poderá ser impugnada por mera ação declaratória de inexistência, sendo desnecessária a aplicação da rescisória.

Por outro lado, doutrinadores como Carlos Valder do Nascimento[19] defendem ser a sentença inconstitucional nula, e, por conseguinte, a coisa julgada por ela formada.

Em que pese a opinião da renomada autora, entendo que, de fato, a sentença inconstitucional padece de vício de nulidade, já que, a princípio, não estão ausentes na sua formação elementos necessários ao seu reconhecimento como ato jurídico-processual, como, por exemplo, um órgão prolator devidamente investido.

No caso, a sentença inconstitucional apresenta um vício de estrutura - error in procedendo - seria um ato jurídico defeituoso, já que sua fundamentação deu-se, tomando por base lei viciada, desprovida de qualquer eficácia jurídica, considerando-se que das leis inconstitucionais, sendo nulas de pleno direito, não advém eficácia normativa[20]. A sentença fundamentada em lei inconstitucional, nesse sentido, equivaleria a uma sentença desprovida de fundamentação - já que julgou com base em lei ineficaz -, sendo ato jurídico-processual inválido - nulidade absoluta.

Contudo, deve-se ressaltar que, muito embora inválida, será a referida decisão judicial eficaz, tendo em vista que, no campo das nulidades do direito processual, os atos jurídicos nulos produzem normalmente seus efeitos, até ser reconhecida a nulidade e desconstituídos esses efeitos. Discorrendo sobre a eficácia dos atos jurídicos nulos, leciona Araken de Assis[21]:

Freqüentemente cria-se lastimável confusão entre a inexistência e a nulidade absoluta, sob o fundamento de que seus efeitos se equivalem. Esta coincidência se revela inexata. O defeito do ato inexistente é de tal ordem que nenhuma consideração merece o juiz, vez que simples fato da vida, do qual nada resulta. De seu turno o ato inválido, porque gera efeitos até seu desfazimento, exigirá desconstituição por resolução do órgão judiciário, pouco importando, para tal arte, se ex officio ou por iniciativa do prejudicado.

Acredito, assim, que a sentença inconstitucional deverá se vista como ato jurídico inválido, pois, contrária à ordem jurídica superior, mas existente, já que não desprovida dos requisitos necessários ao seu reconhecimento como ato jurídico- processual, como seria o caso da ausência de dispositivo.

No tocante à eficácia do título executivo inconstitucional, tem-se que esta poderá ser obstada, quando a decisão judicial for desconstituída, como ocorre nos casos de ações rescisórias com fundamento no CPC, art. 458, I; ou nos termos previstos na legislação - CPC, art. 475-L, § 1º e 741, parágrafo único.

 Mecanismos de impugnação da coisa julgada inconstitucional

Como principal mecanismo de impugnação de sentenças inconstitucionais, temos a ação rescisória, cuja previsão está contida no inciso I, art. 458, do CPC, devendo-se interpretar a menção à lei nele contida, como lei latu sensu.

Decerto, é a ação rescisória meio idôneo para expurgar do ordenamento jurídico as sentenças contrárias à CF, nos termos estabelecidos no art. 458 e ss. do CPC, que disciplinam a referida ação. A aplicação deste instituto, contudo, recebe algumas críticas da doutrina[22], tendo em vista a limitação temporal nele contida, por entender-se que, em casos como o da coisa julgada inconstitucional, não se deveria aplicar qualquer limitação temporal à desconstituição do julgado.

Defende a doutrinadora Teresa Arruda Alvim[23], que a rescisória apenas deveria ser aplicada aos casos de nulidade da sentença. E, em se tratando de sentença inconstitucional, que no entendimento da autora é ato jurídico inexistente, a forma de impugnação adequada seria a ação declaratória de inexistência, sem qualquer limitação temporal - imprescritível -, não sendo este, contudo, o entendimento defendido neste artigo, haja vista conceber-se que a coisa julgada inconstitucional padece do vício de nulidade, e não de inexistência, conforme foi analisado.  Defende-se que será incabível a utilização da ação declaratória de inexistência de ato jurídico.

Outra modalidade de impugnação de decisões inconstitucionais defendida pela doutrina[24] é a chamada querela nulitattis, ou ação declaratória de nulidade. O sistema processual brasileiro, por meio da querela nulitattis possibilita a invalidação, ainda que ultrapassado o prazo da rescisória, de decisões judiciais existentes, pois se o vício não for alegado os atos executórios de fato efetivar-se-ão, contudo inquinadas de vício de invalidade, em decorrência da nulidade ou inexistência de citação, quando o processo correu à revelia. Trata-se dos chamados vícios transrescisórios, aos quais o sistema legislativo concebeu tratamento excepcional.

Entende a doutrina que a previsão legal do instituto encontra-se nos arts. 741, I e 475-L, I, ambos do CPC, já que por meio destes se possibilita à parte a alegação dos referidos vícios na fase executória, bem como a desconstituição do julgado, desde o momento em que ocorreu o vício, para fins de saneamento.

O doutrinador Araken de Assis[25], analisando a excepcionalidade do instituto assim discorre:

A despeito da disciplina geral, a lei infraconstitucional, que outorga, ou não, a eficácia de coisa julgada a determinado provimento do juiz, às vezes erige determino vício essencial, porque parece suficientemente grave e relevante, de modo a receber tratamento privilegiado e diferente, à condição de defeito imune a quaisquer preclusões, incluindo a mais expressiva e maior delas: a coisa julgada. Na hipótese do inc. I do art. 741, o vício de citação sobrevive ao trânsito em julgado do título, equiparando-se à sua inexistência, motivo por que ao condenado é dado impugná-lo através de embargos do devedor, em vez que ação rescisória. (...) Porém do art. 741,I, resulta uma particularidade decisiva: a exceção à sanabilidade dos vícios há que decorrer do texto expresso de lei (...) Do contrário, a eficácia de coisa julgada representaria exceção, sempre controvertida para alegação de precedente nulidade do processo em que a produziu.

Considerando-se que, por meio da querela nulitattis será desconstituído o julgado, como decorrência necessária da nulidade declarada, entendo não ser cabível a sua utilização como forma de impugnação da coisa julgada inconstitucional, pois resultaria, tal medida, em grave ofensa à coisa julgada. Dessa forma, tendo em vista a excepcionalidade do instituto, defendo que a referida ação declaratória de nulidade deverá ser utilizada apenas nos casos de inexistência e nulidade de citação, sendo este o entendimento defendido na jurisprudência, in verbis:          

                      

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. AUSÊNCIA DE HIPÓTESE DE CABIMENTO. REMESSA OFICIAL IMPROVIDA.

1. Esta eg. Corte tem entendimento no sentido de que a sentença transitada em julgado somente poderá ser desconstituída por meio de ação declaratória ("querela nullitatis") quando a hipótese for de nulidade absoluta derivada de ausência de citação no processo em que ela foi proferida (Apelação Cível nº 1997.01.00.060535-1/DF, Relator Juiz Convocado Leão Aparecido Alves, DJ 09.10.2003, p. 119).

2. Ausente hipótese de cabimento, correta a sentença que indeferiu a petição inicial da ação declaratória de nulidade da sentença.

3. Remessa oficial improvida.

(TRF 1º Região; REO 199901000489535/AC; Segunda Turma Suplementar; Relator Desembargador Federal MOACIR FERREIRA RAMOS; DJU em 29.01.2004; p. 83). (grifos nossos)

 Com o advento da Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, tem-se, também como medida de impugnação de decisões inconstitucionais, os embargos à execução, a impugnação à fase de cumprimento de sentença e, ainda, a exceção de pré-executividade.

Questionamentos relativos à constitucionalidade da inovação legislativa à parte, é de se reconhecer que, com as alterações introduzidas pela Lei nº 11.232/05, os embargos à execução e a impugnação à fase de cumprimento poderão ser utilizados como mecanismos de controle dos títulos executivos inconstitucionais, nos termos estabelecidos nos arts.  475-L, §1º e 741, parágrafo único, ambos do CPC.

Deve-se ressaltar, contudo, que a previsão legal não representou uma ampliação dos vícios processuais suscetíveis de saneamento por meio da querela nulitattis, pois, em nenhum momento prescreve o texto legal que as decisões inconstitucionais serão objeto de declaração de nulidade, mas, tão somente, negativa de exigibilidade do título executivo por elas constituído. Trata-se, portanto, de óbice à eficácia do título.

Questão, porém, que pode suscitar alguma divergência consiste na possibilidade de alegação da inexigibilidade do título executivo inconstitucional, por meio da exceção de pré-executividade.

Consiste a exceção de pré-executividade numa modalidade de defesa, consolidada na jurisprudência, por meio da qual se alegam questões de ordem pública na fase de execução do julgado. Sabe-se que a regularidade do título executivo judicial pressupõe a presença de três elementos relativos à obrigação nele contida, quais sejam a certeza, a liquidez e a exigibilidade, sendo todos eles requisitos imprescindíveis à execução da obrigação nele consubstanciada, cuja ausência poderá ser declarada de ofício pelo juiz, por tratar-se de questão de ordem pública.

Nesse sentido, consistindo a exigibilidade de um título executivo matéria de ordem pública, entendo ser cabível a utilização da exceção de pré-executividade, para fins de impugnação de sentenças inconstitucionais, razão pela qual corroboro com o entendimento de alguns autores[26], segundo os quais a lei viabilizou a relativização da coisa julgada, por meio da exceção de pré-executividade. Nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL. FGTS. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. ARGUIÇÃO INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO FUNDADO NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741 DO CPC. MATÉRIADE ORDEM PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO "EX OFFICIO". DECISÃO EXEQÜENDA QUE GARANTIU A ATUALIZAÇÃO DAS CONTAS FUNDIÁRIAS COM BASE DENTRE OUTROS PERCENTUAIS, NOS ÍNDICES 26,06% (JUNHO/87), 7,87% (MAIO/90) e 21,05% (FEVEREIRO/91).  DECISÃO DO STF QUE ENTENDEU PELA INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO EM RELAÇÃO A TAIS PERCENTUAIS. INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO COM BASE NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741, DO CPC. OCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE.

1 - Objetiva a presente apelação a reforma da decisão singular que extinguiu a execução relativa aos 26,06% (junho/87), 7,87% (maio/90) e 21,05% (fevereiro/91) ao argumento de inexigibilidade do título executivo em relação a tais percentuais.

2 - A decisão, ora atacada, reconheceu em exceção de pré-executividade, a inexigibilidade do título exeqüendo com fundamento no art. 741, parágrafo único, do CPC, ao entendimento de que o STF considerou indevido o pagamento de referidos índices.

3 - Sendo a inexigilibilidade do título executivo, matéria de ordem pública, seu conhecimento dar-se-á "ex officio", independentemente de argüição da parte.

4 - Apesar de o instituto da coisa julgada, em tese, encontrar acolhida na Constituição Federal, pode ser a mesma relativizada a depender do caso concreto, se o conteúdo da coisa julgada for conflitante com entendimento esposado pelo STF, guardião da Constituição Federal.

5 - "In casu", tendo em vista que o título executivo judicial transitado em julgado reconheceu, além de outros percentuais, os relativos aos planos Bresser - junho/87 (26,06%), Collor I - maio/90 (7,87%) e Collor II - fevereiro/91 (21,05%), e tendo o Supremo Tribunal Federal julgado pela inexistência de direito adquirido em relação a tais percentuais, é de aplicar-se na hipótese o art. 741, parágrafo único do CPC, de modo a extinguir a presente execução, restando irretorquível a decisão atacada.

6 - Apelação improvida.

(TRF 5ª Região; AC 128596/PE; SEGUNDA TURMA, Relator Desembargador Federal PETRUCIO FERREIRA; DJU em 27.11.2006; p. 506) (grifos nossos).

Há, ainda, aqueles que defendem, como forma de impugnação de sentenças inconstitucionais, a utilização do mandado de segurança[27], tese com a qual discordamos, haja vista não estarem presentes, nestes casos, os requisitos que autorizariam a utilização do mandamus. Trata-se, na verdade, de desvirtuamento do instituto que foi concebido para impugnação de atos ilegais, e não para rediscussão de matérias já atingidas pela operabilidade da coisa julgada.

Coisa julgada inconstitucional x Relativização da coisa julgada

 Por fim, mostra-se de significativa importância a análise da relação existente entre a coisa julgada inconstitucional e a tese da relativização da coisa julgada, largamente difundida pelo professor Cândido Rangel Dinamarco.

A relativização da coisa julgada consiste em tese que defende a desconsideração da coisa julgada material, em virtude de vícios de severa gravidade que inquinam determinadas sentenças, ora negando a existência jurídica destas espécies de decisões - ato jurídico inexistente -, ora reconhecendo a possibilidade de desconstituição dessas, sem que houvesse a necessidade de propositura de ação rescisória. Trata-se de teoria que defende a utilização de mecanismos atípicos – não legalmente previstos – para o desfazimento da coisa julgada.

A tese da relativização/flexibilização da coisa julgada, na grande maioria dos casos, toma por base sentenças nas quais houve um erro no julgamento da causa (análise de mérito) - error in judicando -, devendo-se ressaltar que, nessas hipóteses, a decisão judicial apresenta-se como um ato jurídico válido. O problema referir-se-ia à sentença como um juízo de valor. O exemplo mais citado na doutrina, como justificativa a esta relativização, consiste na hipótese em que o exame de DNA contraria a sentença proferida numa ação de investigação de paternidade.

A coisa julgada inconstitucional, por sua vez, pressupõe um ato jurídico-processual que se formou com base em legislação contrária ao ordenamento, gerando, por conseguinte, um título executivo viciado - error in procedendo. Trata-se de hipótese em que a decisão judicial faz surgir um título executivo, contendo determinações contrárias à Constituição Federal.

Podemos dizer que a coisa julgada inconstitucional é espécie do gênero relativização da coisa julgada[28], uma vez que, em ambas as hipóteses, defende-se uma flexibilização do comando estatuído na parte dispositiva da sentença.

REFERÊNCIAS

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BULOS. Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

CARVALHO JÚNIOR, Gilberto Barroso de. A coisa julgada inconstitucional e o novo parágrafo único do art. 741 do CPC. Jus navigandi, Teresina, ano 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3605>. Acesso em: 06. nov. 2007.

DIDIER, Fredie & CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo José. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPODIVM, 2007. v. II.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tocantins: Intelectos, 2003, v. III.

LIMA, Gislene Frota. A coisa julgada inconstitucional no Código de Processo Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1038, 5 maio 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8354>. Acesso em: 11 nov. 2007.

MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa julgada inconstitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: AMÉRICA JURÍDICA, 2003.

PRADO, Rodrigo Murad do. Coisa julgada inconstitucional. Jus navigandi, Teresina, ano 9, n. 791, 2 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7233>. Acesso em: 17 nov. 2007.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim & MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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Juliana de Carvalho Correia Marinho

Advogada da União. Atua na Coordenação - Geral de Convênios da Consultoria Jurídica do Ministério da Integração Nacional.

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