No momento em que se discute, na reforma do Poder Judiciário, a atribuição de efeito vinculante aos precedentes jurisprudenciais dos tribunais superiores [1], imprescindível se torna uma análise criteriosa de tais decisões, a fim de evitar a cristalização de entendimentos equivocados, nascidos da massificação de demandas aparentemente semelhantes.
Exemplo eloqüente desta realidade extrai-se da indefinição quanto aos limites de competência da Justiça Federal nos crimes ambientais [2].
A ninguém é dado desconhecer que o critério básico de definição da competência criminal que o Constituinte de 1988 reservou aos juízes federais está vinculado aos atos típicos cometidos "em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral", na forma prevista no inciso IV do artigo 109 da Carta da República. [3]
Antes da edição da Lei 9605/98, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça havia consagrado, na Súmula STJ 91 [4], a competência da Justiça Federal para o conhecimento dos crimes contra a fauna.
Tal entendimento, em realidade, expressava a manutenção de precedentes do extinto Tribunal Federal de Recursos, enunciados na Súmula TFR 22.
A análise dos julgados que levaram à edição da Súmula STJ 91 (e, também, da TRF 22) torna fácil concluir que sua base de sustentação encontra-se na premissa de que os animais silvestres estariam incluídos dentre os bens da União, atraindo, então, a competência federal para o julgamento de tais atos ilícitos.
Editada a Lei 9605/98, o STJ passou a inclinar-se pelo cancelamento da Súmula, fato que se consolidou em 08/11/2000, por deliberação de sua Terceira Seção [5].
Se a premissa para a construção da Súmula STJ 91 fora a inclusão da fauna silvestre como "bem da União", para seu desfazimento argumentou-se que a atribuição de competência concorrente aos entes federativos para legislar e comum para proteger o meio ambiente teria retirado da União "a propriedade da fauna silvestre" [6], afastando a competência federal.
O cancelamento deu origem, então, a um juízo negativo, quase que instituidor de uma "Súmula 91-A", que reiteradamente exclui a competência federal para crimes ambientais, restrita esta às hipóteses de ocorrência de dano em unidade de conservação federal ou em área de domínio da União, tal como se depreende de diversas decisões do STJ [7], bem resumidas na ementa do Conflito de Competência 27.848-SP, relator o Ministro HAMILTON CARVALHIDO:
"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIMES CONTRA A FAUNA. SÚMULA 91/STJ. INAPLICABILIDADE APÓS O ADVENTO DA LEI 9.605/98. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL.
1.Conflito de competência entre as Justiças Estadual e Federal que se declaram incompetentes relativamente a inquérito policial instaurado para a apuração do crime de comércio irregular de animais silvestres.
2.Em sendo a proteção ao meio ambiente matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e inexistindo, quanto ao crimes ambientais, dispositivo constitucional ou legal expresso sobre qual a Justiça competente para o seu julgamento, tem-se que, em regra, o processo e o julgamento dos crimes ambientais é de competência da Justiça Comum Estadual.
3.Inexistindo, em princípio, qualquer lesão a bens, serviços ou interesses da União (artigo 109 da CF) afasta-se a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crimes cometidos contra o meio ambiente, aí compreendidos os delitos praticados contra a fauna e a flora.
4.Inaplicabilidade da Súmula n.º 91/STJ, editada com base na Lei 5.197/67, após o advento da Lei n.º 9.605, de fevereiro de 1998.
5.Conflito conhecido para que seja declarada a competência do Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal do Foro Regional V – São Miguel Paulista – São Paulo/SP, o suscitado."
A despeito da homenagem que se deve prestar às decisões dos Tribunais Superiores, é patente o descompasso tanto das premissas que consolidaram a Súmula STJ 91, quanto daquelas que levaram ao seu cancelamento, pois, num como noutro caso, reduzem a questão ambiental a uma interpretação patrimonialista, incompatível com a natureza dos bens tutelados.
Difícil imaginar algo mais tipicamente difuso do que o "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" [8].
Constatar a natureza difusa do bem jurídico tutelado e, ainda assim, apegar-se a padrões individualistas (como a noção de patrimônio) para a definição de competência é, além de incongruente, negar à Constituição Federal qualquer prestígio.
A discussão sobre a eventual propriedade do imóvel em que ocorrido o dano ambiental é, em regra, por tudo e em tudo, impertinente para a proteção ao meio ambiente. Ou será que o simples fato de ser proprietário de um imóvel confere a alguém a possibilidade de "provocar incêndio em mata ou floresta [9]"?
Poderá alguém, titular do domínio sobre vasta área de terra, "causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana" [10], desde que contenha tal dano aos limites de sua propriedade?
Teríamos, ao invés de avançar na proteção ao patrimônio ambiental, regredido ao pensamento individualista do início do século 20, resolvendo o tema com a visão de dominialidade?
Não é crível que seja esta a resposta e, se não o é, como, então, priorizar, para a definição de competência, o critério da "propriedade do bem", reservando-se à Justiça Federal o conhecimento apenas de fatos típicos ocorridos em áreas de domínio da União ou em unidades de conservação criadas pelo ente federal?
Se é fato que a ofensa a "bem da União" é a hipótese mais fácil de se identificar como definidora da competência federal, não é ela nem a principal, nem a única vis atrativa da competência da Justiça Federal, pois outros dois elementos podem estar mais fortemente presentes: a ofensa a serviços e a interesse da União.
A tênue linha divisória que delimita a competência jurisdicional estadual e federal é objeto de diversos embates, especialmente em situações em que presente a competência legislativa concorrente ou a competência comum dos entes federativos.
Em definição sucinta, o Ministro NELSON JOBIM ressalta que "o que visava e visa a Constituição é assegurar o conhecimento à Justiça Federal do que esteja sob a égide da União" [11].
Resta saber, portanto, se estão "sob a égide da União" situações em que haja competência concorrente ou comum de entes federativos.
Em precedente que não cuida de tema ambiental [12], o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE delineia um roteiro para a percepção da presença do interesse da União:
"Estou em que tem sido mal equacionado o problema da demarcação da competência entre a Justiça Federal e a Estadual para conhecer da ação penal contra agentes do Poder ou servidores municipais ou estaduais por desvio de verbas do orçamento da União repassadas aos Municípios ou Estados.
O problema não está exatamente em saber se a aplicação dos recursos se sujeita ou não a prestação de contas ao Tribunal de Contas da União.
O problema está em saber se a verba oriunda do orçamento da União – o que não se discute – é transferida ao Estado ou Município a título de subvenção federal para obras ou serviços de competência sua ou, ao contrário, se se cuida de repasse de recursos para aplicação em obras ou serviços de competência exclusiva dos entes federados locais – Estados ou Municípios –, ou, pelo menos, de competência comum deles e da União.
Na primeira hipótese – verba transferida do Tesouro Nacional a Estados ou Municípios para cumprir tarefas constitucionais privativamente suas – a competência da Justiça Estadual parece incontestável; a subvenção, transferida, incorpora definitivamente ao patrimônio do ente local, único lesado pelo eventual desvio.
Ao contrário, nas demais hipóteses, a verba se terá transferido para Estados ou Municípios, seja para realizar incumbência privativa da União – a eles delegada mediante convênio ou não – que deixa íntegro o interesse federal na fiel execução da tarefa delegada – ou se cuidará, por definição constitucional (CF, art. 23), de interesse comum, no qual, é óbvio, propiciados recursos da União, remanesce o seu interesse na aplicação do numerário."
O fato de haver competência comum (ou concorrente), portanto, longe de afastar a atuação da Justiça Federal, serve como motivo de fixação de sua competência, desde que, por certo, haja demonstração objetiva do interesse federal [13]; condição que pode estar demonstrada, por exemplo, pelo exercício regular do poder de fiscalização [14], tal como já decidiu (e, com especificidades, continua decidindo) o Supremo Tribunal Federal:
"Recurso Extraordinário. Conflito de Competência.
2. É da Justiça Federal a competência para processar e julgar crime de falsificação de documentos, objetivando ingresso de aluno em instituição de ensino superior, embora particular.
3. Crime em detrimento de interesse e serviço da União Federal. Fiscalização federal em estabelecimento de ensino superior.
4. Conflito de competência caracterizado.
5. Recurso extraordinário conhecido, por haver o acórdão ofendido o artigo 109, IV, da Constituição, e provido, para declarar-se a competência da Justiça Federal." [15]
"Informativo STF 63
Conflito Aparente de Normas e Competência
O exercício da medicina por médico cujo registro tenha sido cassado por decisão do órgão de fiscalização profissional competente (Conselho Regional de Medicina) configura o crime de exercício de atividade com infração de decisão administrativa (CP, art. 205), não o de exercício ilegal da medicina (CP, art. 282). Por outro lado, a competência para o julgamento desse crime - cuja caracterização independe da habitualidade da conduta - é da Justiça Federal, especialmente quando praticado contra decisão de órgão federal (como são as autarquias incumbidas da fiscalização das profissões), de acordo com os incisos IV e VI do art. 109 da CF ("Aos juízes federais compete processar e julgar: IV -... as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas..."; "VI - os crimes contra a organização do trabalho..."). Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu pedido de habeas corpus impetrado contra decisão do TRF da 3ª Região. HC 74.826-SP, rel. Min. Sydney Sanches, 11.3.97." [16]
"Informativo STF 149
Crimes Contra Silvícolas
A Turma deu provimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal para, reformando acórdão do TRF da 1ª Região, afirmar a competência da justiça federal para julgar crimes de abuso de autoridade e de lesões corporais praticados por policiais militares contra silvícola, no interior de reserva indígena. Considerou-se que o caso se enquadra no art. 109, IV e XI, da CF ("Aos juízes federais compete processar e julgar:... IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;... XI - a disputa sobre direitos indígenas."), porquanto configurado o atentado ao serviço da União de proteção ao índio, sendo os delitos cometidos por policiais que, em princípio, deveriam prestar assistência à comunidade indígena. Determinou-se a remessa dos autos à Seção Judiciária do Estado de Roraima. Precedente citado: RECr 192.473-RR (DJU de 29.8.97). RECr 206.608-RR, rel. Min. Néri da Silveira, 11.5.99." [17]
Ou, em passado mais distante:
"SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ATUAÇÃO COMO INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, SEM ESTAR DEVIDAMENTE AUTORIZADO PELO BANCO CENTRAL (LEI N.º 4595/64, ARTIGO 44, §7º). Crime praticado em detrimento de serviço ou interesse da União ou de entidade autárquica. Competência da Justiça Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido". [18]
Assim, mesmo presente a competência concorrente e comum para a proteção ambiental e ainda que não se tenha como "bem da União" a fauna silvestre e a flora, se houver campo para fiscalização administrativa a ser exercida por autarquia federal, inegável será o interesse federal e a ofensa a serviço de ente vinculado à União.
Este, aliás, o entendimento recentemente confirmado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. PESSOA JURÍDICA: IMPOSSIBILIDADE DE SUA FIGURAÇÃO NA LIDE COMO PACIENTE. DILAÇÃO PROBATÓRIA: DESCABIMENTO NA VIA ESTREITA DO HABEAS CORPUS.
I - É a Justiça Federal competente para processo e julgamento do feito cujo fato ensejador da persecução penal foi a constatação do IBAMA de que o acusado ao inobservar regulamentos administrativos daquele órgão, incorreu na prática de ilícito penal.
II - O habeas corpus é instituto restrito à liberdade física e individual, não se prestando para atender reclamos de pessoa jurídica na qualidade de paciente.
III - A necessidade de ampla dilação probatória inviabiliza a concessão de habeas corpus.
IV - Ordem denegada." [19]
Merece transcrição a fundamentação expendida pelo Juiz CÂNDIDO RIBEIRO:
"Preliminarmente, tenho que a Justiça Federal é competente para processar e julgar os crimes ambientais, pois o meio ambiente constitui interesse da União Federal, o que gera a aplicação do disposto no art. 109, IV, da Constituição Federal.
E nem poderia ser diferente, pois, na forma do art. 225, caput, da Constituição Federal, "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
Ora, resulta patente que o direito ao meio ambiente, conforme previsto no mencionado art. 225, caput, da Constituição Federal, vai além das fronteiras dos Estados-Membros da Federação, para caracterizar o interesse da União Federal, circunstância essa que firma a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação penal questionada neste writ." [20] (21)
A questão, assim posta, ganha outra dimensão, que não desconsidera a competência comum para a fiscalização ou a concorrente para legislar, mas reconhece na atuação institucional de autarquia federal a inequívoca demonstração de interesse federal e de ofensa a serviço prestado pela União.
A própria jurisprudência do STJ não despreza a possibilidade de que, em sede penal ambiental, possa ocorrer ofensa a interesse ou serviço federal, como se observa de fórmula genericamente repetida, que menciona que, nos diversos precedentes, não se demonstrou, "em princípio", tal situação.
E, aqui, reside um dos principais perigos da exegese jurisprudencial (que será potencializada com a atribuição de força vinculante a decisões de Tribunais Superiores): a conhecida falta de rigor técnico na análise do precedente.
Acostumados a um sistema continental do Direito, em que a jurisprudência não adquire papel preponderante na solução de conflitos, e distanciados do sistema do stare decisis, tão caro aos anglo-saxões [22], o sistema judiciário brasileiro [23] não desenvolveu técnicas adequadas de interpretação jurisprudencial [24].
Assim, enquanto as faculdades norte-americanas de Direito dedicam valiosas horas ao ensino da metodologia de análise das decisões de seus tribunais, utilizando-se de critérios científicos de catalogação e fornecendo instrumental suficiente para que seus universitários aprendam a demonstrar os pontos de similitude entre o paradigma e a hipótese para a qual se pretende idêntica decisão, no Brasil, a citação se resume à compilação de ementas, sem maiores cuidados na seleção da jurisprudência tida como emblemática e capaz de solucionar a demanda.
Não é raro que as citações, além de parciais, indiquem precedentes cujas premissas em nada se relacionam com a lide em que se pretende fazer incidir a decisão em outro feito proferida.
Certo é que o próprio Superior Tribunal de Justiça, embora tenha estabelecido "cláusula de escape" [25] em suas decisões, não vem observando com critério as diferenças entre as situações que lhe são postas [26].
Sem a intenção de ser exaustivo na análise, busquemos, nos sintéticos relatórios constantes de algumas destas decisões [27], a comprovação do que se acaba de afirmar.
Mereceram idêntica decisão, com um mesmo fundamento e ementa semelhantes, as seguintes hipóteses fáticas:
– a perfuração de poços, para a exploração dos serviços de "pesque e pague", em área de preservação ambiental permanente, prevista no artigo 20 da Lei 4771/65, que assim considera a vegetação natural próxima a nascentes ou cursos d’água (CC 28729/MG, Fischer);
– comércio ilegal de animais silvestres (CC 27848/SP, Carvalhido e CC 31545/MG, Fischer);
– lesão causada em menor que teria queimado "seus pés ao pisar em material depositado no quintal de sua residência", consistente em "resíduo de caldeira", ali colocado por um ex-empregado de uma cooperativa de agricultores". Tal material, resultante da queima de bagaço da cana-de-açúcar teria utilização como adubo (CC 20928/SP, Fernando Gonçalves);
– lesão causada a um cavalo, ferido brutalmente a machadadas, porque teria se recusado a andar (CC 27198/SC, Fischer);
– pesca com petrechos proibidos (CC 27198/SC, Fischer);
– descumprimento de compromisso de recuperação ambiental, sem que do acórdão conste o órgão com o qual foi firmado tal compromisso, sendo impossível aferir sua natureza municipal, estadual ou federal (CC 29735/SP, Fischer);
– corte de 27 cabeças de palmito in natura, extraído de Unidade de Conservação Municipal, (CC 28360/SC, Dipp);
– corte de árvores em Unidade de Conservação instituída pelo Distrito Federal (CC 25720/DF, Fontes de Alencar);
– comercialização irregular de carvão mineral, desacompanhado da autorização competente (CC 30540/MG, Fischer);
– limpeza de pastagem (CC 14764/MS, Fischer);
– desmatamento, com queimada e cozimento de carvão, sem a devida autorização legal (CC 30284/MG, Scartezzini);
– transporte de madeira sem a devida autorização legal (CC 24975/RS, Dipp, CC 25754/SC, Fontes de Alencar, e CC 27591/RO, Gonçalves).
A diversidade de situações descritas está a demonstrar que não se pode, pura e simplesmente, fazer a autômata aplicação de um precedente construído em bases bastantes específicas: a ausência de lesão a bem, interesse ou serviço federal.
Possível concluir que:
1 - na lesão causada a menor em razão de indevida armazenagem de resíduo de caldeira, nos ferimentos suportados por um cavalo e no dano causado em unidade de conservação instituída por ente municipal, estadual ou distrital não se identifica a presença de vis atrativa da atuação da Justiça Federal;
2 - na perfuração de poço em área de preservação permanente, no descumprimento de compromisso de recuperação ambiental, na pesca com petrecho proibido ou, ainda, no comércio de animais silvestres não se pode, sem análise circunstanciada, afastar o interesse federal, que pode decorrer da eventual necessidade de licenciamento ambiental, da participação da autarquia ambiental federal no compromisso de recuperação, do local em que realizada a pesca ou da origem e destino dos animais silvestres [28];
3 – o desmatamento, a comercialização e transporte de produtos florestais sem autorização legal, a ser concedida pelo IBAMA, atrai, necessariamente, a competência federal, pois a conduta típica ofende a serviço federal.
Mesmo sem discutir se o tipo penal previsto no artigo 46 da Lei 9605/98 é crime de mera conduta ou de perigo (ou, até, se exige a ocorrência efetiva de dano), não se pode descuidar do cerne da conduta, expresso pelos verbos receber ou adquirir, para fins comerciais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente ou, na forma do parágrafo único, vender, expor à venda, ter em depósito, transportar ou guardar madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente.
Se o tipo penal tem como elemento a verificação da ocorrência, ou não, de atividade administrativa e se esta atividade exigida compete a um órgão federal, como negar o interesse ou a ofensa a serviço da União?
Se o documento que deve acompanhar o produto de origem vegetal é decorrência de atuação administrativa da União, se a lei penal estabeleceu que a inexistência de tal documento configura um crime, como afirmar "inexistir, em princípio, ofensa a interesse ou serviço da União"?
O tipo penal protege, exatamente, o serviço prestado pelo IBAMA (a quem compete autorizar o desmatamento, disciplinando o destino a ser dado à madeira derrubada, controlar o comércio de produtos de origem florestal, para tanto se utilizando da ATPF – Autorização para Transporte de Produtos Florestais) e, portanto, se não existe tal atividade administrativa, o que se ofende, o que se fere, é, justamente, a atuação da União na defesa do meio ambiente.
Reconhecendo esta realidade e adotando tais argumentos, decisão recente do próprio STJ [29], relatada pelo Ministro VICENTE LEAL, reconheceu a competência federal:
"PENAL. CRIME AMBIENTAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. POSSÍVEL LESÃO A INTERESSE DE AUTARQUIA FEDERAL.
- Este Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento no sentido de que os crimes ambientais devem ser julgados, em regra, pela Justiça Estadual, surgindo a competência da Justiça Federal apenas quando houver configurado, em tese, violação a bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.
- Instaurada a ação penal com base em auto de apreensão lavrado por agentes do IBAMA, sendo autuados o paciente e sua empresa pelo transporte de madeira sem a devida autorização da autarquia federal, resulta presente a possível ofensa a interesse da mesma entidade pública, o que atrai a competência da Justiça Federal para processamento do feito. Habeas-corpus denegado. Liminar revogada."
Como se vê, talvez esteja em curso uma saudável mudança no rígido posicionamento do STJ, ainda não proclamada ou admitida por suas Turmas. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no final de 2001, relatada pelo Ministro MOREIRA ALVES [30], acabou por negar competência à Justiça Federal em situação em tudo semelhante.
O aresto está assim ementado:
"Competência. Crime previsto no artigo 46, parágrafo único, da Lei nº 9.605/98. Depósito de madeira nativa proveniente da Mata Atlântica. Artigo 225, § 4º, da Constituição Federal.
- Não é a Mata Atlântica, que integra o patrimônio nacional a que alude o artigo 225, § 4º, da Constituição Federal, bem da União.
- Por outro lado, o interesse da União para que ocorra a competência da Justiça Federal prevista no artigo 109, IV, da Carta Magna tem de ser direto e específico, e não, como ocorre no caso, interesse genérico da coletividade, embora aí também incluído genericamente o interesse da União.
– Conseqüentemente, a competência, no caso, é da Justiça Comum estadual.
Recurso extraordinário não conhecido."
Três os argumentos centrais que se pode extrair do voto proferido pelo Ministro MOREIRA ALVES:
a)o preceito contido no §4° do artigo 225 da Constituição Federal não elevou, por si só [31], à condição de bem da União os imóveis localizados nos biomas ali mencionados [32];
b)há interesse meramente genérico da União na preservação do meio ambiente;
c)a fiscalização das atividades degradadoras, de per si, não atrai a competência federal.
No que toca com o viés patrimonialista a que se refere o primeiro argumento, correta a decisão do Supremo Tribunal Federal, já que a noção de "patrimônio nacional", referida no §4° do artigo 225 da CR/88, embora expresse uma clara opção do Constituinte na defesa de porções específicas da riqueza ambiental brasileira, não tem o condão de incorporar tais áreas ao patrimônio da União, em ampliação ao rol constante do artigo 20 da Carta Fundamental.
O segundo argumento merece ser visto com cuidado especial, já que, como mencionado anteriormente, a peculiar distribuição de competência (legislativa e material) entre os entes federativos na questão ambiental não implica no automático afastamento do interesse federal, situação que há de ser aferida pontualmente.
A questão pendente resume-se, então, a aferir qual a importância, para a fixação da competência jurisdicional, do exercício da atividade administrativa (regulatória e fiscalizadora) desempenhada por autarquia federal ambiental.
Neste ponto, assim se manifesta o Ministro MOREIRA ALVES:
"Por fim, a circunstância de caber ao IBAMA a fiscalização da utilização da Mata Atlântica, como integrante do patrimônio nacional, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais, não caracteriza interesse da União capaz de dar competência à Justiça Federal para processar e julgar o crime previsto no artigo 46, parágrafo único, da Lei 9605/98, e que teria sido cometido em maio de 1998, à semelhança do que já decidiu esta Corte ao julgar o RE 89.946 (RTJ 95/297) com relação ao delito previsto no artigo 253 do Código Penal (cujo sujeito passivo é também a coletividade), "verbis":
"Competência. Explosivos (posse). Justiça comum. Código Penal, art. 253. A fiscalização da produção e comércio de substâncias e engenhos explosivos atribuída ao Exército não tem o efeito de fazer recair o crime capitulado no art. 253 do Código Penal na competência da Justiça Federal. Recurso extraordinário não conhecido."
Em face do exposto, e estando correto o acórdão recorrido, que deu pela competência da Justiça Comum estadual, não conheço do presente recurso."
Alguns reparos merece a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Em primeiro lugar, não se trata "de caber ao IBAMA a fiscalização da utilização da Mata Atlântica, como integrante do patrimônio nacional, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais", mas, sim, de ser incumbência específica da autarquia ambiental o controle e fiscalização de toda uma atividade empresarial, degradante em sua essência (a atividade de exploração madeireira).
Convém lembrar que, no Brasil, a legalidade da atividade florestal decorre da obtenção, junto ao IBAMA, de documentos que dêem suporte à origem da matéria-prima, cabendo aos demais entes federados, quando existente legislação ambiental específica, o controle das atividades acessórias, tais como o licenciamento das serrarias, tendo como foco o impacto provocado por estas e, não, aquele decorrente propriamente da extração da madeira [33].
A atividade administrativa, então, não é secundária, afastada dos fatos, denotadora de um interesse genérico, e, sim, diretamente vinculada à conduta cujo desrespeito veio a ser tipificado na Lei 9605/98, tal como bem o notou o Ministro VICENTE LEAL no julgamento do HC 18366.
De outro lado, o precedente trazido pelo Ministro MOREIRA ALVES não expressa situação fática semelhante àquela de que ora se cuida: aqui, cuida-se do desrespeito, direto, por quem deveria, obrigatoriamente, cumprir a norma administrativa (usado como elemento de tipicidade – licença outorgada pela autoridade competente); no precedente usado como paradigma, o autor do fato não estava diretamente vinculado à atividade fiscalizatória do Exército (um empregado que desvia pequena quantidade de explosivo de empresa na qual trabalhava - esta, sim, sujeita ao poder fiscalizatório).
Não bastassem os julgados antes mencionados, certo é que mais próximas dos fatos se encontram duas outras decisões da própria Suprema Corte brasileira, nas quais se discute a competência criminal em hipóteses de competência material concorrente:
"- Recurso extraordinário. 2. Ação penal. Crime de peculato, em face de desvio, no âmbito estadual, de dotações provenientes do orçamento da União Federal, mediante convênio, e destinadas ao Sistema Único de Saúde - SUS. 3. A competência originária para o processo e julgamento de crime resultante de desvio, em Repartição estadual, de recursos oriundos do Sistema Único de Saúde - SUS, é da Justiça Federal, a teor do art. 109, IV, da Constituição. 4. Além do interesse inequívoco da União Federal, na espécie, em se cogitando de recursos repassados ao Estado, os crimes, no caso, são também em detrimento de serviços federais, pois a estes incumbe não só a distribuição dos recursos, mas ainda a supervisão de sua regular aplicação, inclusive com auditorias no plano dos Estados. 5. Constituição Federal de 1988, arts. 198, parágrafo único, e 71, e Lei Federal nº 8080, de 19.09.1990, arts. 4º, 31, 32, § 2º, 33 e § 4º. 6. Recurso extraordinário conhecido e provido, para reconhecer a competência de Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pelo envolvimento de ex-Secretário estadual de Saúde." [34] (STF, Pleno, RECR-196982, Relator Min. NERI DA SILVEIRA, DJ 27-06-97, p. 30247, j. 20/02/1997)
"I. Competência: Justiça Federal: desvio por Prefeito de verbas oriundas da quota federal do produto da arrecadação do salário-educação. A quota federal do produto da arrecadação do salário- educação é receita da União, destinada, embora, em parte, à assistência financeira aos sistemas locais de ensino fundamental, na razão da carência de recursos próprios, do menor desenvolvimento e dos maiores déficits de escolaridade infantil (Dl. 1422/75, art. 2º, § 1º, b): não se cuida, assim, de subsídios discricionariamente concedidos pela União aos Municípios, mas de realizar a União uma função que é sua, a que o texto constitucional vigente chama "função redistributiva e supletiva" em matéria de educação, "de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade de ensino": no desvio de recursos dela advindos, ainda que imputável a agentes políticos ou servidores locais, o que se tem é, pelo menos, crime em detrimento de um serviço da União, a ditar a competência repressiva da Justiça Federal.
II - omissis." (STF, Primeira Turma, HC-74788, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, DJ 12-09-97, p. 43714, j. 27/06/1997)
Este, por fim, no que diz especificamente com a tutela penal ambiental, já era o entendimento do STF, como expressa decisão plenária, relatada pelo Ministro RAFAEL MAYER [35], assim ementada:
"CONTRAVENÇÃO FLORESTAL. CORTE DE ÁRVORE EM FLORESTA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 125, IV, DA CONSTITUIÇÃO.
É competente a Justiça Federal para proceder nas contravenções previstas no Código Florestal (art. 26, caput, "a", "b" e "i" da Lei 4771/65), sendo manifesto que o delito afeta o interesse da União e vai em detrimento do serviço de autarquia federal (IBDF). Recurso de habeas corpus a que se dá provimento em parte."
Expressou a Suprema Corte, então:
"Essa fiscalização da União se faz, aliás, de maneira irrestrita, com relação a todas as matérias pertinentes ao regime de preservação da flora, dito, como está, no art. 22, que ela "fiscalizará diretamente, pelo órgão executivo específico do Ministério da Agricultura, ou em convênio com os Estados e Municípios, a aplicação das normas deste Código, podendo, para tanto, criar os serviços indispensáveis (art. 22).
Esse órgão específico, aí previsto, é o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, criado pelo Decreto-lei n.º 289/67, com os consectários poderes administrativos.
Ora, as práticas contravencionais imputadas aos pacientes residem no desmatamento de florestas naturais, de preservação permanente, para a implantação de um loteamento, sem que se tenha munido de prévia e indispensável autorização do IBDF, competente para concedê-la.
Face a isso, é irrecusável que a contravenção afeta esfera de interesse da União e vai em detrimento do próprio serviço da autarquia federal. Competente é, portanto, a Justiça Federal para proceder."
No geral, inalterado o quadro fático em que proferida a decisão da Suprema Corte, que não cogitava de pertencer a flora à União e, sim, da condição de uma autarquia federal como ente fiscalizador do manejo florestal, situação que ainda hoje subsiste, uma vez que tal ofício incumbe ao IBAMA, sucessor do IBDF.
Equivocada, então, a decisão proferida no julgamento do RE 300244, que relega a segundo plano a atividade reguladora e fiscalizatória desenvolvida pelo IBAMA, desprezando, então, a ocorrência de uma das hipóteses de atração da competência da Justiça Federal.
Em conclusão, se a jurisprudência dos Tribunais Superiores continuar a desprezar o interesse e os serviços prestados pela União [36], estar-se-á contrariando a Constituição Federal e incentivando o uso incorreto dos precedentes, o que dará ao instituto do efeito vinculante uma nefasta aplicação.