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Diferenças entre fato gerador e hipótese de incidência e a possibilidade de tributação de atos ilícitos

Agenda 17/06/2016 às 17:16

Fato gerador e hipótese de incidência são a mesma coisa? A realização de uma atividade ilícita pode dar ensejo à incidência tributária?

Para a compreensão de diversas questões práticas de direito tributário, importa saber se fato gerador e hipótese de incidência são a mesma coisa e, ainda, se pode haver tributação de atos jurídicos com objeto ou efeitos ilícitos, ou seja, se a realização de uma atividade ilícita pode dar ensejo à incidência tributária.

Quanto à primeira indagação, cumpre salientar que o legislador nacional utilizou a expressão fato gerador ora para designar a situação hipotética da norma, ora para designar o fato da vida, agindo com atecnia legislativa nesse particular.

Para resolver essa confusão terminológica, consistente em designar duas realidades distintas (isto é, a descrição hipotética e a sua concreta verificação) pelo mesmo nome, a doutrina renomada buscou fazer a devida diferenciação científica, para cada situação específica. Nesse sentido:

"Tal é a razão pela qual sempre distinguimos estas duas coisas, denominando ‘hipótese de incidência’ ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e ‘fato imponível’ ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência”[1].

Assim, a descrição legislativa de um fato configura a hipótese de incidência e o fato em si realizado, posteriormente, configura o fato gerador em concreto ou o fato imponível[2].

Ainda quanto à diferenciação, explica HUGO DE BRITO MACHADO[3]:

"a expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto fato gerador diz a ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto”.

Em complemento ao que foi dito, destaque-se o ensinamento de LEANDRO PAULSEN[4]:

“A situação fática, quando corresponde à hipótese de incidência prevista na norma tributária, chama-se fato gerador, pois, ao sofrer a incidência da norma, dá origem à obrigação tributária. A hipótese de incidência constitui antecedente ou pressuposto da norma tributária impositiva.”

Pelo exposto, em resposta ao questionamento, hipótese de incidência e fato gerador são institutos inconfundíveis. O primeiro é a descrição abstrata de um fato jurígeno hábil a gerar uma obrigação tributária e o segundo é a ocorrência de um fato da vida, que incidirá na regra prevista anteriormente na lei.

Concernente à segunda indagação, a doutrina é divergente. As normas aplicáveis ao caso são os arts. 3º, 118 e 126, do Código Tributário Nacional – CTN e arts. 104 e 166, do Código Civil.

A discussão doutrinária acerca da possibilidade ou não de se tributar atos ilícitos redunda acerca da análise dos aspectos jurídicos ou econômicos que fundamentam a tributação desses atos.

Para os que defendem que o aspecto jurídico deve prevalecer sobre o aspecto econômico, sustentam a tese forte no art. 3º, do CTN, a exemplo de Alfredo Augusto Becker, Sacha Calmon Navarro e Hugo de Brito Machado.

AUGUSTO BECKER[5] introduz na sociedade jurídica um entendimento que há outros meios de punir o infrator sem que este meio seja indiretamente a tributação. Assevera que ao invés de tributar uma parcela do patrimônio ilícito do infrator, é muito mais sensato que o Estado sancione a atividade ilícita e declare o perdimento de bens. Admitir a tributação de atos ilícitos seria negar o conceito de tributo, que é um dos pilares do Direito Tributário. Segue argumentando que os manuais de Direito Tributário sempre ressaltam que multa não é tributo, justamente porque esse não constitui sanção por ato ilícito. Conclui, então, que se multa não pode ser tributo, outros atos ilícitos também não o podem ser.

Para o citado doutrinador, a análise da questão partirá de dois momentos distintos, quais sejam: 1) a verificação legal de ser ou não a ilicitude um dos elementos integrantes da hipótese de incidência; 2) a análise do fato com o intuito de verificar se o tributo poderá ser lançado (cuja hipótese de incidência é lícita), mesmo havendo ilicitude constatada quando do exame da realização da hipótese de incidência.

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Segundo SACHA CALMON NAVARRO, adepto à teoria de Becker, a questão se resolve da seguinte maneira: a) são tributáveis os fatos lícitos, embora realizados ilicitamente; b) não podem ser tributados os fatos ilícitos, como por exemplo o rufianismo, o jogo do bicho ou o tráfico de drogas.

Exemplifica a hipótese com o seguinte caso real:

“Seria justo que os psicanalistas de ofício e diploma pagassem os tributos, e o exercente ilegal da profissão deles escapasse, arguindo as suas irregularidades? Evidentemente não se trata da tributação dos atos ilícitos tipificados como delituosos, já que o fato gerador dos tributos é sempre um fato lícito”.

Verifica-se, então, que esta linha doutrinária defende que se deve sustentar a intributabilidade dos bens, valores e direitos oriundos de atividades ilícitas, tendo em vista que as leis, do nosso ordenamento, há tempos, preveem o destino dos bens adquiridos de maneira ilícita.

Para esta corrente, a origem ilícita dos rendimentos eliminaria os seus próprios efeitos e seria ilegítimo que, havendo uma norma jurídico-penal que censurara um determinado fato, considerando-o crime, que o Estado se valesse desse mesmo fato para dele obter tributos. Outro argumento contrário à tributação de atividades decorrentes do ilícito penal é que o Estado em tal caso estaria chancelando a mesma, tornando-se cúmplice da referida atividade ilícita e de seus respectivos agentes, quando exige tributos das mesmas. Nessa linha, MISABEL ABREU MACHADO DERZI[6]  destaca:

“Não seria ético, conhecendo o Estado, a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinquente e dele cobrando uma quota, a título de tributo.”

Para essa vertente, deve prevalecer o aspecto jurídico sobre o econômico.

Por outro lado, para a vertente que defende que o aspecto econômico deve prevalecer sobre o aspecto jurídico, fundamentam a tese precipuamente no art. 118, do CTN, onde extrai-se o princípio pecunia non olet, ou seja, para o Estado o dinheiro não tem cheiro.

Nessa linha, EDUARDO SABBAG[7] anota:

“o princípio do tributo ‘non olet’ (‘denaro non puzza’, para os italianos; ‘money does not smell’, para os ingleses) preconiza que se deve interpretar o fato gerador pelo aspecto objetivo, sendo irrelevantes os aspectos subjetivos, atinentes à pessoa destinatária da cobrança do tributo.”

Desta forma, segue o professor, não importa a nulidade ou anulabilidade do ato jurídico, a incapacidade civil do sujeito passivo ou a ilicitude do ato que gera o fato jurígeno; o ato será objetivamente analisado, em observância ao postulado da isonomia tributária.

Na mesma linha segue ALIOMAR BALLEIRO[8]:

“a validade, invalidade, nulidade, anulabilidade ou mesmo a anulação já decretada do ato jurídico são irrelevantes para o direito tributário. Praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária prescreve como fato gerador, está nascida a obrigação para com o fisco. E essa obrigação subsiste independentemente da validade ou invalidade do ato. Se nulo ou anulável, não desaparece a obrigação fiscal que dele decorre, nem surge para o contribuinte o direito de pedir repetição do tributo acaso pago sob invocação de que o ato era nulo ou foi anulado. O fato gerador ocorre e não desaparece, do ponto de vista fiscal, pela nulidade ou anulação”.

Para o doutrinador AMILCAR FALCÃO[9]:

“ao Direito Tributário interessa primordialmente a relação econômica, não importa à configuração do fato gerador a circunstância de consistir ele, concretamente, num ato ou negócio jurídico inquinado de nulidade ou anulabilidade, uma vez que os efeitos econômicos se produzam”.

E mais, BERNARDO RIBEIRO DE MORAES[10], citando Ezio Vanoni, afirma que “o que interessa ao Direito Tributário são os fatos econômicos e não a forma jurídica, razão pela qual a atividade ilícita se rendosa, deve ser tributada”.

Caso não fossem tributados os atos considerados ilícitos, o Estado poderia desconsiderar por completo de que todo contribuinte deva se manter na legalidade, colocando uma falsa ideia de que a ilegalidade não geraria tributos e o Estado apoiasse tal pensamento – o que não é verdade.

Verifica-se, assim, que os adeptos da interpretação econômica afirmam que para o direito tributário é irrelevante que o ato seja nulo, anulável ou ilícito; basta o efeito econômico dela decorrente, com base na isonomia tributária.

A expressão “que não constitua sanção de ato ilícito” deve ser interpretada, segundo LUIZ EMYGDIO FRANCO DA ROSA JÚNIOR[11], que a atividade ilícita não pode ser definida como hipótese de incidência do tributo.

No Brasil, a doutrina majoritária e a jurisprudência dominante firmaram entendimento com base na intepretação econômica, permitindo a tributação de tributos decorrentes de atos ilícitos. Citam-se os seguintes julgados:

 “Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: "non olet". Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética” (STF: HC 77530, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 25/08/1998 – destacou-se).

RECURSO ESPECIAL. PENAL. PECULATO. CONDENAÇÃO. SONEGAÇÃO FISCAL PROVENIENTE DE ATUAÇÃO ILÍCITA. TRIBUTABILIDADE. INEXISTÊNCIA DO “BIS IN IDEM”. BENS JURÍDICOS TUTELADOS NOS TIPOS PENAIS DISTINTOS. PUNIBILIDADE. São tributáveis “ex vi” do art. 118, do Código Tributário Nacional, as operações ou atividades ilícitas ou imorais, posto a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. POSSIBILIDADE, CONDENAÇÃO, PECULATO, SIMULTANEIDADE, SONEGAÇÃO FISCAL, HIPÓTESE, RENDA, PRODUTO DE CRIME, OCORRÊNCIA, FATO GERADOR, OBRIGATORIEDADE, TRIBUTAÇÃO, IRRELEVÂNCIA, OBJETO ILÍCITO, NÃO CARACTERIZAÇÃO BIS IN IDEM” (STJ. RESP 182563/RJ. Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca. Quinta Turma. DJ 23.11.1998, p. 198 – destacou-se).

Assim, a jurisprudência determinante entende que a cobrança de tributos não visa fiscalizar as atividades ilícitas e sim ter participação na parte econômica obtida com a ilicitude, uma vez que riquezas foram obtidas dessa forma. Essa tributação vem como forma de desestimular a prática de atos ilícitos, derrubando por terra a ideia de que as vias ilegais são menos desgastantes, mais baratas e mais lucrativas.


CONCLUSÃO

Pelo exposto, fato gerador e hipótese de incidência são institutos distintos e inconfundíveis, vez que o primeiro trata do fato concreto correspondente a uma descrição legal prévia, enquanto que a hipótese de incidência traduz uma descrição de um fato em norma geral, abstrata e impessoal, disposta em lei previamente.

Outrossim, a tributação de atos ilícitos é permitida no Brasil, em conformidade com o postulado da isonomia fiscal e em obediência ao princípio da “pecunia non olet” do direito romano. Os argumentos também repousam em questões éticas, morais e econômicas, devendo o Fisco tributar independentemente da natureza do objeto do fato gerador; não em caráter punitivo, mas sim, por questões de política tributária.

Os contribuintes devem ser tratados de forma isonômica entre si, até mesmo aqueles que auferem lucros e desenvolvem atividades proibidas ou punidas por lei, devendo ser considerada legal a tributação de todo e qualquer ato ilícito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. 10. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 55.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 714.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 abr. 2013.

BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 20 abr. 2013.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 20 abr. 2013.

DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 2. ed.  São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007.

FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 5. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.39.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 102.

MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, vol.2, p. 353.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 114.

ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário. 16. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SABBAG, Eduardo. Elementos de Direito Tributário, 12. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 38.

STF. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 abr. 2013.

STJ. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 20 abr. 2013.


NOTAS:

[1] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. 10. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 54.

[2] Terminologia utilizada por Geraldo Ataliba, que caracteriza o fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido no mundo fenomênico, sensível, palpável, material, apreensível que, por corresponder rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela hipótese de incidência legal, dá nascimento à obrigação tributária (Ob cit. P. 67/68).

[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 102.

[4] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 114.

[5] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002.

[6] DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 2. ed.  São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007.

[7] SABBAG, Eduardo. Elementos de Direito Tributário, 12. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 38.

[8] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 714.

[9] FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 5. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.39.

[10] MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, vol.2, p. 353.

[11] ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário. 16. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

Sobre o autor
Rafael Schreiber

Procurador do Município de Joinville (SC), MBA em Direito da Economia e da Empresa, formado em Direito pela FURB.<br><br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Rafael. Diferenças entre fato gerador e hipótese de incidência e a possibilidade de tributação de atos ilícitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4734, 17 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35013. Acesso em: 22 nov. 2024.

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