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A mentira no pensamento católico e sua influência no ordenamento jurídico brasileiro

Agenda 23/10/2014 às 10:19

O presente artigo visa analisar o pensamento católico, tomando Santo Agostinho como base, acerca da mentira e sua influência nos direitos processual e material civis.

INTRODUÇÃO

Hoje em dia, a mentira continua, sem dúvida alguma e mais do que nunca, presente em nossas vidas, sempre aparecendo vestida de incontáveis facetas e sempre se renovando. Cada vez mais a mentira faz parte do nosso cotidiano, das relações humanas, desde nossas vidas amorosas até – de maneira cada vez mais e mais e mais presente - do ramo das relações políticas. Será que existe, então, um conceito geral da mentira que, apesar de todos os variantes presentes nos casos factuais, podemos utilizar como sendo mais aceita e corriqueira na sociedade atual?

É incontestável que, passados os anos, mudadas as sociedades, a mentira sempre existiu e nunca deixará de existir. O que muda é apenas a forma como é encarada a mentira: condenando-a mais, ou condenando-a menos.

A bíblia sagrada nos traz a história de Caim e Abel – filhos de Adão, segunda geração nascida da espécie humana - o que, na religião cristã ocidental, pode ser considerada como a primeira mentida contada. Caim, após assassinar seu irmão Abel, movido pelo sentimento da inveja, ao ser indagado por Deus se havia cometido tal crime, respondeu, de maneira irônica, negativamente. Deus, ser uni consciente, amaldiçoou Caim como punição pelo crime cometido, excluindo-o das terras em que ele e sua família viviam.

Desde o princípio da história ocidental, vislumbramos ser a mentira algo inaceitável e vinculada aos indivíduos de má índole, como no caso de Caim, o qual se utilizou da artimanha de proferir palavras contrárias à realidade para tentar esquivar-se de Deus e manter-se impune apesar de assassinar seu irmão.

No livro de Êxodo, capítulo 20, encontramos os 10 mandamentos, os quais são tidos até hoje como os principais preceitos a serem seguidos pelos cristãos. O 9º mandamento trata expressamente desse assunto, proibindo inteiramente a mentira, sem exceções.[1]

Não podemos também negar a influência do pensamento católico cristão ocidental em como encaramos e aceitamos a mentira em nossas sociedades, influência esta que já inclusive adentrou no ramo do Direito pátrio moderno, o que veremos a seguir.


1 - BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO QUE PODE SER CONSIDERADO, HOJE EM DIA, COMO SENDO UMA MENTIRA    

Hoje em dia, a mentira continua, sem dúvida alguma e mais do que nunca, presente em nossas vidas, sempre aparecendo vestida de incontáveis facetas e sempre se renovando. Cada vez mais a mentira está faz parte do nosso cotidiano, das relações humanas, desde nossas vidas amorosas até – de maneira cada vez mais e mais e mais presente - do ramo das relações políticas. Será que existe, então, um conceito geral da mentira que, apesar de todos os variantes presentes nos casos factuais, podemos utilizar como sendo mais aceita e corriqueira na sociedade atual?

Abaixo, faremos algumas exposições a fim de tentarmos encontrar esse conceito geral.

No Michaelis, moderno dicionário da língua portuguesa, encontramos a seguinte definição da mentira:

1 Ato de mentir; afirmação contrária à verdade, engano propositado. 2 Hábito de mentira. 3 Engano da alma, engano dos sentidos, falsa persuasão, juízo falso. 4 erro, ilusão, vaidade. 5 Fábula, ficção. (...). 

Já no dicionário da língua portuguesa Melhoramentos, está presente o seguinte enunciado, muito próximo ao acima exposto:

1 Ato de mentir; 2 Afirmação contrária à verdade; 3 Juízo falso. 

A mentira é ato de mentir, como dito antes, sendo que mentir, pelo mesmo dicionário Melhoramentos, é definido como “1 Dizer mentiras; 2 Induzir em erro, ser causa de engano.”

Agora, com a finalidade de mostrar a aplicação da mentira num ambiente em concreto, traz-se, a definição contida no dicionário jurídico Vocabulário Jurídico, do autor De Plácido e Silva:

Formado de mentir (faltar com a verdade, esconder a verdade ou dizer falsamente), é a asserção falsa ou contrária à verdade. Assim, a mentira é fundada na ciência de que se está dizendo ou anunciando o que se sabe não ser real ou verdadeiro.

O erro ou equívoco, em que se está, em razão do que se afirma ou se diz o que não é verdade, não formula a mentira.

A mentira é o juízo falso, quando de sabe que a verdade é outra.

Com base nas definições trazidas acima, podemos tirar que a mentira é aquela declaração feita pelo indivíduo que, conhecedor dos fatos verdadeiros e por sua vontade, enuncia o contrário daquilo que sabe. Tem, o indivíduo, propósito de enganar. Desde os primórdios da humanidade, a mentira é tida sob esses aspectos, sendo tal definição, também na sociedade hodierna, amplamente aceita e utilizada. Inclusive Platão, como será mostrado logo mais, utilizou-se do termo “enganar” ao tratar da mentira.

Nos costumes da nossa sociedade atual, a mentira é tratada como aquele discurso do indivíduo que não condiz com a realidade, desde que ele saiba a verdade. Ou seja, se ele estiver em erro, tomando como verdade algo que não é verdadeiro, não estará mentindo, pois não quis enganar propositadamente. Tal definição pode ser encontrada aplicada nas conversas rotineiras, quando afirmamos que alguém está mentindo acerca de algo – quando fazemos essa assertiva, sempre imaginamos que o mentiroso está querendo nos enganar, pois sabe da verdade e nos diz algo desarmônico -, pode ser encontrada também no meio jurídico – por exemplo, configura-se como crime de falso testemunho se a testemunha, de maneira ardil, não se atém à realidade em seu depoimento -, ou até mesmo nos casos fictícios, criações das artes de massa.   

Na cultura popular, temos, por exemplo, história mundialmente conhecida do personagem Pinocchio. Apesar de esse personagem ter feito sua primeira aparição num romance italiano, Le avventure di Pinocchio. Storia di un burattino,escrito por Carlo Collodi em 1881, a versão mais conhecida de sua história foi aquela fruto da adaptação da produtora Walt Disney, que a transformou em filme em 1940. Nesse filme, são abordadas diversas qualidades humanas, como coragem, lealdade e honestidade. Ao abordar a honestidade, deixa claro seu propósito de ensinar tal valor às pessoas, sempre mostrando a mentira como algo a ser evitado e que nos trás más consequências. Pinocchio sofria uma maldição que fazia seu nariz crescer, toda vez que mentisse. Nessa parábola popular, podemos ver que as pessoas enxergam a mentira como algo inaceitável e que causa uma mancha no caráter – assim como Pinocchio que, toda vez que mentia, seu nariz crescia, de forma que seu nariz grande servia para simbolizar seu estado de mentiroso.

Podemos citar mais diversos outros exemplos, nas artes, nos quais o tema da mentira é abordado. No filme holywoodiano “O Mentiroso”, estrelado por Jim Carey, nos deparamos com uma situação na qual o protagonista, que tinha a profissão de advogado e era muito conhecido como um fulano mentiroso, devido a algum tipo de encantamento ou magia, fica impossibilidade de proferir um mentirinha sequer durante 24, sendo explorado, nesse filme, as consequências de ser completamente sincero a todo o momento e em todas as coisas. Outro filme da cultura pop lançado nos últimos anos que aborda o tema é o filme chamado “A Mentira”, o qual tenta nos convencer que ao proferirmos mentiras atraímos para nós mesmos consequências desagradáveis.

Enfim, fato é que, desde o início de nossa existência, o tema é abordado de forma recorrente. Desde muito cedo, nos deparamos com o princípio da veracidade, sendo um dos temas da moralidade mais ensinado por nossas famílias. Por isso, por sua importância e reincidência em nossas vidas, tratarei de expor, no presente trabalho, o que alguns dos filósofos que mais se preocuparam como a temática opinam sobre a mentira, finalizando numa comparação das análises dos pensadores com o ordenamento jurídico vigente no Brasil.


2 - A VISÃO CATÓLICA DA MENTIRA, CONFORME ANÁLISE DE SANTO AGOSTINHO 

Agostinho, um dos principais filósofos de tradição católica, nasceu em 354 na África Romana. Filho de cristã devota e de um pagão convertido ao cristianismo em seu leito de morte, Agostinho foi professor de retórica e teve, por muitos anos antes de se converter ao cristianismo, um estilo de vida hedonista. Após apenas cinco anos de sua conversão, foi ordenado sacerdote, se tornando, rapidamente, um importante e famoso pregador, com várias obras escritas sobre o cristianismo.

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Agostinho, incluindo-se no rol dos filósofos que mais se interessaram e destrincharam tema, sendo o que primeiro o analisou com tanta profundidade, trata da mentira, principalmente e não somente, em dois de seus tratados: Contra Mendacium e De mendacio.

Tem uma abordagem, de certa maneira, próxima àquela efetuada por Immanuel Kant centenas de anos depois, na medida em que não tolera nenhuma mentira intencional e também acredita que devemos ser completa e incondicionalmente fiéis à verdade independentemente das circunstâncias e de visarmos um benefício para nos mesmos ou terceiros.

Em seus escritos, não só lança-se à conceituação da mentira, e sua aversão completa a ela, como também traz inúmeros casos para demonstrar a efetividade prática de suas análises e definições, sendo sua análise bastante profunda como nunca haviam feito antes. Através de uma lente dotada de religiosidade cristã ocidental, expõe opiniões que muitas vezes confundem-se com os ensinamentos bíblicos em relação à mentira, à sua natureza e suas consequências.

Em um primeiro momento, Agostinho trata de expor o que, apesar de não ser verdade, não se configura como mentira. As brincadeiras, ou como também assim as chama, ”mentiras jocosas”, não são mentiras, pois à elas falta a intento de enganação por parte do prolator, particularidade esta tida como essencial na caracterização da mentira em sua maneira plena e completa. Mesmo as brincadeiras terem outros atributos da mentira, como, por exemplo, estar em desacordo com a realidade factual, não estando presente o intuito, por parte do discursante, de que aquele (s) sujeito (s) destinatários da brincadeira acredite (m) no discurso falso, não pode ser considerada como uma mentira. 

Os atores, também, ao debruçarem-se sobre seus personagens, agindo estritamente na ficção aos quais se propuseram a trabalhar, não estão cometendo o crime de mentir, haja vista o fato de a plateia saber a natureza das apresentações teatrais que são a vivência de uma realidade inventada, mas que todos sabem que não é verdade, por mais que possa imitar a realidade. Os atores não intentam que seus telespectadores acreditem naquela encenação proposta por eles, mas querem que, apenas, sejam apreciados no atuar em sua arte ficcional.

Há também a distinção, em relação à mentira, daqueles discursos nos quais o falante realmente acredita serem estes verdadeiros, apesar de falsos e em dissonância com a realidade factual existente, não havendo, por parte dele intenção em enganar os interlocutores, pois, antes de tudo, incorreu em erro, acreditando piamente em suas palavras. Mais uma vez aqui é apresentada uma hipótese em que, muito facilmente e de maneira errônea, poderia ser enquadrada como mentira, mas, apesar de essa ser também uma hipótese onde o indivíduo profere falsas frases, não tendo, o falador, intenção de enganar sabendo da incongruência de suas palavras em relação à realidade, não se configura, portanto, como mentira.  

Excetuadas essas hipóteses, passemos, pois, à definição do que é a mentira.

Mentira, de acordo com Agostinho, é aquela contada por meio de discurso onde o prolator, munido de animus de enganar o destinatário de suas palavras, profere preleção em desacordo com a verdade, preleção cheia de significações falsas, de maneira deliberada, consciente e livre. Portanto, e alinhadas a essas considerações, são consideradas verdades mesmo aqueles falseamentos feito por meio de chistes, piadas, brincadeiras ou ficções, entre outros, e são consideradas mentiras aqueles discursos, ainda que verdadeiros na sua harmonia com a realidade factual, nos quais os indivíduos, achando que seu discurso é mentiroso, objetivam enganar outrem. Percebe-se que no pensamento agostiniano, mais importante que o fato do o enunciado ser ou não verdadeiro, é a crença[2]que o discursante tem na veracidade, ou não, de suas palavras proferidas, independentemente da veracidade ou não do discurso, configurando-se como mentirosa a preleção, efetuada pelo indivíduo, contaminada por asseverações nas quais expõe o contrário do que acredita.

Essa contraposição existente no discurso do mentiroso, entre o que realmente acredita ser verdade e o falseamento de suas palavras, é chamada, no pensamento agostiniano, de duplo coração, já que há incongruência no que o indivíduo acredita em relação ao que acaba por dizer.

Além das mentiras proferidas por meios dos signos da linguagem, também há a possibilidade de serem contadas mentiras através de outros meios para externar os pensamentos, como, por exemplo, gestos. Se alguém, numa hipótese fictícia, ao sofrer certa indagação que deve ser respondida apenas com “sim” ou ”não”, mover sua cabeça completando o movimento que indica exatamente o contrário daquilo que crê em seu coração – por exemplo, se a resposta for “sim” e o agente indicar com movimentos com a cabeça a resposta “não”, ou vice-versa – estará mentindo, apesar de não ter prolatado um única palavra sequer.

A mentira, ao contrário da verdade, possui diversas facetas para seu alcance. Enquanto a verdade só pode ser demonstrada de uma única forma, através do ato de externar aquilo que está de acordo com a crença interna do indivíduo, a mentira não é externada apenas com a finalidade de engano. São igualmente causadoras de discursos mentirosos a dissimulação, a omissão e a simulação, além da comissão.

Agostinho propõe uma sistematização e uma análise vanguardista desse tema, inclusive nos trazendo uma classificação dos diversos tipos de mentira, os quais são, ditas por nível crescente de gravidade, as seguintes: Mentira não prejudicial a quem quer que seja e que liberta alguém de algum prejuízo físico[3]; Mentira contada com a finalidade de obter benefício para si mesmo, sem que, com isso, prejudique quem quer que seja[4]; Mentira contada com a finalidade de se obter benefício para sim mesmo e que culmina num prejuízo a alguém, desde que não seja à sua integridade física[5]; Mentira contada para agradar pela fala doce; Mentira e enganação contadas pelo prazer de mentir, através de “meia-verdade”[6]; A mentira que contamos com o objetivo de conseguir uma vantagem para si mesmo e mais ninguém[7]; A mentira que contamos que traz consigo um malefício injusto a alguém[8]; e a mais grave mentira de todas: o charlatanismo religioso.[9]

O homem, de acordo com a filosofia agostiniana, deve manter sua vida incólume e livre desse pecado, de maneira a nunca profanar suas palavras por meio de falsidades alinhadas à intenção de enganar. Entretanto, para que se mantenha limpo desse crime, não basta que, para isso, deixe de proferir discursos mentirosos, mas deve ter ocorrido em sua vida uma transformação completa, em diversas camadas de seu ser, de forma que a mentira se mantenha longe tanto de sua boca quanto de seu coração e sua mente, não porque alguém assim o ordenou, mas porque realmente acredita com toda sua sinceridade e força nisso. Além disso, o homem deve se manter longe do desejo de mentir, pois também peca aquele que, mesmo emitindo preleções harmoniosas com suas crenças, tem em seu coração anseio pela mentira.

Em sua filosofia, como cristalinamente vislumbra-se a influência do pensamento cristão ocidental[10], a mentira é algo muito mais profundo e grave do que mera conduta desalinhada com as regras morais. Acima disso, a mentira é pecado, é atentado contra o próprio Deus, colocando, o homem que mente, a perder sua própria vida eterna. Enquanto a verdade liberta, a mentira aprisiona e escraviza aquele que dela se utiliza.[11]

Nenhuma mentira é aceita com bons olhos em sua filosofia. Mesmo aquelas mentiras “bem intencionadas”, heroicas, que visam a obtenção de resultados positivos para todos os envolvidos, devem ser rejeitadas, pois a mentira, como pecado, é má em si mesma e em toda sua essência, sendo indiferente as  circunstâncias nas quais foi proferida e a boa intencionalidade contida no coração do agente.


3 - A MENTIRA NOS DIREITOS PROCESSUAL E MATERIAL CIVIS 

Após tais exposições acerca da posição de Santo Agostinho sobre o tema da mentira, remos trazer, a título de comparação, a presença da mentira em diversas ramificações do ordenamento jurídico pátrio, para demonstrar a inaceitabilidade da mentira em nosso ordenamento, assim como ocorre no pensamento católico.

No processo civil, temos a presença de dois princípios importantíssimos, relacionados ao tema em estudo, que devem ser sempre cumpridos durante os procedimentos judiciais, a fim de que seja alcançada a máxima justiça entre as partes, que são: o princípio da boa-fé e da lealdade processual e o princípio da verdade real.

A lealdade processual, sendo consequência da prática da boa-fé pelas partes, visa proteger o processo da fraude processual, das provas dissimuladas, dos artifícios fraudulento e de toda e qualquer imoralidade.

As ofensas ao princípio da boa-fé processual estão listadas no artigo 17 do Código de Processo Civil através de rol taxativo, sendo que mentir no processo, é uma das hipóteses, como vemos a seguir:

Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: 

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; 

II - alterar a verdade dos fatos;  

 III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; 

 IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; 

Vl - provocar incidentes manifestamente infundados. 

 VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. 

 O juiz é armado pela lei processual de vários poderes para coibir a ofensa a tal princípio, podendo, inclusive, arbitrar sanção de natureza pecuniária àquela parte litigante de má-fé, a fim de que seja repreendida pela desonestidade.

O princípio da verdade real, por sua vez, expresso no artigo 131 do Código de Processo Civil, direciona a atuação do juiz, para que este sempre tenha como objetivo a busca da verdade no processo, através da análise das provas e dos fatos. Apesar de ser algo praticamente inatingível, a busca da verdade real, ou seja, daquela verdade idêntica aos fatos reais, deve ser sempre o objetivo primeiro do procedimento.

É verdade que, em alguns casos previstos na lei processual civil, há a previsão da presunção de veracidade, não sendo raro o aparecimento de sentenças fundadas em verdades formais. Entretanto, antes do juiz se ater a alguma presunção, deve buscar a verdade real primeiro, pois a lei processual confere todas as oportunidades para as partes litigantes comprovarem os fatos. Somente após terem sido tais oportunidades efetivadas, e caso não haja cumprimento do ônus probandi pelas partes, é que o juiz se valerá das tais presunções. Ou seja, o compromisso primeiro do Magistrado é de perseguir a verdade real.

3.1. O FALSO TESTEMUNHO 

Nesse instituto processual, também há a presença da discussão em relação ao dever de veracidade. Sendo dever de todos os cidadãos de colaborar com o Poder Judiciário em sua busca das verdades reais, a fim de que a justiça seja efetivada, vemos que o depoimento testemunhal não se trata de mera faculdade, mas sim de um dever, como exposto no artigo 341 do Código de Processo Civil. Sendo assim, todos que forem intimados para prestar depoimento perante o juízo a quo, devem comparecer – ressalvadas as exceções presentes no artigo 405 do Código de Processo Civil – e serem estritamente fiéis à verdade dos fatos.

Se a testemunha arrolada para prestar depoimento em determinado processo mentir acerca da realidade dos fatos, negar ou ocultar a verdade, estará cometendo o crime de falso testemunho. Tal crime está previsto no Código Penal em seu artigo 415 e prevê uma pena de um a três anos de reclusão.

3.2. A MENTIRA NO DIREITO MATERIAL CIVIL

Se no direito processual civil vimos que tanto as partes litigantes quanto aqueles auxiliares da justiça nos procedimentos jurisdicionais devem ser fiéis a verdade em todas as situações, situação parecida vemos no direito material civil, no que concerne ao dever de ser veraz sempre.

É princípio da lei material o dever de agir com boa-fé em todos os momentos, mas no Código Civil vimos esse dever de veracidade aplicado a fatos concretos.

3.3. A MENTIRA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS: A FRAUDE CONTRA CREDORES, A SIMULAÇÃO E O DOLO 

O devedor tem o dever de arcar com suas dívidas, devendo seu patrimônio ser garantia geral para o pagamento em relação aos credores. Portanto, quando o devedor desfalcar seu patrimônio de maneira maliciosa e intencional, a fim de que não haja mais bens em seu nome que poderão garantir a dívida perante os credores, estaremos diante da fraude contra credores. Como bem explica Carlos Roberto Gonçalves (pg. 449, livro 1) no trecho a seguir:

A fraude contra credores não conduz a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo. Mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros, ou seja, credores.

Assim, vemos que nesse instituto, está presente a vontade consciente do devedor em simular atos e defraudar seu patrimônio, quando já está insolvente ou quando se torna insolvente por tais atos irregulares, para que, com isso, os credores não consigam ter suas dívidas satisfeitas. Há o presente intuito de esconder, enganar, simular, para que os credores não encontrem bens para satisfazer seus créditos.

Interessantemente, a fraude contra credores trata-se de uma maneira de mentir, enganar, simular, mas difere-se da mentira “mais usual”, “mais comum” na medida em que o agente, nesse instituto, como bem disse Carlos Roberto Gonçalves, tem um intuito em sua mente e o manifesta harmonicamente com seus desejos. Nesse instituto, a mentira encontra mais uma camada, pois o agente sabe a verdade – a quantidade de seus bens que são suficientes para pagar as dívidas-, mas quer escondê-la e age com o intuito de perseguir seus almejos. Já na mentira “tradicional”, existem duas camadas: a de saber a verdade e a de exteriorizar algo diferente disso. Tratando-se, pois, a fraude contra credores de uma mentira mais elaborada.

Para que os credores se previnam desse ilícito, existe a ação pauliana, que visa a desconstituição de todos os atos maléficos praticados pelo devedor que visam a ocultação e dilapidação de seus bens. 

Já a simulação ocorre quando ambas as partes, buscando obter efeitos e aparências diferentes daqueles que seriam obtidos pelas vias corretas, emitem declaração falsa, enganosa, fingida. Tal instituto configura-se quando há conluio entre as partes a fim de “enganar terceiros ou fraudar a lei” (GONÇALVES, 481).

Sendo tal prática coibida, o negócio jurídico fruto da simulação será nulo, “mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma” (artigo 167 do Código Civil). Além disso, serão preservados os direitos de terceiros de boa-fé em face dos agentes simuladores.

O dolo, por sua vez, é aquele artifício utilizado pelo negociante a fim de enganar maliciosa e intencionalmente a outra parte, artifício este que torna o negócio jurídico anulável.

A simulação difere-se do dolo, pois neste a parte prejudicada é vítima de engano malicioso da outra parte que visa induzi-lo em erro. Ou seja, a malícia é praticada por apenas uma das partes do negócio jurídico, enquanto na simulação há o conluio entre ambas as partes.

3.4. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOS 

É sabido que o princípio da boa-fé está presente e deve ser observado em todas as ações humanas e em todas as vertentes dos direitos processual e material civis. Mas no Código Civil, vemos um exemplo concreto de sua aplicação na teoria geral dos contratos, quando, em seu artigo 422, lemos o seguinte:

Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Tal princípio exige que as partes se comportem de maneira correta em todas as fases dos contratos, tanto em suas tratativas preliminares quanto durante sua formação e cumprimento. Os contratantes devem sempre agir com honestidade, lealdade, retidão e probidade, nos moldes dos usos e costumes do homem médio, devendo ser sempre verazes e agir conforme a boa consciência.

O juiz, por sua vez, ao ser-lhe incumbido de analisar determinado contrato, deve utilizar-se de tal princípio também, a fim de dar-lhe a melhor e mais justa interpretação no caso concreto.

Há uma dificuldade, entretanto, de delimitar tal princípio de maneira efetiva e concreta, pois se reveste de ilimitadas formas e concretizações. Essa norma principiológica, não pode ser taxativamente expressa, o que é necessário para que o intérprete tenha certa liberdade de agir de maneira mais justa em cada caso.  


CONCLUSÃO 

Como visto acima, podemos concluir que o ato de mentir é inaceitável nos direitos processual e material civis no Brasil, dando, inclusive, ensejo para a aplicação tanto de sanção processual, quanto para a aplicação de sanção penal, nos casos mais graves.

Não tem como negar a influência que o pensamento católico influenciou nossas vidas de maneira profunda, inclusive causando reflexos tanto nas normas costumeiras quanto naquelas editadas pelo Estado. A não aceitabilidade da mentira foi herdada na nossa cultura, sendo claro o nosso repúdio pelo ato de mentir, mesmo diante do fato de que, muitas vezes, não somos verazes.


Notas

[1]“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo”. (Bíblia, Êxodo 20, versículo 16).

[2]Nessa mesma linha de pensamento, Agostinho inclui as opiniões de maneira que, assim como a crença errônea, se o prolator incorrer em erro expondo uma opinião, sem acreditar no que está falando, de maneira não intencional, não estará mentindo.

[3]Esta seria a mentira heroica, por assim dizer. Como exemplo disso, podemos citar a mentira que alguém profere para salvar a vida de alguém.

[4]Trata-se de mentira proferida por falta de conhecimento por parte do indivíduo acerca do assunto que discursa.

[5]Essa mentira seria aquela proferida, por exemplo, com o intuito de culpar um terceiro acerca de um erro cometido por si próprio.

[6]São, essas mentiras, aquelas prolatadas com o objetivo de agradar alguém, de falar-lhe o que é agradável aos seus ouvidos.

[7]Tal mentira configura-se como aquela da qual o indivíduo se aproveita, por exemplo, para se eximir de uma obrigação em relação ao trabalho dizendo que está doente.

[8]As mentiras desse grupo são, por exemplo, a calúnia, a difamação, a injúria, o perjúrio, o falso testemunho, a corrupção política, etc.

[9]Essa mentira, classificada como a mais repugnante, é aquela proferida por religiosos que a utilizam para angariar novas almas, sob o argumento que se pode utilizar, nessa hipótese, a mentira, pois visa um bem maior, que é trazer mais pessoas para a religião.

[10]Na bíblia, a qual se consolidou como o fundamento mais importante da religião ocidental, podemos vislumbrar diversas vezes a representação da verdade como proveniente de Deus, como algo libertador das ilusões e correntes desse mundo, enquanto a mentira, em todas as suas facetas de apresentação, é mostrada como má, proveniente de Satanás, acorrentadora, aprisionadora, praticada por aqueles que sacrificam suas vidas eternas.

[11]Pode-se fazer um paralelo com a seguinte citação da bíblia, presente no Capítulo 8 do livro do Apóstolo João, versículos 31 e 32: ”Então, disse Jesus aos judeus que haviam crido nele: “Se permanecerdes na minha Palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos. E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (grifo nosso).

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