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Função social do processo

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

I

1 - Fundamental, para a comunicação humana, o consenso entre o emissor da mensagem e seu receptor, no tocante ao significado e alcance das palavras utilizadas no discurso. Daí me parecer indispensável inicie refletindo sobre o significado do termo função, a partir do que centrarei meu pensar no significado de função social, para concluir determinando o que é, no meu entender a função social do processo. J C Barbosa Moreira, em 1984, falando na Universidade de Coimbra sobre a função social do processo, advertiu tratar-se de um conceito "polifacetado" Tentarei, aqui, precisar qual dentre essas muitas faces foi por mim eleita..

2 - Rodotá definiu função como algo contraposto a estrutura, o dinâmico em relação ao estático. Função seria a maneira concreta de operar de um instituto, de um direito, de uma organização etc. Parece-me insuficiente. Processo é vocábulo que também significa modo de operar, o mesmo se podendo dizer do termo procedimento. Cumpre, portanto, determinar mais precisamente o que torna função um modo de operar.

Tudo quanto existe, existe para alguma finalidade, no sentido de que tudo quanto existe está associado a conseqüências de que é causa ou pressuposto e lhe revela a função. Os seres da Natureza cumprem funções que lhe são inerentes e necessárias, ditadas por algo a que emprestamos os atributos do divino, ou buscamos explicar rejeitando toda e qualquer metafísica. O homem, entretanto,por força de sua especificidade - ser não absolutamente determinado - ultrapassa esses limites e pode se imputar funções ou estas lhe podem se imputadas, com vistas a objetivos que lhe são propostos ou impostos socialmente.

Parece-me valioso, portanto, para maior precisão do conceito de função, distinguirmos a atividade ou o operar do indivíduo voltada para seus objetivos pessoais, daquela que realiza direcionado para alcançar objetivos relacionados com interesses que o ultrapassam, izendo mais diretamente com os da convivência social. Será impróprio, por exemplo, falar de função quando o agir está direcionado de modo perdominante ou exclusivo para o interesse do agente. Incorreto, pois, dizer-se que alguém estuda para cumprir a função de educar-se, mas seria adequado afirmar-se que alguém estuda para desempenhar as funções de médico, porquanto está se habilitando a fim de atender, também e principalmente, a necessidades e objetivos de outros sujeitos Quando se diz que o fígado é um órgão ao qual se associa a função hepática, estamos afirmando que ele desempenha certa atividade cujos efeitos são direcionados em benefício de outros órgãos ou funções que, por sua vez, servem ao homem, em termos de totalidade. Eis o que para mim é função - um atuar a serviço de algo que nos ultrapassa

Função social, consequentemente, pode ser entendida como o resultado que se pretende obter com determinada atividade do homem ou de suas organizações, tendo em vista interesses que ultrapassam os do agente. Pouco importa traduza essa atividade exercício de direito, dever, poder ou competência. Relevantes serão, para o conceito de função, as conseqüências que ela acarreta para a convivência social. O modo de operar, portanto, não define a função, qualifica-a.

3 - A palavra função, no campo do direito, adquiriu relevância com o chamado Estado de Direito Democrático. A igualdade essencial de todos os homens -postulado básico da democracia - implica a resultante, necessária, de que todo poder humano é fruto de outorga, formaliza-se como competência e efetiva-se como serviço. Esse pensamento representou um ganho no esforço civilizador de eliminar da convivência social toda e qualquer forma de arbítrio. O processo civilizatório deu à força bruta o caráter de dominação necessitada de justificação, transmudou a dominação em poder como serviço aos homens, segundo a vontade (lei) divina, fundamento de sua legitimação, até aos nossos dias em que todo poder só se legitima como serviço aos homens - função - exercido nos estritos termos da competência e da legitimação formalmente postas pela vontade geral, expressa nas leis (humanas) O agente público passou a não ter vontade própria, sim a da lei - competência ( atribuição) que se faz dever (retribuição) pelo que se fala hoje, não em poder, sim, mais adequadamente, em função legislativa, executiva e jurisdicional. A própria autonomia privada teve suas fronteiras delimitadas pela lei - o agente privado não pode querer o que a lei lhe proíbe nem omitir-se de querer o que ela lhe impõe.

Nosso século transportou para a área privada reflexão que fora feita para o setor público. Passou-se a falar em função social da propriedade, função social da empresa, função social do capital etc. As forças que haviam aberto brechas na muralha política também agora tentavam fazê-las na muralha econômica. E essa reflexão produziu frutos em nosso século, do Estado intervencionista e do dirigismo contratual, inclusive tentando-se definir a função social dos meios de comunicação Já não é apenas o agente público que deve exercitar os poderes que lhe são reconhecidos como dever de servir nos limites da outorga que lhe foi conferida, também aos agentes privados se interdita o exercício das faculdades que decorrem da liberdade que lhes é reconhecida e assegurada de modo a determinarem um desserviço aos interesses sociais.

4 - Esse novo cuidado com a função social do agir humano é conseqüência de uma reação à visão nova que o iluminismo introduziu na cultura ocidental - a descentração do indivíduo em face da sociedade. A modernidade se contrapôs, de forma radical, ao comunitarismo da Idade Média e da Antigüidade, mesmo clássica, Sem se retornar à velha absorção do indivíduo pela sociedade, buscou-se definir limites à autonomia privada, com vistas a preservar a convivência social desejável. A ênfase dada à racionalidade (laicizada) individual e conseqüente autonomia do agir humano, que embasaram o liberalismo político e o liberalismo econômico, provocou disfuncionalidades que o originaram a chamada questão social e provocaram, com seu absolutismo, a reflexão que levou à antítese das concepções coletivistas, cuja síntese foi o pensamento social-democrático, matriz da elaboração a teórica da função social dos direitos subjetivos, públicos ou privados.

5 - De quanto dito, conclui-se que, se no âmbito do direito público o poder existe nos limites da outorga, por conseguinte, estritamente em termos de competência, tudo o mais lhe sendo vetado, no campo da autonomia privada é o inverso que ocorre, legitimado o sujeito de direito a explicitar sua liberdade com amplitude, salvo os limites e obstáculos postos expressamente pela lei. O termo função social, consequentemente, no âmbito do direito privado, só comporta concreção de seu conteúdo mediante uma formulação negativa. Impossível dizer-se, satisfatoriamente, qual seja a função social de qualquer indivíduo ou organização, traçando-se-lhes exaustivamente o seu agir, ou simplesmente se enunciando princípios, por mais numerosos e genéricos que sejam, Só negativamente é possível delimitar-se o espaço da função social do agir do homem ou de sus organizações. Enquanto liberdade, poder de atuar sobre as coisas e sobre outros homens, o homem não tem limites intrínsecos, salvo os naturais. Limitar a liberdade, o poder em que ela se traduz, é torná-la função, vinculá-la a determinados objetivos, pelo que lhe são postos limites. A função social é, assim, menos o que a atividade deve proporcionar que aquilo que ela não pode produzir, por lhe ter sido interditado

Chequemos essa nossa assertiva com algumas funções bem conhecidas O pátrio poder, por exemplo, antes de ser dominação dos pais sobre os filhos é muito mais serviço para eles. Impossível, contudo, definir o que cumpre a um pai concretamente fazer para servir aos filhos; esse seu dever de servi-los ficará assegurado, entretanto, com a precisa determinação do que não lhe é dado fazer. A obrigação dos pais educarem os filhos, alimentá-los etc. é tão ampla e tão relativa, tão elástica que nada diria, se não sancionassemos o descumprimento desses deveres, tipificando essa violações, como maus tratos, abandono, condenação a prestar alimentos, perda do pátrio poder etc. Mais expressivo, ainda, refletirmos sobre a função social da propriedade. Algo ambíguo, indeterminável de modo operacional e insuscetível de ser imposta efetivamente. Mas tudo se transforma quando cuidamos de sancionar o que não deve ser feito, por traduzir a ultrapassagem dos limites postos ao exercício do direito de propriedade, ao domínio (poder) do proprietário. Servidões, ônus, dever de utilização, perda pela expropriação etc.

Ao revés, em termos de direito público, é da sua própria essência que todo e qualquer direito ou poder seja exercido no interesse coletivo, pelo que lhe seria conatural uma função social como motivo e não como limite. Isso posto, definir a função social de uma função pública é, em verdade, traçar-lhe o espaço que, no universo do interesse coletivo, lhe é particularmente reservado. Muito mais delimitação que definição.

6 - No vasto campo das funções públicas, o que se reserva como função social para o processo? Para respondermos a ela teremos ainda que perguntar: de que processo cuidamos. A resposta esclarecedora é a de que apenas trataremos do processo de produção do direito, particularmente daquele processo de produção do direito que oferece como produto uma decisão judicial. - Todo saber é saber do homem e tem como móvel um saber sobre o homem. Tudo, portanto, começa nele e se direciona para ele. Particularmente, tudo que só pode existir mediante o homem, porque por ele produzido, reclama que a reflexão que sobre isso se faça implique uma reflexão sobre o próprio homem.

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O direito, que é um construído - algo impensável e irrealizável sem o homem que o produz e aplica, que dele se utiliza e a quem deve servir, não foge dessa necessidade. Nossa condição humana nos impele a indagar sobre o que as coisas são, por que e para que elas existem. Quando nos defrontamos com algo cuja existência independe de nós, a prioridade é sabermos o que isto seja, porquanto só conhecendo o seu ser e o seu proceder poderemos com ele interagir ou sobre ele agir. Enquanto o homem não conheceu algo sobre a energia, foi incapaz de utilizá-la de modo excelente. Diversamente ocorre, a meu ver, quando lidamos com tudo quanto diz respeito à condição humana, ao homem como realidade específica e total. Aqui, o prioritário é saber o por que e o para que, visto como, nesse âmbito, o ser é sempre resultado de um operar do homem. Ele se faz, aqui, o criador, e como tal é aquele que dá existência a algo com vistas a determinada finalidade que se propôs e por motivos que se colocou. Destarte, ocupando-nos daquilo que somente existe porque o homem lhe deu existência., só seremos capazes de falar sobre o seu ser se antes tivermos refletido sobre o seu por que e para que.

Nas ciências exatas e naturais, o objeto disciplina o cientista. Resiste a ele e o desqualifica, dada a possibilidade do controle da exatidão da teoria pela experiência dirigida. Nas ciências humanas é diferente. Porque ciências da compreensão - algo que não está nas coisas mas na mente humana - o cientista adquire poder sobre o objeto, que é por ele definido e influenciado, pelo que a desconfirmação das teorias elaboradas só pode ser discursiva, insuscetíveis que são de se submeter a uma experiência dirigida e somente viável um controle diferido no tempo e pela verificação histórica (o fluir dos acontecimentos) o que lhe tira toda operacionalidade. Dentre as ciências humanas o Direito é talvez a mais vulnerável. Pura linguagem, é facilmente manipulável, mas porque é um dizer que se faz perigosamente decisão, poder de interferir na liberdade e no patrimônio das pessoas, essa manipulabilidade reclama vigilância permanente e senso crítico apurado de quantos integram o universos dos denominados juristas.. Nada é mais pernicioso que se substituir o esforço pela cientificidade do Direito pelo discurso jurídico, um amontoado de palavras despidas do mínimo de coerência que se exige de qualquer discurso com pretensões de racionalidade.

7 - Nessa linha de preocupação, tentemos apurar o nosso pensamento, para o que devemos perguntar-nos por que e para que o homem produz o Direito. A única resposta aceitável, a meu ver, é a de que o Direito se faz necessário como técnica civilizadora da solução dos conflitos inevitáveis que decorrem da convivência humana. As causas desses conflitos podem ser aqui descuradas, visto como nos basta, para o fim que nos propomos, a certeza de que há conflitos reclamando composição e que essa composição, para ser frutuosa, deve ser decisão de terceiro, estranho ao conflito, e decisão com força de submeter os contendores, à revelia de suas vontades, ou seja, decisão de conflito por quem investido de poder político.

Fundamental para nossa reflexão atentarmos para o fato de que a convivência humana não se dá em termos de uma "ordem" predeterminada e necessária, antes se revelando, também ela, como algo construído pelo homem, fruto, em sua dimensão mais significativa, de deliberações humanas, motivadas por uma complexa gama de interesses, insuscetíveis de serem colocadas geneticamente como disciplinados pelo Direito, mas apenas suscetíveis de se inserirem em seu espaço regulador em termos de conseqüências, na medida em que configurarem um conflito irresolvido socialmente. Isso nos autoriza a concluir que o Direito não está na matriz do comportamento humano, pelo que ele é apenas um espaço da ética, não a própria ética, que o ultrapassa e inclui. Assim sendo, ao Direito não cabe a função de informar e confomar o comportamento humano, em sua dimensão social, sim e exclusivamente a função de solucionar os conflitos que decorram dessa convivência e escapem à composição pelos próprios interessados. Essa função ele a cumpre de dois modos ; colocando expectativas compartilháveis, que permitam um mínimo de previsibilidade de como serão compostos os conflitos que vierem a se instaurar na convivência social (o denominado direito material) e definindo o modo pelo qual os interessados e os agentes públicos devem atuar para solução dos conflitos de interesses não compostos ou insuscetíveis de ser compostos pelos próprios interessados (o denominado direito processual). Nessa perspectiva, distinguiu-se o processo legislativo do processo jurisdicional, delimitada a função de cada qual deles no espaço amplo da disciplina da solução dos conflitos, específica do Direito.

O Estado contemporâneo, por força de seu intervencionismo e em decorrência da crescente juridicização da convivência humana, tornou-se, também, regulador de ampla área da vida social, maxime em sua dimensão econômica. Chegou-se a falar em direito promocional e sanções premiais, no qual a função de solução de conflitos quase se deixava superar por esta outra dirigente e direcionadora, mediante estímulos ou imposições. Assim, ao lado da função de solução de conflitos haveria a de implementação de decisões políticas voltadas para a implementação de comportamentos sociais, ora prevalecendo uma, ora outra.

Essa mudança de enfoque, se verdadeira, em nada alcançou o fundamental da teoria da democracia, ou do Estado de Direito. Permaneceu válido o princípio de que à função legislativa, eminentemente política, cumpre definir diretrizes, princípios e regras e formular planos a que se submete a atividade dos agentes públicos, que só podem o que a lei lhes confere ou atribui, o que vale, por igual, para os magistrados enquanto órgãos de uma das funções do Estado - a jurisdicional. Assim, inexiste uma vontade política a par e ao lado daquela operacionalizada pelos órgãos integrantes da função legislativa, únicos constitucionalmente autorizados para formular políticas. Os três poderes, harmônicos, no sentido de que convergem, mas independentes, porque autônomos em suas funções, implementam uma vontade política única, aquela formalizada em termos de princípios e regras, planos e projetos só implementáveis se sacramentados pela lei (em sentido lato equivalente a Direito ) atendido o processo constitucionalmente previsto para sua formulação.

O alargamento que se deu em termos de funções do Estado não importou em alteração substancial da função de julgar, voltada ainda e exclusivamente para a solução dos conflitos, apenas. enriquecido esse universo dos conflitos, antes juridicamente impossíveis de configuração, entre os sujeitos de direito em geral e os agentes públicos, limitados, agora, pela lei, por conseguinte suscetíveis de serem questionados perante o Poder Judiciário. Não se institucionalizou, por força disso, um Poder que aos demais se sobrepôs, porque também ele se colocou sob o império da lei e suscetível de deslegitimação pelos demais Poderes e pela vontade soberana do povo.

Nenhuma limitação, portanto, em termos de definição política, sofreu a função legislativa, que permaneceu como a única forma legitimada de formalização da vontade geral, democraticamente expressa e institucionalizada. A novidade foi a atribuição dessa função, com maior ênfase, a agentes executivos e judiciários em dimensão diversa da anterior e com alcance diferenciado. Aos agentes executivos se deferiu função legislativa excepcional e sempre submetida ao controle e ratificação final do Parlamento, de que são exemplos os decretos-lei e as medidas provisórias, para apenas se mencionar o que foi tipificado e disciplinado expressamente entre nós, e aos agentes do judiciário, indiretamente isso ocorreu, como conseqüência da necessidade cada vez mais imperiosa da edição de normas com conceitos indeterminados e a crescente mais valia dos princípios e das diretrizes politicamente definidas, a pedir concreção para disciplina dos casos concretos. Isso, entretanto, não alterou a antiga correlação funcional, ou seja, a de que há uma primeira redução de complexidade, de natureza política, para definição de generalidades, e uma segunda redução de complexidade a partir dela, para particularização do que foi definido em termos gerais, com visas a sua aplicação no caso concreto. O processo político disciplina e conforma aquela primeira função. O processo jurisdicional e o processo administrativo disciplinam e conformam essa segunda função. Nenhuma delas livre e soberana se sobrepondo à única soberania reconhecível num sistema de Estado de Direito - a vontade popular, atuando segundo o processo político constitucionalmente instituído. Consequentemente, a validez das decisões formalizadas pelos agentes das funções enumeradas só ocorre se forem produto de um devido processo legal constitucionalmente institucionalizado, seja um devido processo legal legislativo, seja um devido processo legal administrativo ou jurisdicional. Democracia e arbítrio são incompatíveis e a própria discricionariedade se faz cada vez mais prisioneira de pressupostos legais.

8 - Quanto posto até aqui nos permite levar a indagação adiante. Identificada a função específica do Direito e mencionado o processo de sua produção, cumpre aprofundar a reflexão dirigindo-a para a relação existente entre o processo de produção do Direito e o produto que dele resulta, ou seja, no que nos interessa, entre o processo jurisdicional e a sentença, como aplicação, pelo juiz, do direito material legislado..

O homem se relaciona com objetos que se colocam para ele em diferentes perspectivas. Alguns são o que são por origem e função, sem pressuporem, para que sejam, a existência do homem e o seu operar. São aqueles que subsisitiriam sendo, caso o homem desaparecesse da face da terra. A isso denominamos de Natureza Um animal, uma planta, uma montanha, um arroio, tudo isso é e permaneceria sendo, mesmo quando inexistisse o homem. Ele dá nome a esses entes, mas não é este nome que lhes confere a existência Sem ele não haveria árvore, enquanto imagem, nome, significação, sentido, mas haveria a substância que o homem percebe e nomeia como árvore, ainda quando não percebida nem compreendida como árvore.

Ao lado desses, há uma série de objetos que inexistiriam inexistisse o homem. Operando sobre a Natureza, ele cria entes que, se mantendo Natureza em sua entificação, são acrescidos de uma significação, sentido ou função que o homem lhes empresta. Uma vez criados, entretanto, se revestem de autonomia, o que lhes permite ser sem o homem, subsistindo como Natureza modificada. Denomino de produtos esses objetos, resultado do trabalho do homem, operando sobre o que a Natureza lhe proporciona. O animal é utilizado como força motriz, a árvore fornece a madeira que possibilita os móveis, o mesmo podendo ocorrer com os minerais e quanto se ofereça ao homem como matéria ou material.

O homem, entretanto, faz objeto de seu saber e de sua reflexão, com repercussões sobre seu agir, o que não se reveste do caráter de Natureza (porque sem o homem inexistiria) nem se apresenta sob a forma de produto de seu trabalho (porque não subsiste sem o homem e apenas é enquanto processado pelo homem) Dizem respeito esses objetos apenas à convivência humana e se fazem necessários em virtude da exigência fundamental que têm os homens de emprestar sentido e significação ao seu agir e ao seu conviver.

Operando sobre o que integra o mundo físico (matéria, material) o homem, pelo trabalho, transforma o dado pela Natureza em algo que, sendo produto, permanece matéria, vinculado à estrutura que lhe foi posta pela Natureza. Matéria revestida de significação, de sentido, cumprindo uma função que lhe é atribuída pelo homem, porém matéria. A árvore de que faço tábuas não existe para isso, mas o homem pode destiná-la para isso. Se a madeira não é a cadeira que com ela se faz, a cadeira, mesmo enquanto produto, permanece sendo madeira (árvore morta) como a árvore (viva) de que proveio; e subsiste como tal, depois de produzida e dissociada do processo de sua produção, porque é matéria.

No operar o homem com o que produz sociedade, as coisas se passam diversamente. Aqui, o agir humano se dá em termos de comunicação, expectativas compartilhadas, inexistindo a matéria ou o material no sentido que se dá ao termo; e se de algum produto se pode falar, será ele constituído pelo sentido compartilhado (comunicação)

Hannah Arendt (4), com genial acuidade e sensibilidade, afirma ser indispensável compreendermos o homem em suas três dimensões, inelimináveis, que convivem e conviverão sempre em nós, ainda que com predominância diferenciada, Essas atividades são o labor, o trabalho e a ação, todas fundamentais, porque a cada qual delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra.

O labor é a primeira, é a atividade que se vincula ao processo biológico do corpo humano e nisso em nada nos distinguimos dos outros animais. Mas, enquanto todos os animais permanecem prisioneiros desse ciclo, o homem, o animal laborans, escapa a sua difícil situação como prisioneiro do ciclo interminável do processo vital e da eterna sujeição do labor ao consumo. Isso se dá pela mobilização de uma outra capacidade humana: a capacidade de fazer, fabricar e produzir, que é atributo do homo faber, o qual, como fazedor de instrumentos, não só atenua as dores e as fadigas do labor, como erige um mundo de durabilidade. A redenção da vida, mantida pelo labor, é a mundanidade, mantida pela fabricação. Ao trabalho do corpo, o homem associa o trabalho de suas mãos, direcionado por sua mente. Tudo que o homem produz com seu trabalho, ele reifica (torna determinada coisa o que inexistia antes como tal ). A solidez inerente a todas as coisas, até mesmo às mais frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente o dado e disponível, como os frutos dos campos e das árvores, que podemos colher ou deixar em paz, sem que com isso alteremos o reino da Natureza. O material, ao contrário, já é um produto das mãos humanas, que o retiraram de sua natural localização, seja matando um processo vital, como no caso das árvores que têm que ser destruídas para que se obtenha a madeira, seja interrompendo alguns dos processos mais lentos da natureza, como no caso do ferro, da pedra ou do mármore, arrancados do ventre da terra. Aqui se faz presente um elemento de violência.

Não cessa aí, entretanto, a atividade do homem. Projeta-se ela numa terceira dimensão, a mais carregada de significação, que ela qualifica de ação, em que se põe não mais a Natureza ou o Mundo, com seus integrantes naturais, mas o especificamente humano, o exclusivamente humano - a palavra, o discurso, a comunicação.

A pluralidade humana, diz Hannah Arendt, é condição básica da ação e do discurso e ela, pluralidade, tem o duplo aspecto da igualdade e da diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas (5).

Ser diferente, entretanto, não eqüivale a ser outro - ou seja, não eqüivale a possuir essa curiosa qualidade, a alteridade, comum a tudo quanto existe. Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos, ao passo que toda vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre indivíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa - como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo que vive, torna-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares.

A ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas na específica condição de homem, em sua singularidade.

9 - O Direito, já foi dito, não existe na Natureza, é produzido pelo homem, mas ele não se reifica como os objetos produzidos pelo trabalho. Situa-se no universo do discurso e da ação e somente é enquanto discurso e comunicação, linguagem, processo, fazer, operar.

Ontologicamente, portanto, nada é jurídico ou antijurídico, lícito ou ilícito na conduta humana O jurídico é sentido e significação que se empresta a determinados atos dos homens, para que seja atendida uma específica função socialmente imprescindível. Daí afirmar, com propósito de causar impacto, que o direito não existe como objeto material. Nem é sólido, nem líquido, nem gasoso. Não tem estrutura atômica nem molecular. Nem é animal, nem vegetal, nem mineral. Consequentemente, não existe como Natureza. E isso afirmo para conscientizar as pessoas de que o Direito não nos é dado, como são dadas as realidades do mundo físico (orgânico e inorgânico) só existindo enquanto produzido, representado, sempre, pelo resultado do agir comunicativo dos homens, um que fazer setorial no fazer comunicativo global que é a sociedade, jamais se reificando, jamais se entificando dissociado do homem e de sua vontade.

Ao pensar o direito, ingressamos numa dimensão diferente (nova) da realidade. Antes, o mundo do ser - da matéria e da concreção, onde operam o labor e o trabalho - agora, o mundo do dever ser, construção do homem, um tecido de comunicações, realidade indissociável de uma compreensão e de um querer humanos, e que somente é enquanto fruto de uma vontade que o concretize, incapaz de ser faticamente e subsistir se dissociada do sujeito e de seu querer..

A cadeira, enquanto madeira, é, sem que sobre isso o querer humano tenha qualquer espécie de poder. A função e a estrutura da árvore decorrem de um querer (passe o termo) que denominamos de lei natural. Quando a madeira é tornada cadeira, passa a desempenhar uma função que, enquanto cadeira, lhe foi atribuída por um querer humano, indispensável, inclusive, para conservá-la como tal. Dissociada da função que o homem lhe atribuiu, é madeira, árvore morta, possível de ser usada como lenha ou simplesmente não ter serventia. Só associada ao querer humano, que lhe imputa a função específica, é cadeira

Com o Direito, também um produto do operar do homem, tudo se passa diferentemente. Aqui, o produto jamais se reifica, adquire autonomia e se dissocia de seu produtor; mais que isso, só existe e dele se pode falar, em termos de efetividade, enquanto associado ao seu produtor e enquanto processo.

Para ajudar um pouco a compreensão do que vem de ser afirmado, evoco a música. Ela inexiste como fenômeno, realidade sensível, fora do processo de sua produção. Quando o cantor silencia, quando o virtuose deixa de tocar seu instrumento, tudo cessa. A música não é mais como realidade objetiva. A partitura na qual foram consignadas as notações musicais, que permitem reproduzir a melodia por outrem que não o seu criador ou primitivo executor, não é melodia, não é som, não é música, nem harmonia, nem acordes. É nada para o ouvido e para a sensibilidade do homem. Uma pura possibilidade, um nada sem o homem que desse nada faça ressurgir a melodia tornada notação musical após sua criação. E cada reprodução da melodia será um ato criador, porque marcada pela personalidade e pela técnica do interprete, semelhante, não igual, contudo, ou até mesmo desfigurada pela incompetência do executor.

10 - Também o Direito não é o texto escrito, nem a norma que dele formalmente se infere, nem os códigos, nem as consolidações, nem as leis, nem os decretos, nem as portarias, nem os tratados e monografias. Tudo isso é silêncio..... Só possibilidades e expectativas. O Direito apenas é enquanto processo de sua criação ou de sua aplicação no concreto da convivência humana.

No exemplo da cadeira, o trabalho de quem a fabricou foi um instrumento, meio, utilizado para produzi-la, mas que, uma vez produzida a cadeira, se torna de todo prescindível para a existência do produto e sua utilização. Com a música, tudo é diferente. A melodia não é algo que se dissocia do processo de sua produção e do produtor, porque ela só consegue existir, como realidade sensível, associada a um e a outro. Dizer-se que, nesse contexto, o processo é um instrumento, um meio, no mesmo sentido em que isso foi dito com relação ao esforço físico, ferramentas ou máquinas empregadas na fabricação da cadeira, será incorrer-se em erro de graves conseqüências. Aqui, o processo é algo que integra o próprio ser do produto, tem com ele uma relação substancial, não instrumental. Sem o processo, não há o produto, e só enquanto processo há produto; a excelência do processo é algo que diz, necessariamente, com a excelência do produto e o produto só adquire entificação enquanto é processo, um querer dirigido para o criar o produto e mantê-lo sendo.

Se o Direito é apenas depois de produzido, o produzir tem caráter integrativo, antes que instrumental e se faz tão fundamental quanto o próprio dizer o Direito, pois que o produto é, aqui, indissociável do processo de sua produção, que sobre ele influi em termos de resultado. O produto também é processo, um permanente fazer, nunca um definitivamente feito. Produzido pelos homens para atender a uma função essencial à existência humana, ele se situa no âmbito daqueles produtos que jamais se reificam, adquirindo autonomia do seu produtor, porque fruto da atividade do homem no campo do discurso e da comunicação, com que se busca dar sentido e significação às coisas e à convivência humana Conseqüência necessária: a relação entre o processo de produção do Direito, seja como enunciado, seja como decisão, e o seu produto (lei, ato administrativo, sentença e negócio jurídico) não é de caráter instrumental, meio-fim, sim de natureza substancial, integrativa. O direito é o que dele faz o processo de sua produção.

Foi na década de 70, na Alemanha que Haberle afirmou a existência de um status activus processualis, vendo nesse status a dimensão procedimental dos direitos e liberdades. Estigmatizado por uns, aplaudido por outros, obrigou a reflexão dos juristas a caminhar nessa nova direção e já na década de 80 se reconhecia que a imbricação entre direitos fundamentais, organização e procedimento deixara de ser um simples " movimento da moda" e tornara-se postura ineliminável do pensar jurídico.

Canotilho, em tópicos de um Curso de Mestrado sobre direitos fundamentais que ministrou, em 1990, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, justamente sobre Direitos fundamentais, procedimento, processo e organização, assevera que o impulso decisivo para o procedimento e a organização abandonarem o estatuto de "estrangeiros" na "cidade constitucional" foi dado por Konrad Hesse, em trabalho que apresentou, em 1978, na IV Conferência de Tribunais Constitucionais da Europa ao escrever, "no seu peculiar estilo, plástico e incisivo"

"Para os direitos fundamentais poderem desempenhar a sua função na realidade social eles necessitam, não apenas de uma normação intrinsecamente densificadora, mas também de formas de organização e regulamentação procedimental apropriada.

Por sua vez, os direitos fundamentais influem no direito da organização e no direito de procedimento. Esta influência verifica-se não apenas nos direitos especificamente procedimentais, mas também nos direito materiais."

Retomando Canotilho. Num primeiro momento, lembra ele, a preocupação foi a de "enunciar" os direitos fundamentais "garantísticos-judiciais" e " garantísticos-processuais", mas os problemas de "organização" e de "procedimento" ganharam progressivamente o caráter de direito público material e normativamente plasmados no direito constitucional. Se isso não acontecera antes, expulsando-se as dimensões organizatória e procedimental do âmbito da proteção dos direitos, liberdades e garantias (exceto quando se tratasse de "direitos processuais" clássicos) só se pode explicar pela incomunicabilidade que um setor da doutrina pretendeu estabelecer entre "parte orgânica" e parte "subjetivo-relacional" da Constituição, entre um direito constitucional material, ao qual pertenciam os direitos fundamentais, e o direito objetivo organizatório, dentro do qual se inseriam os direitos procedimentais, concebidos como integrando o direito constitucional organizatório ou direito administrativo.

Esta insulação deve ser superada e a idéia de procedimento se tornou determinante na evolução do direito público na última década e a participação procedimental passou, ela mesma, a ser um direito fundamental. A idéia de procedimento fez-se indissociável dos direitos fundamentais, mas a participação "no" e "através" do procedimento já não é tanto um instrumento funcional da democratização, mas uma dimensão intrinsecamente complementadora, integradora e garantidora do direito material. O direito procedimental/processual não é apenas um meio adequado de realização de um direito subjetivo material preexistente, pois a relação entre direito processual/procedimental não se reduz a uma relação de meio/fim, antes se reconduz a uma relação de integração (cf. Canotilho, Tópicos de um Curso de Mestrado sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e organização, em Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXVI, 1990, pp. 151 e ss.

Direito e transformação social. O jurista, um prisioneiro do status quo ?

O episódio da promulgação da Constituição - crença de que passáramos a dispor dos instrumentos adequados (Constituição cidadã) O salto qualitativo - o mais vasto enunciado de direitos fundamentais - o mais vasto elenco de instrumentos de participação - o mais amplo espectro de diretivas emanciapadoras

Minha reação negativa desde o primeiro momento - as razões que a aditavam - crença firme na precedência do político - o direito não conforma o social. Quatro anos de sua vigência. Conseguimos apenas instalar a desordem jurídica - os problemas continuam desafiando.

Conclusão correta: não é do direito que nos devemos socorrer para resgatar o homem. Nem é o melhor, nem o mais adequado instrumento. Talvez seja até o mais frágil e desmobilizador.

Para fundamentar essa minha conclusão é a fala de hoje e o título que lhe dei.

Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Função social do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3198. Acesso em: 5 nov. 2024.

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