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A moderna interpretação constitucional

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Direito como fenômeno cultural; 3.Constituição como espécie normativa singular; 4.Interpretação constitucional, 4.1.Conceito, 4.2.Especificidade da interpretação constitucional, 4.3.Método de interpretação constitucional, 4.3.3.1.Método integrativo ou científico- Espiritual, 4.3.3.2.Método tópico, 4.3.3.3.Método concretista de Peter Häberle, 4.4.Princípios de interpretação constitucional, 4.4.1.Princípio da unidade da constituição, 4.4.2.Princípio da concordância prática ou da harmonização, 4.4.3.Princípio da força normativa da constituição, 4.4.4.Princípio da máxima efetividade, 4.4.5.Princípio do efeito integrador, 4.4.6.Princípio da interpretação conforme á constituição, 4.4.7.Princípio da proporcionalidade; 5. Modernas técnicas de interpretação constitucional, 5.1.Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, 5.2.Declaração de inconstitucionalidade com apelo ao Legislativo, 5.3.Interpretação conforme à constituição; 6.Conclusão; Bibliografia, Notas.


O presente artigo pretende identificar e sistematizar os métodos, os princípios e as técnicas da moderna teoria da interpretação aplicáveis ao Direito Constitucional. No seu desenvolvimento, procura-se dar realce tanto ao Direito pátrio como ao Direito estrangeiro, reservando-se especial atenção para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro e do Tribunal Constitucional Federal alemão.

O estudo que aqui se empreende não tem por objeto formular uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, basicamente, para a atividade interpretativa especificamente constitucional, e procura fundamentar e sistematizar o conhecimento necessário para alcançar tão importante desiderato.

Neste sentido, procura-se, inicialmente, examinar o Direito como fenômeno cultural, cuidando de afastá-lo dos fenômenos ditos naturais. Adiante, faz-se a apreciação de algumas peculiariedades que singularizam as normas constitucionais, diferenciando-as das demais normas jurídicas.

Em seguida, percorre-se a interpretação constitucional propriamente dita. Analisam-se, assim, o conceito, a especificidade, os métodos e os princípios de interpretação constitucional.

Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual das modernas técnicas de interpretação constitucional existentes.

Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do trabalho.


2. DIREITO COMO FENÔMENO CULTURAL

O conceito de Direito não é um problema que a Ciência Jurídica ou a Filosofia do Direito tem por resolvido em definitivo. Muitos juristas e jusfilósofos têm se preocupado com o tema, deixando suas valiosas contribuições sem, entretanto, dar uma resposta à questão com caráter de definitividade.

Não obstante esse fato, é preciso ter em mente que o Direito é um fenômeno cultural e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências ditas naturais, visto que, quanto a estas, as conclusões obtidas se revestem das verdades resultantes do método empírico-indutivo a que se submetem as realidades próprias das ciências naturais.

A propósito, ensina Inocêncio Mártires Coelho:

"Em relação a esses objetos, observados os fenômenos e formulada uma hipótese – como "explicação antecipada e reacional" para a sua ocorrência -, se essa solução provisória, após submetida a experimentação, vier a se verificar, então o cientista da natureza dará por concluído o seu trabalho, enunciando uma lei, que traduzirá, em linguagem sintética e generalizadora, as relações constantes e necessárias que existem entre os fenômenos observados." [1]

E, adiante, aduz o eminente autor:

"Já os objetos culturais – porque são ontologicamente valiosos – exigem para o seu conhecimento um método específico e adequado, um método empírico-dialético, que se constitui pelo ato gnosiológico da compreensão, através do qual, no ir e vir ininterrupto da materialidade do substrato à vivência do seu sentido espiritual, procuramos descobrir o significado das ações ou das criações humanas. Neste setor da realidade, a busca de explicações constituiria um absurdo tão grande quanto julgar os fenômenos da natureza." [2]

Destarte, os objetos culturais podem variar em significado e, por conseguinte, ser a eles agregados valores. Diante dos objetos culturais podem ser, assim, produzidas interpretações sempre renovadas e sempre integradas às anteriores.

Já os objetos naturais não variam em significado. Assim, uma lei física é sempre a mesma em qualquer lugar do planeta, não lhe cabendo qualquer sorte de interpretação. Vale, tão-somente, o quanto for observado e comprovado através da experiência.

É, pois, entre os objetos do mundo da cultura (compreendido como aquele criado pelo homem: o mundo do espírito) que se insere o Direito.

Em síntese magistral, diz-nos Gustav Radbruch:

"Compreender, quer dizer aqui o mesmo que apreender um facto cultural, precisamente um facto cultural, isto é, nas suas ligações e relações com o valor da cultura que lhe corresponde. E se isto é assim duma maneira geral, é evidente que o especial "compreender" da ciência jurídica não poderá ser senão o sabermos aprender também o direito como realização do respectivo conceito; isto é, como um dado cujo sentido é o de realizar a idéia de direito; ou ainda como uma tentativa de realização dessa idéia." [3]


3. CONSTITUIÇÃO COMO ESPÉCIE NORMATIVA SINGULAR

Inocêncio Mártires Coelho, em expressiva passagem, assevera que:

"Sendo ambas – Lei e Constituição – espécies de normas jurídicas, criações do homem, portanto, submetem-se à conceituação genérica do Direito como fenômeno cultural, realidade significativa..." [4]

Conquanto seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, a Constituição merece exame destacado dentro do ordenamento jurídico, considerando as singularidades que suas normas apresentam.

Luís Roberto Barroso enumera quatro singularidades das normas constitucionais: a) superioridade hierárquica; b) natureza da linguagem; c) conteúdo específico; d) caráter político. [5]

A superioridade hierárquica expressa a supremacia da Constituição e "é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido." [6]

Por sua vez, a natureza da linguagem refere-se à veiculação, no texto constitucional, de normas de índole principiológica que apresentam "maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densidade jurídica." [7]

J. J. Gomes Canotilho reconhece um "espaço de conformação" aos órgãos concretizadores. Consigna o ilustre mestre de Coimbra:

"Situadas no vértice da pirâmide normativa, as normas constitucionais apresentam, em geral, uma maior abertura (e, consequentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma operação de concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de conformação" ("liberdade de conformação", discricionariedade") mais ou menos amplo." [8]

De outra feita, a Constituição é sede de determinadas categorias de normas que refogem à estrutura típica das normas dos demais ramos do Direito. Citem-se as normas determinadoras de competências, as normas de organização, as normas de garantias de direitos fundamentais e as normas programáticas.

Não se destinam tais normas a prescrever condutas de indivíduos ou de grupos sociais. Têm elas as funções precípuas de estruturar organicamente o Estado, regular os direitos fundamentais e as respectivas garantias e indicar os valores a serem preservados e os fins sociais a serem atingidos.

Finalmente, a Constituição apresenta normas de caráter político "quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação." [9]

Isto significa que as normas constitucionais resultam de um poder político fundamental — o poder constituinte originário —, juridicizam o fenômeno político e acarretam consequências para o conjunto de instituições e poderes (partidos políticos, grupos de interesses, categorias empresariais e trabalhistas, opinião pública, etc.) quando concretizadas e aplicadas.

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Na verdade, a Constituição é, como acentua Pontes de Miranda, "o conjunto de regras jurídicas onde as forças políticas encontram o seu leito, o seu equilíbrio." [10] É, em suma, o estatuto jurídico-político do Estado.

Essas peculiaridades singularizam, pois, as normas constitucionais, exigindo princípios e métodos específicos para a sua interpretação, como se verá adiante.


4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

4.1. CONCEITO

A interpretação constitucional busca compreender, investigar e revelar o conteúdo, o significado e o alcance das normas que integram a Constituição. É uma atividade de mediação que torna possível concretizar, realizar e aplicar as normas constitucionais.

Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:

"Interpretar as normas constitucionais significa (como toda a interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto constitucional. A interpretação jurídica constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüisticos escritos na constituição." [11]

Ressalte-se que o preclaro professor português destaca o caráter lingüístico da interpretação constitucional (como de resto de qualquer interpretação), "a exigir que os interlocutores falem a mesma linguagem, como condição de possibilidade de sua mútua compreensão, porque – como adverte Gadamer — quem fala uma linguagem que mais ninguém fala, em realidade não fala." [12]

Em síntese, a interpretação constitucional consiste num processo intelectivo por meio do qual enunciados lingüisticos que compõem a constituição transformam-se em normas (princípios e regras constitucionais), isto é, adquirem conteúdo normativo.

4.2. ESPECIFICIDADE DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Inocêncio Mártires Coelho adverte que existe, na doutrina, grande discussão sobre a existência de uma interpretação especificamente constitucional, ou, ao revés, não passa tal pretensão de um anseio de autores entusiasmados. Escreve o ilustre autor:

"A propósito, qualquer levantamento realizado entre os doutrinadores contemporâneos mais conceituados evidenciará que é grande esse entusiasmo, muito embora, a rigor, a especificidade da interpretação constitucional se restrinja à parte dogmática das constituições, isto é, àquela parte onde estão compendiados os direitos fundamentais, interpretando-se os preceitos restantes de acordo com os "métodos" tradicionais." [13]

Ernest-Wolfgang Böckenförde, reforçando esse entendimento, coloca os direitos fundamentais como pano de fundo para embasar sua teoria de interpretação especificamente constitucional. [14]

Nesta mesma perspectiva situa-se Robert Alexy, quando coloca objeções a uma divisão dicotômica entre princípio e regra e desenvolve fecunda doutrina em obra dedicada aos direitos fundamentais. [15]

Advirta-se que a interpretação constitucional destinada à parte dogmática das constituições – e, portanto, aos direitos fundamentais – serve-se de princípios próprios, aplicáveis apenas às normas constitucionais de índole principiológica, deixando-se às regras constitucionais os métodos hermenêuticos do direito em geral.

Diante desse panorama, em que se reconhece a existência da especificidade da matéria constitucional – ainda que se possa restringir-se à parte dogmática das constituições -, torna-se evidente que a interpretação especificamente constitucional é, essencialmente, uma hermenêutica de princípios – isto é, "mandatos de otimização" que "podem e devem ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. [16]

Em síntese, "a doutrina do direito constitucional pressupõe hoje uma metódica constitucional adequada. Em termos aproximados, a metódica constitucional procura favorecer os métodos de trabalho aos aplicadores - concretizadores das normas e princípios constitucionais."[17]

4.3. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Paulo Bonavides assinala que "a moderna interpretação da Constituição deriva de um estado de inconformismo de alguns juristas com o positivismo lógico-formal que tanto prosperou na época do Estado liberal." [18]

Com efeito, até a Constituição de Weimer, vivia-se o período de ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do Estado liberal. "Por onde veio a resultar um Direito Constitucional fechado, sólido, estável, mais jurídico do que político, mais técnico do que ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito Constitucional compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à tensões e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade contemporânea." [19]

Com o aparecimento do Estado Social, quando as constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e classes com interesses antagônicos e contraditórios, surge uma nova interpretação constitucional, que "já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico com o social... " [20]

Os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.

Paulo Bonavides destaca três métodos atuais de interpretação constitucional: a) método integrativo ou científico-espiritual; b) método tópico; c) método concretista. [21]

4.3.1 MÉTODO INTEGRATIVO OU CIENTÍFICO-ESPIRITUAL

O método integrativo ou científico-espiritual foi desenvolvido por juristas alemães, capitaneado por Rudolf Smend, que assinala:

"La Constitución no puede ser comprendida sólo como un estatuto de la organización, que estructura el Estado y que faculta e impone ciertas actividades al mismo, sino a la vez, como una forma victal de los ciudadanos que participan en la vida del Estado." [22]

Na doutrina de Rudolf Smend, a base de valoração, vale dizer, os valores expressos e tutelados pela Constituição (econômicos, sociais, políticos e culturais) operam como valores de interpretação coletivos dos cidadãos e, destarte, devem ser compreendidos e aplicados.

Como acentua Paulo Bonavides:

"A concepção de Smend é precursoramente sistêmica e espiritualista: vê na Constituição um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta." [23]

Adiante, aduz o ilustre professor cearense:

"O intérprete constitucional deve prender-se sempre à realidade da vida, à "concretude" da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração. " [24]

4.3.2.MÉTODO TÓPICO

Por sua vez, o método tópico foi desenvolvido pelos juristas alemães Theodor Viehweg e Josef Esser. A primeira obra sobre o assunto, denominada "Tópica e Jurisprudência", de autoria de Viehweg, foi publicada em 1953.

O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma "técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada.

Referindo-se ao método tópico, Paulo Bonavides faz a seguinte ponderação:

"Da tópica clássica, concebida como uma simples técnica de argumentação, a corrente restauradora, encabeçada por aquele jurista de Mogúncia, compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo satisfatoriamente". [25]

A principal crítica feita ao método tópico é a de que "além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas." [26] Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado: são rebaixados à condição de meros pontos de vista ou "tópoi", cedendo lugar à hegemonia do problema.

4.3.3.MÉTODO CONCRETISTA

Finalmente, o método concretista foi desenvolvido por três juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Cada um deles ofereceu valiosos contributos para o desenvolvimento desse método.

O método concretista gravita em torno de três elementos essenciais: a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.

Como salienta Paulo Bonavides:

"Os intérpretes concretistas têm da Constituição normativa uma concepção diferente daquela esposada pelos adeptos de outros métodos, porquanto não consideram a Constituição um sistema hierárquico-axiológico, como os partidários da interpretação integrativa ou científico-espiritual, nem como um sistema lógico-sistemático, como os positivistas mais modernos. Ao contrário, rejeitam o emprego da idéia de sistema e unidade da Constituição normativa, aplicando um "procedimento tópico"de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de concretização. É uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e casuístico, que aplica as categorias constitucionais à solução direta dos problemas, sempre atenta a uma realidade concreta, impossível de conter-se em formalismos meramente abstratos ou explicar-se pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos jurídicos"[27]

4.3.3.1 MÉTODO CONCRETISTA DE KONRAD HESSE

O método concretista de Konrad Hesse parte da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Para Hesse, o teor da norma só se completa no ato interpretativo. A concretização da norma pelo intérprete pressupõe um compreensão desta; essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão.

Como lembra Lenio Luiz Streck:

"Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não cabe desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do problema concreto a solucionar. O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos."[28]

Para Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face do problema concreto, de forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua aplicação ao caso concreto constituem um processo unitário.

Nas palavras textuais de Hesse:

"Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma ("Gebot optimaler Verklichung der Norm"). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."[29]

4.3.3.2. MÉTODO CONCRETISTA DE FRIEDRICH MÜLLER

O método concretista de Friedrich Müller, segundo Paulo Bonavides, "tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia proposta."[30]

Para Friedrich Müller, o "texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo"[31], que, após interpretado, transforma-se no programa normativo.

Além do texto, a norma constitucional compreende também um domínio normativo, isto é, pedaço da realidade concreta, que o programa normativo só parcialmente contempla.

Segundo Friedrich Müller, a norma constitucional não se confunde com o texto da norma. Ela é mais que isso: é formada pelo programa normativo e pelo domínio normativo. "De sorte que a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário portanto do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico. [32]

É importante ressaltar ainda que a "análise dos dados lingüisticos (programa normativo) e a análise dos dados reais (domínio normativo) são dois processos parciais, separados entre si, dentro do processo de concretização. " [33] Cabe ao intérprete da norma articular tais processos.

Para Friedrich Müller, portanto, a normatividade constitucional consiste no efeito global da norma com seus dois componentes (programa normativo e domínio normativo), no processo de concretização, que só se completa quando se chega à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao caso concreto.

4.3.3.3. MÉTODO CONCRETISTA DE PETER HÄBERLE

De registrar, com Paulo Bonavides, que:

"A construção teórica de Häberle parece desdobrar-se através de três pontos principais: o primeiro, o largamento do círculo de intérprete da Constituição; o segundo, o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e, finalmente, o terceiro, ou seja, a referência desse conceito à Constituição mesma, como realidade constituída e "publicização" ("verfassten Wirklichkeit und Öffentlichkeit")"[34]

Com efeito, o próprio Peter Häberle expõe magistralmente sua tese:

"Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição."[35]

E, adiante, aduz o eminente professor alemão:

"Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" ("Zünftamässige Interpreten") e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade ("weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird"). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade."[36]

O método concretista da Constituição aberta de Peter Häberle, como se pode perceber, é a própria ideologia democrática e demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos fundamentais: sólido consenso democrático, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.[37]

4.4. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Sendo a hermenêutica constitucional uma hermenêutica de princípios, é inegável que o ponto de partida do intérprete há de ser os princípios constitucionais, que "são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui."[38]

Luís Roberto Barroso assinala ainda que "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser esquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição."[39]

As normas-princípio (ou simplesmente princípios) distinguem-se das normas-disposição (também referidas como regras) pelo seu maior grau de abstração e por sua posição mais destacada dentro do ordenamento. São formuladas de maneira vaga e indeterminada, constituindo espaços livres para a complementação e desenvolvimento do sistema, por não se limitarem a aplicar-se a situações determinadas, podendo concretizar-se num sem número de hipóteses.

As normas-disposição, por sua vez, comparativamente às normas-princípio, apresentam um grau de abstração reduzido e têm eficácia restrita às situações específicas às quais se destinam.

Segundo Luís Roberto Barroso:

"Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia em sentido normativo, por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição, todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não impede, todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada situação jurídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do Texto Constitucional. "[40]

Veja-se, a seguir, o catálogo dos princípios de interpretação constitucional encontrados na doutrina. Como se poderá notar, a maioria desses princípios foi formulada a partir dos novos métodos de interpretação constitucional existentes.

4.4.1.PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO

Na conformidade desse princípio, as normas constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas e dispersas, mas sim integradas num sistema interno unitário de princípios e regras.

Como acentua J. J. Gomes Canotilho:

"O princípio da unidade da Constituição obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.[41]

O princípio da unidade da Constituição, segundo o ilustre constitucionalista português, conduz à rejeição de duas teses ainda presentes na doutrina do direito constitucional: a tese das antinomias normativas e a tese das normas constitucionais inconstitucionais.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão tem conferido singular importância ao princípio da unidade da Constituição. Em decisão magistral, lavrou aquela Carta que:

"O princípio mais importante da interpretação é o da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal".[42]

4.4.2.PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO

Formulado por Konrad Hesse, esse princípio impõe ao intérprete que "os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto."[43]

O princípio da concordância prática ou da harmonização parte da noção de que não há diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais. Destarte, o resultado do ato interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionalmente tutelados.

4.4.3.PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Também formulado por Konrad Hesse, esse princípio estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência.

4.4.4. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE

Segundo esse princípio, na interpretação das normas constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior eficácia.

Destarte, "as normas constitucionais devem ser tomadas como normas atuais e não como preceitos de uma Constituição futura, destituída de eficácia imediata."[44]

O princípio da máxima efetividade significa o abandono da hermenêutica tradicional, ao reconhecer a normatividade dos princípios e valores constitucionais, principalmente em sede de direitos fundamentais.

4.4.5. PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR

De acordo com esse princípio, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e possibilitem o reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da Constituição.

Assim, partindo de conflitos entre normas constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente integradoras.

4.4.6. PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO

Segundo esse princípio, "nenhuma lei deve ser declarada inconstitucional quando não puder ser declarada em harmonia com a Constituição"[45], sendo esta interpretação a única adequada e realmente válida.

A aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição só é possível quando, em face de normas infraconstitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, existem diferentes alternativas de interpretação, umas em desconformidade e outras de acordo com a Constituição, sendo que estas devem ser preferidas àquelas. Entretanto, na hipótese de se chegar a uma interpretação manifestamente contrária à Constituição, impõe-se que a norma seja declarada inconstitucional.

O princípio da interpretação conforme à Constituição constitui uma moderna técnica de controle da constitucionalidade das leis, como se verá adiante.

4.4.7. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Esse princípio, conquanto tenha tido aplicação clássica no Direito Administrativo, foi descoberto nas últimas décadas pelos constitucionalistas, quando as declarações de direitos passaram a ser atos de legislação vinculados. Trata-se de norma essencial para a proteção dos direitos fundamentais, porque estabelece critérios para a delimitação desses direitos.

O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três aspectos fundamentais: a) adequação; b) necessidade (ou exigibilidade); c) proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação significa que o intérprete deve identificar o meio adequado para a consecução dos objetivos pretendidos. A necessidade (ou exigibilidade) significa que o meio escolhido não deve exceder os limites indispensáveis à conservação dos fins desejados. A proporcionalidade em sentido estrito significa que o meio escolhido, no caso específico, deve se mostrar como o mais vantajoso para a promoção do conjunto de valores em jogo.

Na Alemanha, berço doutrinário do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão prolatada em 1971, assim o sintetizou:

"O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental."[46]

O princípio da proporcionalidade constitui uma verdadeira garantia constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso desatado do poder estatal e auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as normas constitucionais.

Sobre o autor
Amandino Teixeira Nunes Junior

consultor legislativo da Câmara dos Deputados, professor do UniCEUB e da UniEURO, em Brasília (DF), mestre em Direito pela UFMG, doutor em Direito pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A moderna interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3497. Acesso em: 5 nov. 2024.

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