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O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

3. Conceito de Ações Afirmativas

As ações afirmativas, como bem as define JOAQUIM B. BARBOSA GOMES,

"consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física." (22)

Concebidas originariamente nos Estados Unidos como forma de enfrentamento do desemprego de minorias étnicas, tais políticas discriminatórias positivas, impostas ou incentivadas pelo Poder Público, rasgam o véu de inocência do Estado Liberal ao determinar que fatores antes vistos como propensos à discriminação negativa podem ser convertidos em focos de ação imediata de proposições promoventes da igualdade material.

A conclusão imediata da extensão em que se formula tal conceito exclui, preliminarmente, um engodo comum: o de que a ação afirmativa é, necessariamente, sinônimo de quotas mínimas para a participação de minorias.

Com efeito, é certo que as quotas se constituem na forma mais radical de ação afirmativa e, possivelmente, na mais polêmica, mas também é correto que existem diversas outras medidas de promoção capazes de desempenhar o papel de instrumento de realização do princípio da igualdade material tais como incentivos fiscais (e outras sanções promocionais, tais como aumento de pontuação em licitações) a empresas que favoreçam a contratação multiracial de empregados.

Do mesmo modo, ação afirmativa não se confunde com ação estatal. Programas desenvolvidos por particulares podem partilhar o mesmo escopo de superação de desigualdade.

3.1. Fundamentos Constitucionais da Ação Afirmativa

A Constituição brasileira é pródiga em dispositivos que não só possibilitam a adoção de ações afirmativas por parte do Estado e de particulares, mas de fato criam verdadeiro mandamento de sua implementação sob pena de inconstitucionalidade por omissão. A adoção do princípio da igualdade material, a par do prestígio da igualdade formal cristalizada na fórmula do art. 5o, I, não poderia ser mais explícita.

Logo no seu preâmbulo, preconizavam os constituintes a instituição de um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, e a promover a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A mensagem é clara no sentido do próprio reconhecimento da existência das desigualdades e do dever de combatê-las. Trata-se de um fato normativamente presumido, portanto, e malquisto.

Impende, também, destacar que, pouco adiante, o art. 3o, que define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, chega a ser redundante de tão enfático ao consignar tanto a redução das desigualdades sociais (inciso III) e regionais como a erradicação da pobreza e marginalização, de um lado, e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, de outro (inciso IV). Também o art. 170 da Constituição reforça, uma vez mais, o objetivo de erradicação da desigualdade já manifestado nos objetivos da República no seu inciso VII.

Com base nesses fundamentos, a professora CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA mostra que, não obstante tenha o princípio da igualdade sido uma constante em todos os textos consitucionais brasileiros, é notável que, na Constituição de 1988, atingiu a sua máxima dimensão, criando-se, na sua feliz expressão, uma nova isonomia, mais rigorosa e diretamente relacionada à igualdade no sentido material que descreve. Em suas palavras:

"Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional." (23)

Quis, no entanto, o constituinte ser ainda mais explícito e criou mandamentos específicos de legislar em favor de pessoas portadoras de deficiências físicas, a fim de garantir-lhes uma representatividade mínima no serviço público, a teor do que dispõe o art. 37, VIII (24) e, assim, iniciar uma política distributiva a fim de resgatá-los do processo histórico de exclusão e inseri-los em um dos mais triviais espaços públicos da nação.

A par disso, atento para as disparidades salariais no mercado de trabalho, determinou, ainda, no art. 7o, XX, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.

Para as pequenas empresas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País, mais um tratamento diferenciado, consentâneo com a sua fragilidade no mercado competitivo: o art. 170, IX, cria para o legislador ordinário o dever de favorecê-las.

Enfim, a própria topologia do princípio da igualdade, que encabeça o rol dos direitos fundamentais, corrobora aquela que foi, senão a maior, pelo menos a mais enfática preocupação do constituinte brasileiro: a promoção da igualdade, seja por meio da punição exemplar do racismo, com tratamento severo processual, cominando-lhe a imprescritibilidade e a insuscetibilidade de fiança, seja por meio do favorecimento de grupos excluídos das posições de decisão.

Nesse tópico, faz-se mister, outrossim, responder ao argumento que se denomina doravante a falácia da taxatividade.

Com efeito, o intérprete precipitado poderia, em uma linha reducionista, argumentar que, quando a Constituição instituiu as ações afirmativas, fê-lo taxativamente, isto é, todas as possíveis ações afirmativas seriam apenas aquelas expressamente postas no texto constitucional. Toda espécie legislativa emanada do Legislativo constituído que desbordasse das hipóteses mencionadas pelo texto seria, pois, inconstitucional, por afronta ao princípio da isonomia formal insculpido no art. 5o, I.

Crê-se que tal argumento é uma camisa-de-força que não cabe no art. 3o da Constituição, não se harmoniza com o art. 170, nem com o controle de constitucionalidade por omissão delineado pioneiramente em 1988 por meio de instrumentos como o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ademais, não se compatibiliza com a técnica de limitação dos direitos fundamentais adotada pela Constituição Brasileira no art. 5o, II, nem com a hermenêutica de princípios e a lógica da ponderação. Não se coaduna, por fim, com qualquer teoria que enxergue o direito como fenômeno interpretativo, no sentido que DWORKIN (25) dá à expressão.

3.2. O Problema das Quotas e as Objeções às Ações Afirmativas

As quotas mínimas obrigatórias reservadas para grupos minoritários são, a um só tempo, a forma mais radical, mais polêmica e mais difundida de ação afirmativa.

De fato, o mecanismo de inclusão das minorias em espaços públicos ou privados por meio de quotas consiste em uma via de mão-dupla, que determina, necessariamente, a exclusão de membros pertencentes a grupos não minoritários. Tal exclusão gera o problema de se saber se a implementação de quotas afrontaria o princípio da igualdade formal, i.e, se, por via oblíqua, geraria efeitos de discriminação reversa.

A situação, de fato, contém um paradoxo, pois, para implementar-se o princípio da igualdade material e aplicar um critério de justiça distributiva capaz de reverter, no plano dos fatos, os efeitos presentes de uma discriminação pretérita, a solução aventada é a de reduzir as chances de acesso de integrantes da maioria, pelo simples fato de pertencerem a ela. Com isso, há no mínimo uma aparente violação ao princípio da igualdade formal, que precisa ser analisada no caso concreto segundo o mecanismo de ponderação de princípios para que se possa saber se a medida restritiva da igualdade formal é aprovada no teste constitucional da proporcionalidade.

Variante da indagação referida foi batizada pelo escritor americano FISCUS (26) de argumento das pessoas inocentes (innocent persons argument, na sua terminologia). Tal argumento, radicalmente oposto a qualquer medida de quotas, traduz-se em que pessoas integrantes da maioria (racial, religiosa ou fundada em qualquer critério que indique uma discriminação historicamente relevante) não necessariamente culpadas pela discriminação sofrida no passado por grupos minoritários acabam, por um meio indireto, sendo responsabilizadas diretamente no presente e tendo oportunidades diminuídas em função da reserva minoritária.

De antemão, deve-se esclarecer que é difícil, senão impossível, dar uma resposta teórica abstrata à questão da constitucionalidade das quotas. Isso dependerá de qual o critério discriminatório escolhido, da relação instrumental entre a discriminação efetuada e o fim lícito perseguido, da necessidade da restrição, de sua adequação ao escopo a que se presta e até mesmo da intensidade da reserva feita.

O que se pode dizer é que, em determinadas circunstâncias, quando houver um passado incontroverso de discriminação a um determinado grupo, as quotas poderão funcionar como medidas estritamente necessárias para a solução de um problema de isonomia atual e, segundo uma lógica da ponderação, serão compatíveis com o princípio da igualdade, ainda que haja uma constrição da idéia de igualdade formal.

No entanto, embora a referência ao programa concreto de ação afirmativa seja inevitável, é possível divisar alguns critérios úteis para a análise do teste da proporcionalidade acima referido.

Destarte, se o critério discriminatório não se basear em uma discriminação pretérita de um grupo definido que surta efeitos no presente, será então inconstitucional. A utilidade dessa regra é imensa pois poderá, com margem razoável de certeza, excluir a possibilidade da adoção de quotas com parâmetros visivelmente arbitrários. Além disso, o parâmetro de discriminação pretérita e histórica com efeitos presentes pode servir como valioso instrumento de controle da política afirmativa implementada ao longo do tempo, pois, malgrado originariamente tenha a medida sido constitucional, tornar-se-á inconstitucional supervenientemente a partir do momento em que, por dados empíricos como a estatística e os costumes, seja possível constatar a implementação da igualdade material e mostrar que a discriminação pretérita foi sanada.

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Tal idéia, no que tange à definição exata do grupo a ser beneficiado, encontrou ressonância jurisprudencial nos Estados Unidos. Com efeito, FISCUS relata que, em 1989, no julgamento do caso City of Richmond versus J. A Croson Company, decidido pelo voto-desempate do Ministro Anthony Kennedy, a Suprema Corte americana declarou inconstitucional postura municipal que canalizava 30% do orçamento público da construção civil para empresas contratadas que fossem de propriedade de integrantes de minoria. Note-se que a maioria do citado tribunal fez questão de ressaltar que ações afirmativas só podem ser justificadas se houver ocorrido, no passado, discriminação a grupos singularizados e identificados a que se aplique o "remédio" concebido. Destaca, ainda, que antes de tal julgamento, havia dúvidas se um critério genérico poderia ser utilizado, nos seguintes termos:

"Previously, it had been uncertain whether a general racial proportionality might be used as a benchmark and/or justification for affirmative action quotas in particular cases. The Richmond case signaled, more unambiguously than any early case had, the Court´s antipathy to general racial proportionality, either as a benchmark or as a justification for any given affirmative action plan." (27)

Outros critérios podem ainda ser destacados. Se, para o mesmo fim lícito de equiparação material, houver outras medidas adequadas que tornem dispensáveis as quotas, assim também serão elas incompatíveis com o princípio da igualdade, porque não serão necessárias (28).

Por fim, se o critério discriminatório proposto, em associação com a quota mínima, eliminar peremptoriamente a possibilidade de concorrência de membros da maioria em quaisquer circunstâncias, não será também lícito. Figure-se exemplo no qual concurso público para uma única vaga tenha reserva de quotas de 20% para pessoas portadoras de deficiência física. É claro que, em tal caso, a reserva de pelo menos uma vaga para os concorrentes com tais características excluirá qualquer possibilidade de competição dos integrantes da maioria. Assim, será flagrante a inconstitucionalidade da reserva.

FISCUS destaca, ainda, que será lícito que a maioria suporte algum ônus ou sacrifício para que a igualdade material seja implementada. Isso, no entanto, não significa que qualquer ônus seja tolerável. Em suas palavras,

"The most distinguishing characteristic of this affirmative action jurisprudence is that only ‘some of the burden’ may constitutionally be placed on these ‘innocent persons’. For these justices, affirmative action was acceptable in hiring but not in firing." (29)

Referido autor salienta, ainda, que a Suprema Corte americana tem visto com antipatia a idéia de uma sociedade em que, demograficamente, houvesse uma expressão perfeita do censo populacional em termos relativos ou percentuais. O objetivo, como observa DWORKIN (30), é implementar uma discriminação positiva que, ao longo do tempo, torne o critério passível de discriminação menos relevante. Cite-se o preciso trecho:

"Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente, dividida em grupos raciais e étnicos, cada um deles, como grupo, com direito a uma parcela proporcional de recursos, carreiras ou oportunidades. Essa é uma análise incorreta. A sociedade norte-americana, hoje, é uma sociedade racialmente consciente; essa é a conseqüência inevitável e evidente de uma história de escravidão, repressão e preconceito. (...) Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nesessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte-americana, como um todo, é racialmente consciente."

Referido autor aludia, em seu texto, à discriminação positiva do caso BAKKE, mas sua conclusão pode ser generalizada em face do princípio do pluralismo. A implementação de quotas, portanto, só se justifica se temporária, destinada a corrigir uma distorção e a fazer com que o critério discriminatório, ao longo do tempo, seja dissolvido.

3.3. Ação Afirmativa no Direito Brasileiro

Analisaram-se anteriormente os fundamentos constitucionais da ação afirmativa. Cuidar-se-á, ainda, das políticas afirmativas que se vêm implementando em nível infraconsticional de legislação, com destaque para duas formas de ação afirmativa que foram extremamente caras ao constituinte brasileiro: a ação afirmativa de gênero e a ação afirmativa de raça.

3.3.1. Ação Afirmativa e Gênero

A Constituição determinou a igualdade de direito entre homens e mulheres em direitos e obrigações. Seja por meio da proteção do mercado de trabalho da mulher nos termos de lei, seja da instituição de uma família diárquica na qual o sexo não determina relações de poder, o intuito do constituinte foi o de promover a cláusula da igualdade material, sem se limitar a vedar as desigualdades formais.

Nesse particular, no direito interno, têm sido elaborados projetos de lei e leis ordinárias com o fim de igualar oportunidades discrepantes debitadas ao passado patriarcal da família brasileira. Outrossim, o Brasil celebrou, no plano internacional (31), a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (32), que, em dispositivo expresso, aduz não existir discriminação, no sentido negativo da palavra, na implementação de políticas públicas compensatórias da discriminação de gênero. Nessa convenção, avultam sobretudo as preocupações da comunidade internacional para a discriminação em dois espaços, o das relações de trabalho e o da representação política.

No que tange às relações de trabalho, vale dizer que, até o presente momento, não houve regulamentação infraconstitucional do art. 7o, XX, da Constiuição, que determina a adoção de incentivos para a proteção do mercado de trabalho da mulher. Configura-se, desse modo, relevante omissão inconstitucional, que pode ser controlada por meio de mandado de injunção e ação declaratória de inconstitucinalidade por omissão legislativa.

MÔNICA MELO informa que existem quatro projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com esse escopo, a saber, PL. 2.417/89, PL 382/91, PL 3.520/89 e PL 147/95. De todos esses, destaca o primeiro, de autoria da Deputada Federal Rita Camata, que dispõe sobre a concessão de incentivos fiscais às pessoas jurídicas que contratem mão-de-obra feminina. De fato, é feliz a proposta:

"O Projeto de Lei n.º 2.417/89 propõe que as pessoas jurídicas que contarem com mais de cinqüenta empregados poderão abater de seu lucro operacional, para fins de imposto de Renda, até 30% (trinta por cento) do montante de salários pagos, no ano-base, a empregados do sexo feminino, sempre que, comprovadamente, apliquem, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) do valor abatido em treinamento e qualificação de mão-de-obra por elas empregadas." (33)

Registra referida autora, outrossim, que existe substitutivo a este projeto de lei que acrescenta, para usufruto do benefício, a condição de haver, no quadro de empregados da empresa, número de mulheres não inferior a 30% do total da mão-de-obra empregada.

Portanto, se aprovado o projeto na forma da redação que lhe foi dada, quanto maior o número relativo de mulheres contratadas, maior o benefício. Este, todavia, precisará ser parcialmente aplicado no treinamento e qualificação de mão-de-obra feminina. A medida, portanto, é duplamente compensatória.

Interessante é notar também que não se tratará de uma obrigação imposta aos particulares, mas de mero incentivo fiscal àqueles que, de vontade própria, passarem a contribuir para a redução das desigualdades de oportunidade e quaificação no mercado. Note-se, ainda, a grande fidelidade ao texto constitucional, que, nesta seara, previu a adoção de incentivos, silenciando sobre a possibilidade de imposição de uma obrigação que interferisse na liberdade de contratação e organização das empresas.

É criticável, no entanto, que o benefício seja limitado apenas às empresas que possuam mais de 50 empregados, por duas razões. Em primeiro lugar, porque a proteção do mercado de que cogita o constituinte é global, e o critério restritivo em nada se coaduna com tal propósito universalizante. Por outro lado, as pequenas e médias empresas são também elas próprias objeto de consideração especial do constituinte, de modo que a contratação de mulheres com incentivos fiscais poderia ser, concomitantemente, um incentivo ao desenvolvimento desses pequenos empreendimentos.

Ainda no âmbito das relações de trabalho, outras medidas de igualdade que não são propriamente afirmativas, mas meramente proibitivas da discriminação, foram veiculadas pela Lei n.º 9.799/99 para tentar impedir a discriminação de mulheres, criando-se o art. 373-A, da CLT. Tal dispositivo, dentre outras disposições, veda o anúncio de emprego que condicione a admissão de mulheres à comprovação de esterilidade ou atestado negativo de gravidez, proíbe a negativa de contratação fundada em critério sexual, revistas íntimas e a dispensa fundada em critério sexual.

Muitas das normas citadas constituem evidentes leis imperfeitas, pois não cominam sanções para sua violação. É mesmo lamentável que a idéia de igualdade seja explorada retoricamente por meio da elaboração de atos legislativos simbólicos completamente incapazes de combater a prática discriminatória e inaptos para gerar novos postos de trabalho para a mão-de-obra feminina. Isso sem falar na enorme dificuldade de empreender-se fiscalização adequada da observância de citada lei.

Aduza-se, no entanto, que a medida, além de retórica, era despicienda, pois, desde 1995, é vigente a Lei n.º 9.029, que, além de tipificar como crimes várias condutas relativas à discriminação nas relações de trabalho, dispõe que o rompimento do vínculo trabalhista, quando fundado em motivo discriminatório, inclusive gênero - faculta ao empregado(a) optar pela readmissão com ressarcimento integral de todos os valores referentes ao período de afastamento ou a percepção, em dobro, de todos esses valores.

No que tange à participação política da mulher, faz-se mister destacar ainda que o Brasil, influenciado pela experiência argentina, estipulou, por meio do art. 11, §3o, da lei n.º 9.100/96, que os partidos políticos deveriam, no registro dos seus candidatos, reservar no mínimo 20% das vagas a mulheres.

Na Argentina, relata MÔNICA MELO os efeitos positivos no aumento da participação política feminina em virtude da vigência da lei inspiradora:

"A experiência da Argentina é um exemplo do resultado do que seja uma ação afirmativa. No ano de 1983, as mulheres no parlamento argentino representavam 4% do total. Em 1991, ou seja, 8 anos após, o percentual era de 5%. Crescimento insignificante. Neste mesmo ano foi proposta e aprovada a lei que obriga todos os partidos a terem, em suas listas de candidatos, 30% de mulheres. Em 1993, já era de 13% o número de mulheres parlamentares e, para 96, estimava-se que este percentual atingisse 24%. Maiores mudanças em dois anos, com ação afirmativa, do que em uma década!" (34)

No Brasil, referida lei acabou por ser revogada pela Lei n.º 9.504/97, que, ao invés de adotar um critério positivo baseado no sexo feminino, preferiu a instituição de uma quota neutra, ou seja, 30% dos candidatos registrados devem pertencer a um dos sexos. É claro que, embora se trate de um critério vigente cego, abstratamente, para o sexo do candidato, na prática, por causa da participação minoritária da mulher nos espaços públicos políticos, ainda se trata de medida afirmativa tendente a promover a sua integração no cenário das eleições.

No entanto, crê-se que, na primeira versão, quando se implementou a idéia da reserva do percentual explícito, já não havia que se falar em inconstitucionalidade da quota mínima e, na verdade, a medida foi, até certo modo, bastante tímida.

Já se sustentou, neste trabalho, que a Constituição acolheu, com plenitude nunca dantes cogitada, o princípio da igualdade material, além de fixar objetivos que reclamam mais do que a inércia da neutralidade estatal. O legislador, no caso, criou apenas uma reserva para aumentar a probabilidade da eleição de mulheres, sem no entanto interferir propriamente no processo eleitoral. Poderia até ter ido mais longe, e garantido que determinado número de assentos nos órgãos legislativos fosse preenchido necessariamente por mulheres.

No entanto, como se trata de ação afirmativa, tema ainda pouco enfrentado por nossos tribunais, temeu, por prudência, que o processo eleitoral pudesse ser judicializado pelo controle de constitucionalidade da referida lei, razão pela qual seria menos arriscado tratar de uma restrição menos enérgica ao princípio da igualdade formal no âmbito eleitoral.

Na primeira experiência eleitoral brasileira após a instituição de referidas quotas, a Lei n.º 9100/95, que teve sua vigência limitada às eleições municipais, deu mostras da sua eficácia prática. Conforme relata FLORISA VERUCCI, os números foram impactantes:

"O número de vereadoras eleitas teve um aumento de mais de 100% (passsou de 3.839 nas eleições de 1992 para 6.536 eleitas. Além disso, a tramitação do projeto da Lei n.º 9.100 e os debates da campanha eleitoral permitiriam a discussão sobre os direitos das mulheres de vencer os obstáculos para sua participação no Poder Político." (35)

Nas eleições nacionais de 1998, a segunda experiência eleitoral com quotas, agora sob a égide da Lei n.º 9.504/97, levantou comentários precipitados sobre a eficácia das medidas de discriminação positiva implementadas por causa da irônica diminuição em 12% do número de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados e a manutenção do mesmo número das eleições anteriores no Senado. A análise, embora correta no âmbito federal, é precipitada em termos globais, pois não leva em conta que, nos Estados, a representação assemblear feminina cresceu mais de 33%.

Ainda assim, mesmo diante do crescimento constatado, não se pode olvidar que a participação feminina ainda é modesta se comparada à masculina. VERUCCI destaca os números da representação, alertando que, no Estado em que a participação foi maior, a Paraíba, os assentos parlamentares femininos não passam de 19,44%.

3.3.2. Ação Afirmativa e Raça

A fim de combater os efeitos presentes do passado escravocrata brasileiro sobre a vida de negros e mestiços, vem à baila no cenário político brasileiro a discussão sobre a necessidade e constitucionalidade da implementação de medidas compensatórias tais como a reserva de quotas para ingresso no serviço público e nas universidades públicas como forma de se alcançar o princípio da isonomia em sentido material.

A questão ganhou destaque na mídia nacional sobretudo após a divulgação de pesquisa do IPEA de 2002 que demonstrou, por análise estatística, a existência de um verdadeiro abismo racial que separa o Brasil branco do Brasil negro. Aquilo que era intuitivo e debitado à lenta inclusão do negro na sociedade brasileira após a abolição ganhou, assim, contornos concretos subsidiados por farto material estatístico.

FLAVIO LOBO resume a constatação do estudo divulgado:

"O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) acaba de revelar a profundidade e extensão de uma tragédia nacional. Esta semana, o instituto divulgou dados de um estudo inédito no Brasil. Eles mostraram que, caso não sejam adotadas medidas capazes de reverter a atual tendência, a distância entre o Brasil branco e o Brasil negro – que já é enorme – deve aumentar." (36)

Os números revelados são mesmo assustadores (37), pois rasgam definitivamente o mito do "homem cordial" brasileiro e denunciam que a exclusão é ainda mais acentuada quando se leva em conta o critério racial e requer medidas urgentes para combatê-la. Alguns deles são mencionados pela citada matéria e merecem transcrição textual:

"Segundo estudo baseado na PNAD de 1999, enquanto o salário médio mensal dos homens e mulheres brancos era, respectivamente, de R$ 726 e R$ 572 por mês, o dos homens e mulheres negros era de R$ 337 e R$ 289. São negros 64% dos pobres e 69% dos indigentes do País. A taxa de analfabetismo é três vezes maior entre os negros. Os jovens brancos, aos 25 anos, têm, em média, 8,4 anos de estudos. Já os negros da mesma idade, têm a média de 6,1 anos." (38)

Nos estreitos limites de uma monografia final de disciplina, torna-se inviável tratar de aspectos estatísticos e da análise econômica de tais números. Assim, os esforços serão concentrados na análise de iniciativas que já foram tomadas no sentido da reserva de quotas no serviço público federal e na universidade pública, em especial na Universidade de Brasília, que discute institucionalmente a reserva de vagas para negros no presente momento.

Nesta seara, revelam-se dificuldades operacionais, como a de definir-se quem seria negro para fins de tratamento compensatório e até que ponto a instituição de quotas seria eficaz no sentido de minorar a exclusão sem que houvesse um incremento do próprio processo discriminatório. Nesse ponto, forma-se um embate, pois, para a caracterização da raça, ou se adota o critério da regulamentação, que teria de definir negro e branco, ou se apela para o critério da auto-identificação étnica, segundo o qual o próprio indivíduo a indica segundo o seu sentimento de pertinência.

Ainda que tal problema de identificação não tenha sido ainda enfrentado judicialmente pelos órgãos públicos pioneiros, a iniciativa de reservar quotas para negros partiu, inicialmente, do Ministro do Desenvolvimento Agrário (39), Raul Jungmann, que, em outubro de 2001, determinou, dentre requisitos para a seleção de empresa pretadora de serviços ao Ministério, a condição de pelo menos 20% dos seus empregados serem negros. Tal medida foi acompanhada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio de Mello, que incluiu o mesmo requisito entre os necessários para a habilitação de prestadoras de serviços ao Supremo Tribunal Federal e defendeu a sua constitucionalidade.

Nesse particular, faz-se imperioso destacar que o percentual de 20% adotado faz referência, ao que tudo indica, ao Projeto de Lei n.º 650/99. Tal projeto de lei pode vir a tornar-se uma espécie de lei geral das ações afirmativas com base no critério racial. Segundo suas atuais disposições, que já foram objeto de audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania do Senado, ele reserva 20% das vagas para a população negra no acesso a cargos e empregos públicos, à universidade pública e aos contratos de Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (40).

Note-se que o percentual reservado é substancialmente inferior à representação relativa do grupo étnico que quer representar, pois os negros, para o fim da proteção legal, correspondem à soma dos grupos pardos e negros (s.s.), que totalizam 45% da população brasileira. A quota, em princípio, não é, portanto, excessiva.

Todavia, diversas vozes têm-se levantado para acoimar de inconstitucionais as quotas assim reservadas. Argumenta-se sobretudo que o critério que deve prevalecer na seleção de candidatos para cargos públicos e para a universidade deve basear-se na aferição de competência absoluta, ou seja, em padrões de aferição objetivos cegos para critérios raciais, em homenagem ao princípio da isonomia.

A questão, a nosso ver, não é tão simples, pois passa necessariamente por uma ponderação de princípios. É certo que o constituinte definiu como meta a seleção dos melhores candidatos. Contudo, é também notório que abrigou o princípio do pluralismo, e o princípio da igualdade material, inclusive racial. Portanto, como há uma tensão de valores constitucionais igualmente relevantes, somente o critério da proporcionalidade poderá revelar a medida em que um dos princípios pode ser corretamente elastecido e o outro deverá ser contraído na situação concreta. Vale observar, com INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, que:

"Por isso, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta de valoração for ou parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio – com exclusão de todos os demais que, prima facie, também poderiam ser utilizados como norma de decisão-, o intérprete aplicador fará uma ponderação entre os standards concorrentes, optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, e segundo a sua prudente avaliação, deva ter um peso relativamente maior." (41)

O teste da proporcionalidade será, assim, decisivo para a constatação de que se trata de medida possível ou vedada no ordenamento jurídico brasileiro. Está-se, sem dúvida, diante de um caso difícil. No entanto, no caso das quotas, tal teste é qualificado ainda por uma dificuldade adicional. É que só faz sentido pensar em quotas se se tiver em mente a sua temporariedade, e isso, por sua vez, requer dos órgãos jurisdicionais que façam controle de constitucionalidade das prognoses legislativas, coisa que, no direito brasileiro, não é tradição e normalmente esbarra em uma sólida resistência fundada no princípio da Separação de Poderes.

Para que se faça o adequado controle de constitucionalidade de uma lei dessa natureza, é inviável que a análise permaneça no plano meramente lógico-abstrato, pois a mesma medida antes constitucional pode vir a tornar-se flagrantemente inconstitucional pela mudança dos fatos. A Corte Constitucional, diante de tais políticas, não pode despir-se de sua natureza eminentemente política, pois deve eleger valores e assumir riscos quanto ao destino da aplicação da Constituição. Os motivos do legislador são, em suma, vinculantes e determinantes, razão pela qual a decisão judicial não pode se negar a analisá-los.

Como adverte GILMAR FERREIRA MENDES:

"Em verdade, há muito vem parte da dogmática apontando para a inevitabilidade da apreciação de dados da realidade no processo de interpretação e de aplicação da lei como elemento trivial da própria metodologia jurídica. (...) Hoje, não há como negar a comunicação entre norma e fato (Komumunikation zwischen Norm und Sachverhalt), que, como ressaltado, constitui condição da própria interpretação constitucional". (42)

Assim, se os meios utilizados pelo legislador devem ser, sob pena de inconstitucionalidade, adequados e necessários à perseguição dos objetivos por ele definidos, e se a necessidade é um dado factual, não há outra alternativa: a Corte Constitucional precisará enfrentar a questão de saber se existem meios menos gravosos capazes de solucionar a questão da sub-representavidade dos negros.

De fato, a prognose esboçada no projeto de lei está lidimamente escorada em dados factuais e em fartos estudos que demonstram que a igualdade material racial tende a ser cada vez mais distante. Por isso, a resposta é que a medida é adequada, pois serve para a equalização de oportunidades, e necessária. Necessária, repete-se, mas não suficiente, porquanto demandará reforço de maciços investimentos governamentais em políticas públicas de erradicação da exclusão racial e econômica que passam pela realização de diversos direitos fundamentais de segunda geração tais como educação e cultura.

GILMAR FERREIRA MENDES explica o sentido em que empregamos as expressões adequação e necessidade:

"O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos." (43)

Ora, não obstante, em face dos dados estatísticos revelados pelo IPEA, seja razoável reconhecer que existe uma situação de discriminação que recomende a constrição do princípio da igualdade formal, permitindo a desequiparação compensatória, tal prognóstico do legislador pode vir a tornar-se falso a partir do momento em que os dados empíricos mudem. De fato, se a medida for adequada, pode-se até mesmo afirmar que a lei, um dia, estará condenada fatalmente a ser declarada inconstitucional.

Por fim, vale tecer algumas considerações sobre a iniciativa de professores da UnB (44) que propuseram, no âmbito administrativo universitário, ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) a adoção de quotas mínimas já no próximo exame vestibular, estipulando-as em 20% para negros. O requerimento, intitulado "Uma proposta de cotas e ouvidoria para a Universidade de Brasília", quebra o isolamento da universidade federal em relação ao tema e baseia-se em exaustivo estudo denominado O Negro na Universidade, organizado por Delcele Queiroz e publicado pela Universidade Federal da Bahia. Vale a pena transcrever o conteúdo de denúncia do pleito.

"É possível, para efeito da presente proposta de compensação, resumir os dados da UnB como exemplo da tendência geral (ressalvando que foi a universidade que apresetou o mais baixo índice de resposta ao questionário: apenas 30% contra 70% e mais das outras).O diferencial de sub-representação de pretos e pardos em relação à sua proporção demográfica no Distrito Federal chegou, em média, a 30%. Contudo, a dimensão mais grave da exclusão reside no fato de que os negros (pretos e pardos) estão praticamente ausentes dos cursos definidos como de alto prestígio, como Medicina, Direito, Odontologia, Administração e Jornalismo" (45)

Do ponto de vista do mérito da proposta, as razões já expostas anteriormente são igualmente aplicáveis pois se escoram em robusto substrato fático justificador da desequiparação proposta. Quanto ao requisito formal, pode surgir dúvida quanto à possiblidade de restrição à igualdade formal sem lei federal que a autorize expressamente. Nesse ponto, embora a universidade seja autônoma, o princípio da legalidade, a nosso ver, impõe a existência de lei anterior autorizativa, por se tratar de limitação a direito fundamental.

Sobre o autor
Alexandre Vitorino Silva

advogado em Brasília (DF), mestrando em Direito e Estado na UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Vitorino. O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -243, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3479. Acesso em: 23 dez. 2024.

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