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O duplo processo de vitimização da criança abusada sexualmente.

Pelo abusador e pelo agente estatal, na apuração do evento delituoso

Agenda 01/10/2002 às 00:00

"No presente, os meio cegos estão falando aos cegos. Uma das maiores causas de dano secundário nas crianças que sofrem abuso sexual e de fracasso profissional é a imensa pressão sobre os profissionais e o sentimento de que temos que fingir que conseguimos enxergar perfeitamente e que sabemos como agir. Mas nenhum de nós sabe ainda" (Tilmam Furniss).


De todas as mazelas sociais que o ser humano enfrenta no dia a dia, por certo, a violência sexual infantil ocupa uma posição absolutamente relevante e incomodativa.

Quando, no polo passivo do abuso sexual, se depara com uma criança de 03, 06, 07, 12 anos e as seqüelas físicas e psicológicas advindas da violência sofrida, é natural que um sentimento de impotência e despreparo transpasse a alma de cada um que necessita lidar diretamente com as conseqüências do abuso sexual.

A reação primeira de todos, diante do tema-tabu do abuso sexual infantil é evitar o enfrentamento da questão, afinal, é por demais doloroso entender e aceitar que o abuso sexual infantil existe, que ele perpassa todas as classes sociais e tem como vitimizador, em mais da metade dos casos, alguém ligado à criança por laços afetivos muito fortes, como o pai, padastro ou responsável pela sua educação.

A tomada de consciência da problemática e o meio de lidar com a questão posta é essencial para toda sociedade, na busca de meios e propostas que coíbam essa hedionda conduta.

Aos operadores do direito, porém, cabe uma tarefa ainda mais árdua, a de lidar com a criança vitimizada, de forma profissional e consciente, onde se busque evitar a ocorrência do segundo processo de vitimização, que se dá nas delegacias, conselhos tutelares e na presença do juiz, quando da apuração do evento delituoso, causando na vítima os chamados danos secundários advindos de uma equivocada abordagem realizada quando da comprovação do fato criminoso e que, segundo a melhor psicologia, poderiam ser tão ou mais graves que o próprio abuso sexual sofrido.

Este trabalho objetiva, portanto, além de, resumidamente, buscar compreender a dinâmica do abuso sexual infantil, entendendo-o sob o enfoque multidisciplinar, pretende ofertar algumas soluções para a comprovação do fato ocorrido, sem que se constranja a vítima ao ponto de impor-lhe, através do jus puniendi do Estado, um novo processo de vitimização.

Todos sabem que o abuso sexual é tido como uma das mais graves formas de maltrato infantil e consiste na utilização de um menor para a satisfação dos desejos sexuais de um adulto. As formas mais comuns de abuso sexual são: as "carícias", o contato com a genitália, a masturbação e a relação vaginal, anal e oral.

Nunca é demais relembrar que o abuso sexual é um fenômeno transgeracional, que perpassa todas as classes sociais, sem distinção de raça, cor, etnia ou condição social, e cuja incidência não se revela no seu inteiro teor, já que, na grande maioria dos casos, não se leva a notícia do abuso às Autoridades Competentes.

Apesar disso, os números são escandalizadores. Estima-se que ocorram 12 milhões de abuso sexual, por ano, no mundo.

Os americanos acreditam que, em seu País, aconteça uma agressão sexual a cada 6,4 minutos e que 25% das mulheres tenham sofrido algum tipo do contato sexual não consentido, na infância ou adolescência.

Inúmeras pesquisas realizadas pelo mundo comprovam de que no abuso sexual infantil o pai biológico, seguido pelo padrasto, tio, avô, são os responsáveis por mais de 70% dos eventos delituosos ocorridos.

Os números falam por si e expressam, na medida de sua magnitude, o grave problema social e de saúde pública a ser enfrentado.

Desta forma, resta claro que aqueles que nunca lidaram com o fenômeno não têm idéia de sua vastidão e de seus devastadores efeitos.

Gize-se que, segundo dados levantados, de 20 a 30% das crianças maltratadas, convertem-se em adultos violentos, mantendo-se o círculo vicioso de que a vítima de hoje é o carrasco de amanhã, confirmando-se, assim, que o abuso sexual é um fenômeno transgeracional.


1. Da interdisciplinariedade ocorrente no abuso sexual infantil

A primeira premissa da qual se deve partir ao estudar o abuso sexual infantil é que o assunto não permite uma abordagem embasada na unilateralidade.

O enfrentamento do complexo tema do abuso sexual infantil feito de forma unidisciplinar ofertará ao estudioso uma visão mutilada, incapaz de ofertar soluções que levem em consideração não só aspectos legais, mas a recuperação plena da criança vitimada, não se permitindo, por conseqüência, a ocorrência do fenômeno transgeracional.

Para Tilmam Furnis o abuso sexual da criança é um problema maior do que o esforço, as capacidades e as responsabilidades que uma única profissão consegue abranger. Ele é uma questão verdadeiramente multidisciplinar e metassistêmica. [1]

Assim, mister se faz que os operadores jurídicos e toda a sua gama de representantes tenham a clareza que, ao tratar do abuso sexual infantil não o podem fazer de maneira isolada, mas devem buscar a imprescindível colaboração dos profissionais que conheçam a dinâmica do abuso sexual, as seqüelas dele advindas e as formas possíveis de combatê-las.


2. Das diferenças entre o abuso sexual ocorrido dentro e fora do ambiente familiar

A grande diferença entre o abuso sexual intrafamiliar e o extrafamiliar se dá basicamente pelo que a psicologia convencionou chamar de síndrome do segredo.

Assim, quando o abuso sexual ocorre fora do lar, ou tem como abusador alguém não próximo à família, a providência imediata, na grande maioria das vezes, é denunciar o agressor, dando crédito à denúncia da vítima.

Essa conduta, porém, não ocorre, em termos gerais quando o agressor é o pai biológico, padrasto, pai adotivo, tio, avô, irmão, onde, também na grande maioria dos casos, se concentra o esforço familiar na busca de se manter o status quo existente e ameaçado com a revelação.


3. Do abuso sexual intrafamiliar como síndrome de segredo ocorrente com a vitima do abuso sexual

A primeira questão que vem a mente, de início, daquele que estuda o abuso sexual infantil, é a motivação que leva a criança vitima do abuso a calar-se ou ocultar a verdade dos fatos.

Esse fenômeno que os psicólogos chamam de síndrome de segredo e que leva a não revelação, às vezes, por longo período, ocorre por vários motivos que vão desde a culpa que a criança carrega por ter participado da interação abusiva, até ao medo das conseqüências da revelação, como fator desintegrador do núcleo familiar.

Aspecto por demais esquecido pelos que lidam, de forma empírica, com o abuso sexual infantil é entender que a criança vitimizada, em muitos casos, nutre forte apego pelo abusador, com quem, no mais das vezes, mantém vínculos parentais significativos e únicos.

Outra premissa que não se embasa em fatos da realidade é a assertiva de que as mães ou cuidadores não abusivos sempre acreditarão na revelação do abuso sofrido por parte da criança.

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A negação psicológica e a incapacidade de acreditar na revelação do abuso sofrido por parte das mães ou cuidadores não abusivos e que ocorre com mais freqüência do que um leigo é capaz de supor, leva a criança vitimizada a crer que a sua história não interessa e que os adultos não se preocupam com ela.

O fato de participar da interação abusiva leva muitas vitimas a acreditarem que são, de alguma forma, responsáveis pelo abuso.

Ressalte-se ainda que as ameaças explícitas ou implícitas dirigidas contra a criança reforçam a síndrome de segredo, em relação ao abuso.

Em muitas vezes o abusador busca transferir para a criança a responsabilidade pelo ocorrido ou pelas conseqüências da revelação, convencendo a vítima de que será sua culpa se o pai for para a cadeia ou se a mãe ficar magoada com ela.

O sentimento de culpa partilhado pela criança e a responsabilidade que sente pela prática abusiva, segundo Furniss é o principal fator de existência da síndrome do segredo.

O temor de serem castigadas, não acreditadas e não protegidas, leva muitas crianças a mentirem sobre o abuso sexual, de forma consciente.

Dessa forma, só com o rompimento da síndrome do segredo se poderá comprovar, de forma satisfatória, a prática sexual ocorrente, retirando-se a vitima do círculo vicioso existente.


4. Do abuso sexual como síndrome de segredo e adição por parte do abusador

Para o abusador as síndromes de segredo e de adição encontram-se interlegadas e compõem o processo de interação abusiva.

Não restam dúvidas que o vitimizador tem consciência de que o abuso sexual é prejudicial à criança e, apesar disso, o abuso acontece.

Na visão dos terapeutas, o abusador sexual age em relação à criança como os dependentes de entorpecentes agem em relação à droga.

É factível notar que, ao contrário do processo de drogadição, em que o polo ativo é ocupado pelo dependente e o polo passivo pela substância da qual depende, no abuso sexual o polo passivo é preenchido pela criança, "coisificada" e pronta para ser consumida.

Assim, se instala uma relação onde o abusador se transforma em um dependente da criança abusada, e dela necessita, inclusive para que guarde o segredo sobe o abuso ocorrente


5. Dos direitos constitucionais do acusado de abuso sexual infantil

Aos operadores do direito é essencial a consciência de que o crime é um fato social inerente à própria condição humana e que sempre existirá.

A diminuição da criminalidade não se realiza através do direito penal e sim pelo exercício de políticas públicas e sociais que visem extirpar a miséria, as diferenças sociais existentes.

A forma como o Estado exerce seu direito de punir e as limitações a esta tarefa estão garantidas pela Constituição, através do princípio constitucional do devido processo penal e seus consectários previstos na ampla defesa e contraditório, exercidos dentro de um processo penal formal.

O apego a essas diretrizes é essencial para a garantia e sobrevivência do Estado Democrático de Direito, aspiração maior de toda Sociedade.

Assim, mister se faz que na apuração do evento delituoso de qualquer matiz, especialmente nos crimes contra a liberdade sexual, o operador do direito deve ter claro o sentido garantista da Carta Magna que não permite o abrandamento ou supressão das garantias constitucionais do Acusado.

A busca do equilíbrio entre a verdade real e a garantia dos princípios constitucionais do Réu é a tarefa maior a que deve se dedicar o operador do direito incumbido da tarefa de comprovar ou não o crime de abuso sexual, especialmente o infantil.

É factível notar que o sistema presidencial, onde o Juiz, colocando-se numa posição física superior a da vítima e circundado pelo Representante do Ministério Público e o Defensor do Réu, questionando diretamente a criança sobre o evento delituoso, apesar de validar as garantias constitucionais do Denunciado, traz, na maioria das vezes, danos psicológicos que podem de ser de igual ou maior monta que o próprio abuso sexual sofrido.

Insta salientar ainda que o Magistrado ao conduzir a oitiva da vítima de abuso sexual infantil da mesma forma que os demais crimes, no mais das vezes, não consegue penetrar no universo da criança vitimada e deixa de recolher dados absolutamente imprescindíveis à comprovação do abuso, que acaba por redundar na absolvição do Denunciado, por falta de provas.


6. Dando licença explícita para a criança relatar o abuso sexual ocorrido

A primeira premissa que ocorre aos operadores do direito, especialmente aos magistrados é que a tarefa de romper a síndrome de segredo que atinge a criança vitimizada pelo abuso sexual, não pertence a sua seara de conhecimentos e isso deveria ser realizado por profissionais de outras áreas, mais preparados para a tarefa.

Há entretanto, pontos relevantes que devem ser distinguidos: o primeiro é a garantia do contraditório, ocorrente na audiência de instrução probatória, o segundo é a certeza que se espraia sobre a consciência do julgador, ao ouvir, da própria vítima, o relato do abuso sexual sofrido, certeza esta que não se conseguiria extrair de milhões de relatórios e entrevistas.

É conhecido por todos que militam na área jurídica a enormidade de absolvições, por falta de provas, ocorridas nas acusações de abuso sexual, especialmente infantil. Isso ocorre, no mais das vezes, pela total incapacidade do Operador do Direito, especialmente o Magistrado, de entender que a criança vitimada necessita de licença explicita para contar o que lhe ocorreu, usando para tanto o que os psicólogos chamam de Linguagem Sexual.

Nos casos de abuso sexual intrafamiliar é imprescindível relembrar que a criança sofre, normalmente, em seu meio familiar, pressão psicológica para não romper a síndrome do segredo.

Demais a mais, a criança abusada sexualmente não tem facilidade de confiar nos adultos, já que foi violentada por um deles.

Ao questionar uma criança vitima de abuso sexual, especialmente o intrafamiliar, o Magistrado deve transmitir à vítima a sensação de que a sua história lhe interessa e que não teme conhecê-la.

Na busca de preservar a criança, muitos juizes evitam questioná-las, na intenção de protegê-las. Os terapeutas afirmam que ao agir assim, o Magistrado passa à criança a impressão de que sua história não lhe interessa e que a criança não tem autorização para romper o segredo.


7. Da linguagem apropriada para falar sobre o abuso sexual

Sem dúvida, uma das maiores dificuldades existentes para quem lida com qualquer tipo de abuso sexual é encontrar a linguagem correta para se comunicar com a vítima, testemunhas e com aquele que é apontado como abusador sexual.

Quando se trata de uma vítima de 05, 06, 07 anos a situação é por demais aterrorizante, principalmente para os magistrados que, por não conhecerem a dinâmica do abuso ou por se sentirem envergonhados ou embaraçados, evitam, de todas as formas uma linguagem explícita sobre o abuso sexual ocorrente.

Buscar o uso de uma linguagem sexual explícita e apropriada para a idade da criança é essencial.

Nominar os órgãos genitais com os apelidos que a criança vitimada lhes dá, ajuda, por certo, a romper com a síndrome de segredo.

Muitos profissionais, inclusive da área médica, referem-se ao ato sexual como "aquilo", "um problema" etc.

É elementar que, ao contactar com a criança ou com as testemunhas, não se deve usar uma linguagem sexual agressiva e que crie uma sensação de constrangimento insuperável.

A busca do equilíbrio em nominar o abuso sexual de forma clara e transparente, sem parecer à criança que o profissional que a interroga teme dizer as expressões em seu contexto, e a sensibilidade do inquiridor para não fazer colocações desnecessárias e abusivas é a tênue linha sobre a qual devemos caminhar quando questionamos sobre abuso sexual infantil.


8. Da experiencia da autora na apuração de alguns casos de abuso sexual infantil

É bem verdade que seria excelente se o trabalho de preparar a criança para romper com a síndrome de segredo fosse realizada antes da audiência com o Magistrado e que a criança ali chegasse pronta para relatar o que aconteceu.

No mais das vezes, entretanto, a criança às vezes relata o ocorrido na Delegacia ou no Conselho Tutelar, ou em ambos, e ao chegar à sala de audiências, se fecha, assustada com o ambiente ou com as repercussões de seu relato.

Com alguns juízes mais desavisados a criança chega a se avistar com o abusador minutos antes da audiência, pelos corredores do fórum e, dependendo do vínculo que os une, a vitima estará muito abalada para relatar o ocorrido.

Em alguns casos em que tenho trabalhado na apuração de abuso sexual infantil, tive como providência primeira buscar uma aproximação com a criança, iniciando o trabalho por sentar-me próximo a vítima ou testemunha impúbere.

Despir-se da beca é essencial, já que a representatividade de poder que ela impõe chega a assustar alguns adultos, imagine-se a repercussão na alma de uma criança.

Nessas audiências tenho primeiro buscado adentrar no universo dos pequenos, buscando afinidades entre a sua família e a minha e entre a minha filha e a vítima, procurando saber o número e a idade dos irmãos, as brincadeiras que gosta, etc.

Outro ponto que entendo relevante é nominar os órgãos genitais pelo apelido que a vítima lhes dá e isso varia de família para família, de região para região e de classe social.

Chegar ao nível da criança e dela buscar uma proximidade faz com que a criança acredite que a sua história é importante e que o profissional que a questiona se preocupa com ela.

A criança deve ter certeza de que o seu relato não lhe trará punições ou rejeição pelos membros da família e pelo profissional que a interroga.

A permissão para relatar o ocorrido deve ser explícita e a mensagem de que apesar de não ter culpa, no sentido legal, a criança participou dos fatos e os conhece, podendo assim ajudar a esclarecê-los, com suas informações.

Em uma audiência, onde inquiri 04 menores impúberes, a mais nova tinha apenas 06 anos e a maior com 11 anos, me lembro de ter abordado o assunto do abuso sexual, depois de uma longa conversa onde busquei criar um vínculo de intimidade, nos seguintes termos: "é importante que você saiba que você não teve culpa pelo que ocorreu. Nenhuma culpa. Acontece que você estava lá e eu preciso muito saber o que aconteceu para tomar as providências que os adultos tomam em casos assim. Vamos supor que você estivesse viajando comigo, em meu carro e eu começasse a dirigir em alta velocidade e viéssemos a sofrer um acidente. Você se sentiria culpada? Quem seria responsável pelo acidente?". Nesse ponto a resposta é sempre a mesma; "A Senhora seria responsável pelo acidente".

Daí para frente a argumentação é fácil. "Então, mas se o guarda perguntasse a você como foi o acidente, você não contaria que eu estava correndo e por isso o carro bateu? Pois da mesma forma que no acidente você não teve culpa, porém você estava lá quando ocorreu, da mesma forma você estava presente quando ocorreu o abuso e eu preciso que você me relate, como relataria ao guarda, todo o ocorrido".

Os fatos colocados assim retiram da Vítima a sensação da culpa pelo abuso, colocando o fato da responsabilidade na pessoa que o cometeu, permitindo que a criança tenha a sua experiência e relate o que efetivamente aconteceu.


9. Das formas alternativas de procedimento de colheita de provas

Como já afirmado, no decorrer deste trabalho, o que se busca são formas de proceder a oitiva da criança sexualmente abusada, sem lhe causar novos danos psicológicos, ao mesmo tempo em que se garanta,ao Acusado, o direito ao devido processo legal e seus consectários.

Entre as propostas devem ser consideradas as seguintes:

a) A substituição da inquirição da vítima por uma avaliação técnica que só será possível com a concordância da Acusação e Defesa.

b) a nomeação de um intérprete, para a oitiva da criança vitimada, nos termos do artigo 223 do Código de Processo Penal.

c) A inquirição através da Câmara de Gesel.

d) A criação de Varas Especializadas na apuração dos crimes de abuso sexual.

Importante que se analise cada uma das sugestões acima alinhavadas com suas vantagens e desvantagens.

9.1. A substituição da inquirição da vítima por uma avaliação técnica

Colher o depoimento de uma criança vitimada pelo abuso sexual, como já afirmado alhures e por diversas vezes, não é tarefa fácil. Diante disso, alguns magistrados têm determinado uma avaliação técnica da vítima, com a apresentação de relatório, nos autos.

Gize-se que este procedimento tem sido validado pelos Tribunais Superiores e é de grande valia, em muitos casos.

A única dificuldade que se coloca é quando uma das Partes, Acusação ou Defesa, discorde do procedimento adotado e alegue supressão do direito constitucional ao devido processo legal que não prevê tal possibilidade. Assim, a avaliação técnica só será possível quando se puder contar com a aquiescência de ambos os Polos da relação processual, sob pena de nulidade.

9.2. A nomeação de intérprete

Sugestão por demais interessante e trazida a baila pela Promotora de Justiça Veleda Dobke, em sua sobre o tema ora em estudo:

Os operadores do direito, na hipótese de não se encontrarem capacitados para a inquirição da criança abusada, de não terem conhecimentos sobre a dinâmica do abuso sexual ou não entenderem a linguagem das pequenas vítimas, podem nomear um "intérprete" com formação em psicologia evolutiva e capacitação na problemática do abuso sexual, para, através dele, ouvir a criança, numa tentativa de melhor atingir os objetivos da ouvida – não infligir dano secundário e obter relato que possa ser validado como prova para a condenação, se for o caso.

Quando a testemunha, também a vítima, não conhece a língua nacional ou for surda-muda que não saiba ler e escrever, intervirá no ato de sua inquirição, por nomeação do juízo, como intérprete e sob compromisso, pessoa habilitada a entende-la. Assim, determina o artigo 223 do Código de Processo Penal.

Ora, se é determinada a nomeação de um intérprete no caso de a vítima não entender a língua nacional ou der surda-muda que não saiba ler e escrever, também será possível a nomeação de profissional para auxiliar na realização da inquirição de uma criança vítima de abuso sexual. A necessidade da nomeação de um intérprete em ambos os casos é evidente [2]

9.3. A inquirição através da Câmara de Gesel

Segundo Sanz e Molina, citados por Veleda Dobke, em muitas nas Comarcas da Argentina já se lança mão da Câmara de Gesel, descrita como uma sala com uma das paredes de vidro espelhado, unidirecional.

Assim, os profissionais que atuam no feito, Juiz, Promotor, Defensor, além do Acusado, não são vistos ou percebidos pela Vítima, posto que se posicionarão do lado externo e se comunicarão com um profissional habilitado e nomeado pelo Juiz, que fará à criança as perguntas determinadas pelo Magistrado, através de intercomunicadores.

Sem dúvida alguma esta é a solução ideal para a realização de uma oitiva não traumatizante para a vitima e, por sua vez, garantirá, ao Acusado, o seu direito constitucional ao devido processo legal.

Por evidente, a solução demanda despesas adicionais às finanças do já combalido Poder Judiciário, entretanto, poderia, de início, se analisar a possibilidade de instalação de Câmaras de Gesel em Comarcas Polos, onde se teria um Magistrado com conhecimento da dinâmica do abuso sexual, ladeado por um psicólogo com formação específica na área.

Assim, as vítimas poderiam ser descoladas, por pequenas distâncias e oitivadas através de Carta Precatória.

9.4. A criação de Delegacias e Varas especializadas em crimes de abuso sexual

Diante do elevado número de ocorrências de crime de abuso sexual é importante que os Tribunais de Justiça dos Estados analisem a possibilidade de criação de Varas Especializadas para esses casos.

É fato de que o abuso sexual, especialmente o infantil e intrafamiliar está entre os crime de menor notificação às Autoridade Competentes. Nem por isso se pode dizer que poucos são os casos a se apurar.

Assim, com a criação de Delegacias e Varas Especializadas neste tipo específico de crime, onde atuariam profissionais capacitados na lida com tão delicada questão, somaria, de forma significativa, na apuração dos crimes em questão.


CONCLUSÃO

Por certo cabe aos operadores do direito a conscientização do grave problema enfrentado e a consciência de que se faz necessário conhecer dinâmica do abuso sexual para realizar seu trabalho, seja como Juiz, Promotor ou Defensor do Réu, posto que, por certo, a ninguém interessa traumatizar, novamente, o infante já vitimado.

Um novo proceder se impõe.

Nos Juizes, promotores, advogados, só estaremos motivados a buscar a comprovação ou não do abuso sexual se tivermos capacidade intelectual e conhecimento que nos permitam manejar a situação posta a nossa frente.

A colocação em prática das sugestões alhures alinhavadas modificará, por certo, a comprovação do abuso sexual, tornando-a mais efetiva e não traumatizante.

Não há, porém, como deixar de concluir que de todas as sugestões apontadas, a que atinge de forma definitiva os objetivos propostos, de preservar a vitima e garantir ao Acusado o devido processo legal é, sem dúvida, a instalação das Câmaras de Gesel, em todas as Comarcas ou em polos regionais para onde se procederia ao deslocamento da Vítima que poderia ser oitivada, através de precatória, pelo Juiz local, assistido por profissional competente que, após ouvir as interrogações do Magistrado, as faria à Vitima, de forma técnica, sem a causação de mais danos psicológicos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar.Porto Alegre; Artes Médicas, 1993.

SCHREIBER, Elizabeth.Os Direitos Fundamentais da Criança na Violência Intrafamiliar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N.A..; (Org).A Síndrome do Pequeno Poder. São Paulo: Iglu, 2000.

DOBKE Veleda. Abuso Sexual: A inquirição das crianças uma abordagem interdisciplinar.Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.

DREZETT, Jefferson. Estudo de fatores relacionados com a violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres adultas. Tese de doutorado (Centro de Referência da Saúde da Mulher e de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil), São Paulo, 2000.

JACOBY, Sérgio Paulo et al. Prostituição Infantil e Exploração Sexual.Disponível em:<www.ccj.usf.br>.Acesso em 10 mai.2002.


Notas

1. FURNIS, Tilman. Abuso Sexual da Criança. Uma abordagem Multidisciplinar.Porto Alegre, 1993, p.98.

2. DOBKE Veleda. Abuso Sexual: a inquirição das crianças uma abordagem interdisciplinar.Porto Alegre, 2001, p.91.

Sobre a autora
Maria Rosi de Meira Borba

juíza de Direito do Estado de Mato Grosso

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORBA, Maria Rosi Meira. O duplo processo de vitimização da criança abusada sexualmente.: Pelo abusador e pelo agente estatal, na apuração do evento delituoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -274, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3246. Acesso em: 23 dez. 2024.

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